Por Paulo Sérgio Domingues
Que a Justiça brasileira sofre de uma inundação de processos e tem grande dificuldade para conseguir atender os anseios da população para solucioná-los com rapidez, é de conhecimento de todos. Mas, recentemente, outra grande inundação chegou à Justiça Federal da cidade paulista de Sorocaba.
Em 26 de janeiro de 2004, uma avassaladora enchente na cidade atingiu o Fórum Federal dessa localidade, elevando a água dentro das dependências judiciais a quase um metro e meio de altura. Destruiu todos os equipamentos de informática, material de uso diário, móveis, veículos e um grande volume de autos processuais. Uma situação dramática – a demora nos julgamentos – afogada em outra situação ainda mais dramática – o prejuízo ao patrimônio público e a perda dos documentos.
O risco à vida dos juízes, servidores e do público foi evidente – ao fim do expediente do dia, que se resumiu a tentar salvar o possível da inundação, dois juízes e alguns servidores foram resgatados do topo do prédio por um barco dos bombeiros.
Foi uma tragédia anunciada. O risco de enchentes naquele prédio – uma “instalação provisória” desde 1994 – era conhecido por todos. Eu mesmo, que lá trabalhei no período de 1998 a 2000, pude constatar a possibilidade de uma verdadeira inundação ocorrer, como de fato ocorreu. Por duas vezes vi a água do Rio Sorocaba insinuar-se pelas portas do fórum; eu os outros juízes e servidores, com rodos e panos, empurrando-a para fora, em esforço que, sabíamos, seria inútil caso as águas subissem apenas mais dez centímetros.
Durante todo esse período, as instâncias superiores da Administração da Justiça Federal foram diversas vezes contatadas; há pelo menos quatro anos existe um outro prédio disponível para a Justiça Federal instalar o novo fórum, mas são necessárias reformas para sua utilização. Verbas foram solicitadas ao Executivo e ao Legislativo, mas os sucessivos “contingenciamentos” orçamentários impediram sua liberação. Infelizmente, nenhum evento ocorreu que pudesse salvar do afogamento a Justiça Federal de Sorocaba.
Culpados, agora não é hora de buscá-los – pode ser um, podem ser muitos. Culpada poderia ser a Prefeitura Municipal, que em tantos anos não conseguiu minimizar os riscos de enchente naquela que é a principal avenida da cidade, nem demonstrou interesse em auxiliar a Justiça Federal em obter imóvel mais adequado. Culpados poderiam ser outros agentes públicos envolvidos, atuais ou anteriores – inclusive do próprio Poder Judiciário Federal em suas diversas instâncias. No entanto, uma certeza salta aos olhos: o Poder Executivo Federal, que anualmente impõe um drástico corte de despesas e contingenciamento de verbas, impossibilitando uma adequada administração da Justiça aos cidadãos, participa com destaque do rol dos culpados.
O momento é oportuno para encararmos essa questão – que Justiça queremos? Mais célere nos julgamentos, com certeza; mais eficaz na apreciação dos pedidos das partes, também; com juízes dedicados, competentes e probos, ninguém discorda. Mas para tudo isso são imprescindíveis recursos públicos de investimento, de custeio e para contratação e treinamento de pessoal. É preciso que sejam garantidas verbas orçamentárias para o Judiciário. Que não se repitam mais os cortes e contingenciamentos, como o de 62% do orçamento que ocorreu em 2003. Enfim, é preciso que a previsão constitucional de autonomia financeira do Judiciário saia do papel e se torne uma realidade. E, então, que os recursos já destinados e liberados sejam aplicados com planejamento e reconhecimento das prioridades dos cidadãos.
Hoje mais de oito mil processos judiciais do Fórum Federal de Sorocaba, dos vinte mil em andamento, encontram-se em uma verdadeira UTI, com especialistas tentando evitar que seus documentos se desfaçam. Ainda não terminou o levantamento para se saber quantos processos podem ter se perdido, carregados pelas águas. Em que pese os esforços dos servidores, juízes e da administração da Justiça Federal, não se sabe quando o Fórum poderá voltar a funcionar normalmente ou quando poderá mudar-se para o novo prédio.
Naturalmente, para prestar um bom serviço à população, a Justiça precisa de verbas orçamentárias: estamos frente a um ótimo exemplo sobre o que o Executivo e Legislativo podem fazer para “reformar” o Judiciário. Esperam-se rápidas providências, para que a Justiça Federal de Sorocaba possa voltar a atender convenientemente a população. Antes que tudo vá por água abaixo.
Paulo Sérgio Domingues é presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil e Juiz Federal em São Paulo.