Por Denis Donoso
Muitas foram as repercussões do novo Código Civil no plano do direito adjetivo, pois o Direito Processual Civil exerce, indiscutivelmente, uma função instrumental em relação ao direito substantivo.
Dentre a imensa quantidade de assuntos que merecem estudo, avulta-se a questão da interrupção da prescrição em razão da citação, já que o artigo 202, I, do novo Código Civil parece ter revogado o artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil.
Com efeito, o dispositivo processual afirma que a citação interrompe a prescrição, sendo que a interrupção retroage à data da propositura da ação.(1) O Código Civil, ao seu turno, assevera que a interrupção da prescrição se dá pelo despacho do juiz que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e forma da lei processual.
Impõe-se saber, pois, em que momento se reputa interrompida a prescrição pela citação, considerando, em qualquer caso, que a parte tenha promovido o ato processual como manda a lei.
Duas correntes têm se destacado sobre o tema: os civilistas tendem a admitir que o efeito interruptivo decorre da citação válida e retroage à data do despacho; os processualistas sustentam que continua a valer, sem ressalvas, a regra do Código de Processo Civil.
Baseia-se a doutrina processualista no fato de que o artigo 202, I, do CC é expresso ao remeter à lei processual que, por sua vez, faz a interrupção retroagir à data da propositura da ação.
Argumenta-se, ademais, que a atual redação do Código Civil, que tramitou por muitos anos no Congresso Nacional, é fruto de labor legislativo anterior à atual regra processual, cuja redação foi dada pela Lei 8.952/94, de forma que, à luz de uma interpretação histórica, pode-se afirmar que a vontade última do legislador foi que a interrupção da prescrição ocorra nos moldes do CPC.
Nesta seara, ainda, alega-se que eventual interpretação no sentido de que a interrupção atinge o momento “do despacho que ordenar a citação” representaria evidente e indesejável retrocesso, criando dificuldades para as partes e para os próprios magistrados, compelidos estes a precipitar o exame de toda petição inicial nos casos em que estivesse prestes a se consumar a prescrição — o que certamente viria em detrimento do exame de outras situações urgentes não por força da lei, mas por força da realidade das coisas; situações essas que já não são pouco numerosas e que apanham um Judiciário já sobrecarregado (2).
Contudo, com o devido acatamento ao citado escólio, é de clareza solar que deve prevalecer a literalidade da redação do Código Civil.
A corrente processualista, claramente pragmática, traz em seu bojo não uma interpretação legal, mas sim uma sugestão legislativa, ao prescrever qual seria a melhor redação da lei diante da realidade.
O fato de a lei ter expressamente remetido à norma processual (artigo 202, I, in fine, do Código Civil) não é o bastante para sustentar a citada posição.
Quando o Código Civil diz que a interrupção da prescrição se dá por despacho do juiz que ordenar a citação se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual, está determinando que o autor tome todas as providências que lhe caibam para que se realize o referido ato, aplicando-se, neste diapasão, o artigo 219, § 2º, do Código de Processo Civil.
A propósito, promover a citação significa apenas requerê-la e arcar com as despesas de diligência, como já decidiu o STJ (3).
Por outro lado, o critério histórico também não convence, já que, malgrado o projeto do atual Código Civil viesse tramitando desde a década de 70 no Congresso Nacional, é forçoso reconhecer que passou por diversas revisões, inclusive posteriores à Lei 8.952/94.
Tenha-se presente, a propósito, que a Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/80, artigo 8º, § 2º) traz uma hipótese de interrupção da prescrição por despacho do juiz sem que a correspondente doutrina tenha ventilado a hipótese de se aplicar os termos do CPC nestes casos, nada obstante seja esta uma lei especial.
Pelo exposto, afigura-se mais adequada a lição de Carlos Roberto Gonçalves, segundo o qual o efeito interruptivo decorre da citação válida, que retroagirá à data do despacho, se promovida no prazo e na forma estabelecida no Código de Processo Civil (4).
Esta conclusão decorre do simples silogismo de que a lei nova revoga a anterior se ambas forem incompatíveis, sendo evidente, por critérios objetivos, que o atual Código Civil é posterior ao Código de Processo Civil.
Assim, sem maiores esforços hermenêuticos, o artigo 202, I, do Código Civil deve ser tomado em sua literalidade, de tal sorte que a interrupção da prescrição, atualmente, decorre da citação válida e retroage à data do despacho do juiz, restando revogada a correspondente disposição no Código de Processo Civil.
Notas de rodapé:
(1) Sobre o momento da propositura da ação, vide artigo 263 do Código de Processo Civil.
(2) YARSHELL, Flávio Luiz. A interrupção da prescrição pela citação: confronto entre o novo Código Civil e o Código de Processo Civil. in Informativo Phoenix. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, n.º 11, ano 2003.
(3) cf. anotação em NEGRÃO, Theotônio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 32ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 284.
(4) Principais inovações no Código Civil de 2002. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 33.
Denis Donoso é advogado em São Paulo e pós-graduando em processo civil pela PUC-SP.