Retrospectiva 2003: reforma agrária desrespeita ordem jurídica

Por Diamantino Silva Filho
“Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque a estender os olhos não se podia ver senão terra e arvoredos, terra que parecia muito extensa… A terra em si é de muitos bons ares, frescos e temperados… Águas infinitas. Em tal maneira é graciosa que tudo que nela se plantar há de dar”.

O escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral não tinha condições de estimar que a terra de que falava cinco séculos depois fosse a maior exportadora de carne verde do mundo, isto é, 1,4 milhões de toneladas.

Passados 500 anos, o Brasil está a realizar aquela antevisão. O Brasil vai produzir, neste ano de 2003, uma safra estimada em 122 milhões de toneladas de grãos. O Brasil precisa é de uma política estável e equilibrada para que a produção continue a crescer como previsto, ou seja, pelo menos 20% a cada ano.

A tecnologia e os investimentos privados ajudam o Brasil a dar tudo aquilo em que suas terras se cultivam, cumprindo a previsão de Pero Vaz de Caminha. O Brasil tem muita terra agricultável, mas há certeza de que a agricultura familiar tradicional não pode sobreviver sem subsídios.

A competitividade de nosso País na agropecuária há de vir de uma exploração em escala, a fim de oferecer matéria prima aos setores industriais, a fim de que se criem os muitos empregos de que nossa população tanto necessita.

Neste País de dimensões continentais e com tantas terras agricultáveis, o tema reforma agrária — por incrível que pareça — é assunto explosivo, não porque assim o fazem os proprietários e os sem-terras, partes envolvidas diretamente, mas, sim, pela mobilização de forças políticas e ideológicas que têm contado com a mídia, como instrumento a inflar os desvios da reforma do campo da maneira como devia ser.

As desapropriações endividam o Incra — órgão governamental encarregado da reforma agrária — e causam injustiças contra aqueles a quem as terras desapropriadas pertenciam. Não é nenhum excesso de linguagem dizer que o governo afirma, a respeito da dívida advinda da aquisição das terras necessárias aos assentamentos rurais: “devo não nego, pago quando puder e ou quiser”.

Os assentamentos fracassam visivelmente de norte a sul do Brasil e nem o Incra possui dados confiáveis sobre seus resultados.

Até 2003, inclusive, o Brasil fez e está a fazer a maior e a pior reforma agrária do mundo. Só para se ter uma idéia, no governo Fernando Henrique Cardoso, foram assentadas 635.000 famílias numa extensão de quase 20 milhões de hectares, que corresponde às áreas agricultáveis do Estado de São Paulo, Minas Gerais e Paraná.

Houve aplicação em torno de quinze bilhões de reais, porém do ponto de vista econômico, de produção e social, foi um fracasso total, tanto que continua sendo necessário o fornecimento de cestas básicas para a sobrevivência dos assentados espalhados no campo em verdadeiras favelas rurais.

Procurando implantar a fome zero no campo, podemos tomar como exemplo os 11.000 hectares plantados na Fazenda Itamaraty em Ponta Porã-MS, o maior projeto de reforma agrária do Brasil.

Para este ano de 2003 foi estimada uma colheita de 53 mil toneladas de milho e soja com uma arrecadação de R$ 5 milhões a serem distribuídos para 1.143 famílias assentadas.

Como já se fez observar por outros críticos da reforma agrária, estes números chegam a impressionar, porém quando se divide o valor pelo número de famílias e se fraciona em um ano, tem-se que cada família receberá R$ 364,53 mensais. Considerado que, familiarmente, pelo menos quatro pessoas trabalham no amanho da terra, tem-se que o salário diário per capta é de R$ 3,03 e, portanto, se encontra abaixo da meta do Programa Fome Zero.

Este ano, ali continuam as 1.143 famílias inicialmente assentadas e outras tantas que ali se aportam, porém a maioria delas continua morando em barraco de lona, não existindo lá nem água encanada, nem eletricidade, sendo que as estradas ficam intransitáveis quando chove. Vários assentados trabalham como bóias-frias na própria área que foi arrendada por uma produtora de sementes, recebendo uma diária de R$ 15,00 a única fonte de renda da família.

Não há notícia da existência das diretrizes de um Pano de Reforma Agrária integrado a um Projeto Nacional de Desenvolvimento. A Reforma Agrária massificada, como está se processando, inclusive no primeiro ano do “Governo Esperança”, não permitirá que a agricultura familiar ofereça condições de sobrevivência aos assentados sem o recebimento de cestas básicas.

É preciso que se implante um novo modelo de recuperação dos assentamentos existentes e para os futuros, com a presença da viabilidade econômica, da sustentabilidade ambiental e do desenvolvimento social.

O que a reforma agrária está fazendo até o presente momento, sem exceção de governos, inclusive o atual, é fabricar agricultores familiares sem trabalho e sofredores de conseqüências sociais cada vez piores. Até aqui, no fim deste ano de 2003, a reforma agrária do Governo Federal tem semeado assentamentos e os assentados têm colhido miséria.

A reforma agrária assumiu uma conotação de desrespeito à ordem jurídica no momento em que em torno dela se criou um mito de que seria a solução para acabar com o êxodo rural, para evitar o inchaço nas grandes cidades e poderia ser executada a qualquer custo.

Não se fará nenhuma reforma sem políticas integradas dentro da ordem jurídica, como norma social de concatenar e organizar as aspirações da comunidade, com o máximo de eficiência e o mínimo de conflitos.

É preciso que haja respeito à ordem jurídica existente para garantir a caminhada dos brasileiros, a fim de que não se dispersem e não desmantelem os seus esforços. Convém, que a reforma agrária venha a serviço da libertação social como forma de uma conquista, de uma realização e de uma concretização de propósitos, tal como o preconizado pelo escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral.

O Brasil não nasceu terminado, mas somente inaugurado e, em suas terras, tudo que se plantar dá.

É preciso que o governo Lula reveja o Programa de Reforma Agrária, a partir de um levantamento da verdadeira situação dos assentamentos existentes, a fim de que o lavrador não fique ali curvado nos leitos ásperos ou perdido nas matas.

É conveniente que não fique a olhar pelo retrovisor, fazendo uma crítica do passado, mas que olhe para frente sem ficar a fazer narrativas do dia de ontem, mas que tenha um plano concreto para o dia de amanhã.

O Governo Federal precisa investir numa política agrícola não demagógica, não eleitoreira, mas capaz de gerar renda e emprego no campo, em vez de aprofundar os gastos do dinheiro público numa reforma que só tem gerado a desilusão e a desesperança de milhares de brasileiros porque dos proprietários subtrai os bens e aos assentados outorga a obrigação de vida indigna, enlonada, anêmica e que só consegue comer o que lhe é dado na cesta básica.

Diamantino Silva Filho é especialista em Direito Agrário e sócio do escritório Diamantino Advogados Associados

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