por Luciana Andréa Accorsi Berardi
O Município enquanto unidade político-administrativa surgiu com a república romana, interessada em manter a dominação pacífica das cidades conquistadas pela força dos exércitos. Sua origem, mais de natureza sociológica do que política advém do espírito associativo do homem e de suas relações de vizinhança. É a menor unidade territorial de Federação, cuja criação reflete a base da organização político-administrativa da Nação. Portanto, sua função administrativa historicamente vem assentada no princípio do direito natural.
No Brasil, com o final da ditadura, reconstruiu-se um Estado de direito, de bases liberais, com reconhecimento dos direitos políticos e jurídicos, sem que estes se estendessem ao plano social. Existia um consenso de que a democracia, uma vez reinstalada, combateria o déficit social, dado que a ditadura havia feito crescer a economia sem estender seus benefícios à massa da população. Neste pilar equilibrou-se José Sarney governando, sob o slogan “Tudo pelo Social”, e posteriormente, a nova Constituição ter assumido a forma de “Constituição Cidadã”, assim chamada por Ulisses Guimarães, ao afirmar direitos e deveres.
Durante a década de 80, em decorrência de um processo de mobilização nacional, os municípios começam a se tornar mais presentes nas grandes decisões nacionais e responsáveis pelas suas próprias decisões. Diversos pensadores desta época chegaram a afirmar que a descentralização de poder resultante desta nova Carta que estava por nascer, era antes de tudo uma conquista dos Municípios, sendo eles, os berços da perpetuação da República e da Democracia efetivamente, por ser o único nível de governo possuidor de respaldo e localização física, ou seja, solo municipal.
A Carta Magna de 1988 consolidou significativas inovações para a vida municipal, de forma que o Município passou a constituir um dos entes da federação, tratando-o como unidade dotada de autonomia política, expressa na capacidade de poder elaborar a sua Lei Orgânica, fugindo assim, da tutela dos estados, que até então eram considerados como únicos componentes da federação.
A Lei Orgânica Municipal traz em seu bojo, além da organização administrativa do Município, a restauração do Poder Legislativo municipal, definindo a diversificação normativa, que não existia nas leis organizacionais outorgadas pelo Estado, reflexo do poder constituinte outorgados aos Municípios pela Constituição Federal de 1988, como conseqüência do efetivo exercício do conceito de Estado Democrático de Direito.
Isso só se tornou possível em razão do poder que o povo transferiu para o Estado, corroborando com o entendimento de que a teoria política formadora do conceito de soberania do Estado contemporâneo está ligada à idéia da democracia ou da participação popular, pois quando o Estado traça seus limites na Constituição, escrita por todos, de legitimidade reconhecida por todos, certamente não é usurpador, mas legitimo depositário da soberania popular.
O Município, enquanto ente federativo, tem atualmente a responsabilidade de ordenar o seu desenvolvimento social e a garantia do bem estar de seus habitantes, executando políticas públicas de ações a serem empreendidas, na consolidação democrática do Estado.
Dessa forma, o aperfeiçoamento da máquina administrativa, a redefinição das suas obrigações e encargos e o estabelecimento de políticas públicas específicas devem estar sempre presentes na mente do gestor publico visando o revigoramento das instituições diretas e indiretas para o efetivo exercício da soberania local.
O denominado regime unicista, por exemplo, foi instituído pela atual Constituição, promulgada em 5 de outubro de 1988, com o escopo precípuo de racionalizar a administração de pessoal no Serviço Público, mas apenas em relação aos entes de Direito Público integrados à administração direta, autárquica e fundacional. Administração essa que, nessa esfera, se mostrava extremamente dificultada pela diversidade de regimes que então se apresentava.
Ora eram contratações regidas pela Lei 1.711/52 — Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União — ora adotava-se o regime da Consolidação das Leis do Trabalho para a admissão de trabalhadores, sendo que, neste último, não se conferiam ao ocupante do emprego determinadas garantias típicas do regime estatutário, dispensando-se até mesmo maior rigor na admissão de pessoal, nem sempre submetida a prévio concurso público.
