Por Gerardo Figueiredo Junior
A Secretaria de Direito Econômico (SDE) submeteu à consulta pública minuta de Portaria pretendendo criar o “Plano de Incentivo à Elaboração de Programas de Prevenção de Infrações à Ordem Econômica”, ou, simplesmente, PPI. Não obstante a extensa denominação, o referido programa nada mais é do que aquilo que os norte-americanos conhecem por Antitrust Complience. Ou seja, uma cartilha elaborada pela própria companhia e que trata de temas da concorrência, a exemplo de muitos manuais internos já adotados no Brasil.
A diferença é que o programa elaborado de acordo com a Portaria recebe o reconhecimento da SDE, caso seja aprovado, sob a forma de um Certificado de Depósito, cuja promessa é a redução pela própria Secretaria, ou a recomendação para que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) reduza a pena aplicada ao depositante no caso de uma infração cometida após a certificação.
Algumas companhias há muito já dispõem desses programas, herança das matrizes internacionais. O problema é que em alguns casos esses manuais são simplesmente traduzidos para o idioma local, sem qualquer adaptação à legislação local, o que os torna ininteligíveis e de pouca utilidade na prática. Não basta, portanto, que o agente econômico possua um PPI sem efetividade, no fundo da gaveta, que consista simplesmente em um exemplar do “guia para concorrência sadia”, uma vez que esse documento não leva em consideração as características e nuanças da legislação brasileira, pois apesar de fortemente influenciados por seus pares norte-americanos, nossos órgãos de defesa da concorrência assumiram particularidades que precisam ser conhecidas e observadas.
Especificamente sobre o projeto da Portaria, destacam-se questões que merecem reflexão e que devem ser discutidas previamente, para se evitar que a idéia geral do PPI se perca diante do possível desinteresse dos candidatos ao Certificado de Depósito.
O primeiro ponto a ser abordado deve ser, certamente, a eficácia e a real necessidade de se adotar um PPI. No caso de uma companhia cujas raízes são um grupo econômico internacional, a resposta a essa pergunta será a necessidade de se enquadrar aos padrões estabelecidos pelo próprio grupo, independentemente da existência da Portaria. Nesse caso, é necessário relembrar a necessidade de adequação do manual original às regras contidas nas normas legais vigentes e à realidade brasileira.
A “vantagem” em se aderir ao PPI seria, portanto, além da certeza do respeito à liberdade de competir no mercado, o direito a redução das penas impostas pela própria SDE ou a “recomendação” para que o Cade reduza a pena aplicada aos eventuais infratores que sejam detentores de um Certificado de Depósito do programa.
É preciso perquirir quais são as penas que podem ser aplicadas pela SDE, pois, de acordo com a Lei 8.884/94, as principais penalidades a que estão sujeitos os infratores só podem ser aplicadas pelo Cade, após a o parecer da SDE, mas ao qual não está vinculada a decisão final do Conselho. A mera recomendação da SDE para que sejam reduzidas as penalidades aplicadas pelo Cade não traz a devida segurança jurídica ao agente econômico, ainda que se conheça o atual entrosamento entre esses órgãos.
A fim de subsidiar a análise do pedido de certificação, a SDE poderá solicitar informações ou documentos complementares e, com base no artigo n° 26 da Lei Antitruste, aplicará multa ao agente econômico, segundo o critério discricionário dessa Secretaria, que se recuse a fornecê-los, que omita informações relevante, que aja com enganosidade ou que retarde, de forma injustificada, o atendimento à solicitação.
Ora, não faz qualquer sentido que um agente econômico seja punido dessa maneira em um procedimento por ele próprio iniciado, espontaneamente, e que tem por escopo obter um certificado. É certo que pela aplicação dos princípios gerais da Administração Pública, deve o administrado agir sempre com boa-fé e embasado na verdade, mas se vier a cometer qualquer falta, em detrimento a esses princípios, contra ele caberá o devido processo legal, o que é garantido pela Constituição da República.
Não se pode admitir, no entanto, que a SDE aplique uma condenação, ainda que com base na Lei 8.884/94, durante o curso de um procedimento de iniciativa do próprio administrado, e cujo objetivo não é investigar uma conduta, mas sim analisar a adequação de documentos que foram graciosamente apresentados à Secretaria, com o fim de obter o Certificado de Depósito. A ausências ou inadequação de qualquer desses documentos deverá implicar a negativa da certificação, e quanto ao fornecimento de informações inverídicas, o conjunto de normas que rege a atividade administrativa conta com mecanismos suficientes para tratar a questão de maneira adequada, sem que se recorra à aplicação da multa conforme previsto no § 1°, do artigo 4°, da minuta da Portaria disponibilizada para consulta pública.
Após a redução da regulação do mercado pelo Estado, as próprias companhias passaram a ser responsáveis pelo cumprimento das regras destinadas a garantir a livre iniciativa e a liberdade de concorrência. Esse novo modelo obriga o agente econômico a criar mecanismos próprios para competir legitimamente, tomando como ponto de partida a legislação antitruste. Por outro lado, é recomendável a elaboração de um programa de prevenção e que se fiscalize seu rigoroso cumprimento pelos funcionários da companhia, o que pode ser feito com ou sem a existência de uma certificação oficial.
A partir do momento em que a SDE opta por recompensar aos que venham a adotar o modelo de PPI por ela proposto, deverá fazê-lo de uma maneira mais atraente, e não transmitindo a sensação de que ao aderir ao Programa, a companhia estará sob permanente controle e vigília da Autoridade Antitruste. Essa postura destoa da liberdade de ação condizente com o sistema de mercado constitucionalmente consagrado.
A adoção de qualquer programa de prevenção deve ser estimulada e privilegiada pelos órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, e o modelo oficial correto tende a incentivar e divulgar a defesa da concorrência, assim como a observância às regras e princípios de proteção ao mercado, servindo como um convite para que os agentes econômicos possam interagir com o Poder Público.
Gerardo Figueiredo Junior é advogado especializado em direito da concorrência.