Por Gesiel de Souza Rodrigues
O Plenário do Supremo Tribunal Federal deferiu, por maioria, o habeas corpus nº 81.611 em que se discutia a possibilidade de instauração de ação penal, em crimes contra a ordem tributária, antes da decisão final do processo administrativo manejado justamente contra a existência do crédito tributário.
A situação enfrentada pelo STF demonstrou nítido aspecto kafkiano em que o suposto Sr. K (contribuinte), mesmo após válida impugnação, em que se discute exatamente a existência do crédito tributário, poderia ser perfeitamente alvo de ação penal instaurada mediante mera representação da autoridade fiscal.
A aberração é patente, posto que inexistindo o tributo, porquanto não há tributo sem lançamento, conforme muito bem observou o ministro Carlos Velloso, não se poderia cogitar de ação penal relacionado à exação. Não se trata, por certo de condicionar a atuação do Ministério Público ao Executivo, mas certamente adequar aos direitos basilares do contribuinte, dentre eles certamente a ampla defesa e o contraditório.
Assim, inexistindo lançamento definitivo não se pode conceber a exigibilidade do crédito. Portanto, se o mesmo ainda não existe torna-se impossível admitir a ação criminal para apuração de tipo penal. Tal postura, por certo conduziria a absurdos como a hipótese do contribuinte vir a ser processado criminalmente e provar administrativamente a inexistência do crédito.
Indaga-se: ocorrendo a comprovação de que não ocorreu sonegação fiscal, devidamente reconhecida pelo julgador administrativo, poderia aceitar uma condenação criminal? Se não ocorreu a sonegação o tipo penal estaria aperfeiçoado? A negativa se impõe inapelavelmente.
Ainda nesse contexto, como ficaria a dignidade do contribuinte processado criminalmente e que administrativamente tivesse reconhecida a inexistência de crédito tributário? E o sobreprincípio da segurança jurídica?
Dessa forma, não se afigura admissível a ilação da ministra Ellen Gracie proferida em seu voto-vista de que estaria sendo criado uma situação paradoxal entre o transcurso do prazo de cinco anos para lançamento e a prescrição da pretensão punitiva. Não se vislumbra qualquer paradoxo, posto que não existe tributo sem lançamento e o tipo penal apenas se aperfeiçoa com a comprovação da sonegação fiscal, estaria, portanto, impossibilitado o MP de atuar justamente por faltar elemento essencial para a denúncia.
Ora, se não existe lançamento tributário, porquanto, regular e tempestivamente impugnado pelo contribuinte defendente, não há que se falar em crédito, conseqüentemente o tipo penal não estaria configurado, restando inepta a denúncia. Com muita propriedade ressaltou o ministro Carlos Velloso “… O Ministério Público não poderá, então, instaurar a Ação Penal, simplesmente porque não se sabe ainda se houve redução ou supressão de tributo”.
Admitir tese em contrário ou ainda fazer alusão a paradoxo inexistente não se mostra expediente admissível. Se paradoxo existe será aquele em que o contribuinte logre êxito em provar a inexistência do crédito tributário na esfera administrativa e mesmo assim venha a ser processado criminalmente. Por certo não é esse o sentido do primado da segurança jurídica. Conceber tal linha exegética é acolher como admissível às agruras kafkianas impostas ao Sr. K. e chancelá-las como expedientes válidos em um Estado Democrático de Direito.
Por outro lado, por absoluta impossibilidade objetiva, não se pode admitir como factível a legitimidade do Ministério Público para, independentemente de representação, instaurar a ação penal. Na prática tal ocorrência ficaria inviabilizada, tendo em vista que no caso de sonegação fiscal, sobrevindo a impugnação do contribuinte, não existirá o crédito, pelo simples fato de que não existe crédito sem lançamento válido e regular, como já repisado. Destarte, com base em que elemento estaria o parquet apto a promover a denúncia?
A observação sempre pertinente do ministro Marco Aurélio é lapidar: “não coabitam o mesmo teto a noção de sonegação fiscal (crime tributário) e a existência do processo administrativo com eficácia suspensiva”. Diante de tais ponderações concluir-se-á pelo acerto da decisão plenária do STF, que necessita ainda avançar para deixar claro que até mesmo ao Ministério Público falecerá legitimidade para propor a ação penal existindo discussão administrativa pendente.
Nesse diapasão, se afiguram ainda desconectadas as razões do ministro Joaquim Barbosa ao acompanhar o voto-vista da ministra Eller Gracie, posto que a tratamento harmônico do qual faz menção estaria quebrado justamente se as instâncias administrativa e jurisdicional estivessem absolutamente independentes. A verificação da existência do crédito apenas se tornará concreta e factível após o exaurimento da instância administrativa e na hipótese de comprovação da sonegação, a qual será o elemento necessário para preencher o tipo penal que possibilite a ação criminal. Imaginar o contrário é admitir como plausível decisões dispares, em flagrante quebra da harmonia das decisões.
É preciso avançar e firmar posição também acerca do impedimento do Ministério Público enquanto pendente a discussão sobre a existência do crédito. Tal providência evitaria a movimentação desnecessária da máquina do Judiciário e atitudes abusivas.
Gesiel de Souza Rodrigues é advogado empresarial e tributário, pós-graduado em Direito tributário, especialista em Direito civil e Processo civil e professor universitário