Essas questões, dentre outras diversas, cujas soluções extrapolavam o texto legal, demandaram do Estado um posicionamento contundente, que viabilizasse o saneamento das controvérsias oriundas do período de transição decorrente da prática constitucional. Neste contexto, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, em edição publicada pela Presidência da República em novembro de 1995, pág. 62, sugeria que, “as emendas do capítulo da administração pública são fundamentais no processo de transição para uma administração pública gerencial, incorporam ou viabilizam uma nova perspectiva em relação à gestão e ao controle do aparelho do Estado. Os dispositivos compreendidos no projeto são de importância estratégica para a consecução da reforma administrativa, contemplando os princípios e normas de gestão, as relações jurídicas dos servidores com a administração e as prerrogativas dos três poderes para a organização administrativa e a fixação de vencimentos dos cargos de seus serviços auxiliares ou administrativos”.
Vê-se, assim, que a filosofia orientadora da Reforma vindoura, buscou estabelecimento de uma Administração Pública mais eficiente, no sentido de que o cidadão, como destinatário dos serviços públicos que o Estado deve prestar, receba-os com maior qualidade e menor custo.
Sob a égide dessa postura governamental foi elaborada proposta de emenda à Constituição que, após largo período de tramitação no Congresso Nacional, culminou na aprovação da Emenda Constitucional 19, promulgada no Diário Oficial de 05 de junho de 1998, que “modificou o regime e dispôs sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal“, predispondo-se, portanto, a implementar a anunciada e tão discutida “Reforma Administrativa”.
A EC 19/98 acrescentou o princípio da eficiência ao vigente texto constitucional, outorgando à sociedade uma importante base jurídica para a cobrança da efetividade e qualidade na prestação dos serviços pelo Poder Público. A função administrativa já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, nos estritos termos da lei; exige-se resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros.
Nos dizeres do professor Alexandre de Moraes, esse princípio “impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia, e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social”.
Essas modificações reformistas, por realizarem profundas e relevantes alterações constitucionais, como não poderia deixar de ser, e até por ser recente a sua promulgação, deixaram os setores jurídicos e funcionais atordoados, inexistindo, por isso, ainda, uma perfeita compreensão dos novos regramentos reestruturadores da Administração Pública Municipal.
A necessidade de adequação, reorganização, reformulação faz-se premente, frente às transformações anteriormente elencadas em face dos novos e modernos conceitos de gestão pública. Neste momento, é indispensável para a efetiva implementação da reforma pretendida, que os agentes administrativos superem o tradicional vezo burocrático que vem convertendo a Administração, nas palavras de DROMI, numa cara “máquina de impedir”, fiel ao que o mesmo autor batizou como o “código do fracasso”, que dispõe: “artigo primeiro : não pode; artigo segundo: em caso de dúvida, abstenha-se; artigo terceiro, se é urgente, espere; artigo quarto, sempre é mais prudente não fazer nada” (1995:35).
A dicotomia, inegavelmente, é um traço marcante do Direito. Nesta seara, dificilmente são encontradas posições e opiniões unânimes e unívocas. Vale aquiescer, sem embargo, que divergências, discussões e pontos de vista diferentes, longe de serem obstáculos e impedimentos, são, na imensa maioria das vezes salutares e bem-vindos para a elucidação de contendas, bem como são relevantes para o progresso das estruturas sociais.
O conceito de administração própria não oferece dificuldade de entendimento e delimitação, é a clausula limitativa dessa administração que exige exata interpretação, para que o Município não invada competência alheia e nem deixe de praticar atos que lhe são reservados. Enfim, é a compreensão precisa do termo “interesse local” que resume a discussão, pois “interesse local” não é o interesse exclusivo do Município, não é o interesse privativo da localidade. O que caracteriza e define o “interesse local”, inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União.
Segundo o eminente professor Sampaio Dória “a ordem pública de um Estado é seu interesse peculiar, mas também é o interesse da Nação. Logo, não é privativo do Estado”. Sob tal entendimento provém a idéia de autonomia municipal como faculdade de dispor sobre assuntos de seu interesse, através de suas próprias leis que consolida-se por um governo próprio e pelo uso de sua competência através da auto-administracão.
Assim sendo, podemos dizer que a autonomia deriva de um direito natural e da delegação de poderes, pois é pelo direito natural que se reconhece o Município como uma incorporação histórica já existente antes do Estado, como definem os jus-naturalista.
O exercício dessa autonomia se manifesta politicamente no exercício consciente da cidadania, pelo qual nós brasileiros tanto lutamos, a eleição, pelo voto popular, dos agentes políticos municipais,como primeira expressão e, renovável periodicamente, para nos fazer relembrar a sua fundamental importância, à manutenção do Estado Democrático de Direito.
Luciana Andréa Accorsi Berardi é advogada e professora assistente de Direito Penal na PUC e UNIP