por Reginaldo Melhado
A questão do acesso à justiça guarda estreita relação com os direitos humanos, assim considerados, em primeiro lugar, os direitos civis, políticos e sociais, incluindo-se nestes últimos os direitos difusos e coletivos.
Logo, ele não se realiza pela mera liberdade negativa. O acesso à justiça pressupõe liberdade positiva e, com efeito, capacidade e oportunidade de realização de um direito. Nessa perspectiva, ao Estado cabe não só proteger o cidadão, mas promover a efetividade dos seus direitos fundamentais.
Exercício de cidadania, a tentativa de acesso à Justiça significa, para o cidadão comum, deparar-se com um território impenetrável. O universo jurídico é um mundo estranho, diferente do seu hábitat natural, com uma linguagem própria, normalmente empolada, com vestimentas cerimoniosas, sulcado pela formalidade, pelas relações hierarquizadas e às vezes até pela suntuosidade. Diz o art. 5o, inciso LXXIV: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
É preciso também que o acesso à Justiça implique o acesso a uma ordem jurídica justa. Vale dizer: de nada adianta tornar permeável ao cidadão a prestação jurisdicional se dela não decorre o resultado satisfatório, rápido e justo da garantia dos direitos lesados ou ameaçados, assegurando-se igualmente o direito público subjetivo à razoável duração do processo.
Para o acesso à Justiça o Poder Judiciário há de ser independente, soberano, e deve ser composto por um quadro de magistrados que não se curvam a poder algum senão o que exsurge da própria Constituição e da força da sua consciência livre.
No caminho da sociedade à Justiça alguns atores ganham protagonismo evidente. Entre os mais importantes estão a advocacia e o Ministério Público, instituições que têm por missão suprema a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses maiores da sociedade.
Outros agentes relevantes nem sempre são lembrados. Por exemplo: os serviços auxiliares do juiz, realizados através do chamamos cartórios ou secretarias. Exercem eles um papel fundamental no sentido de viabilizar ou inibir o acesso do cidadão à Justiça. No Judiciário da União, estes serviços são realizados pelo próprio Estado, através de um corpo de funcionários concursados. Em muitas das Justiças dos Estados, entretanto, este serviço é explorado como se fora autêntica atividade empresarial. Já não podemos mais conviver com a ocupação patrimonialista de serviços públicos. A propriedade privada de cartórios é hoje um obstáculo ao acesso à Justiça. Algumas atividades não funcionam bem nas mãos do Estado. Devem ser reservadas à iniciativa privada. Outras só funcionam bem nas mãos do Estado. É o caso das serventias judiciais. A sociedade brasileira já não pode mais conviver com esta herança feudal. Precisamos de uma revolução nesta área.
Uma das condições mais relevantes para o acesso à Justiça é existência da Defensoria Pública, que foi institucionalizada no Brasil em 1988 através de dispositivo constitucional que a reputa “essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5.º, LXXIV” (art. 127).
A Carta de 1988 cometeu ao Estado a obrigação de prestar assistência jurídica integral e gratuita à população economicamente desfavorecida. Para tanto, estabeleceu que devem ser organizadas defensorias públicas no âmbito da União Federal e dos Estados. É conduta contrária à Constituição — portanto, conduta de subversão à ordem democrática, desrespeito aos direitos fundamentais — a omissão do Estado na instituição da defensoria pública. Urge que se institua concretamente e se estruture decentemente a Defensoria Pública em todos os Estados e na União.
E mais. É preciso que esta Defensoria seja dotada de condições concretas de funcionamento que permita aos cidadãos necessitados o efetivo acesso à Justiça, sendo a ela assegurada autonomia funcional e administrativa. Para tanto, é imprescindível que a Defensoria seja composta por um corpo técnico qualificado, selecionado através de concurso público instituído democraticamente, com a participação de professores universitários, magistrados, membros do Ministério Público e advogados. Também são igualmente necessários a previsão orçamentária correspondente às suas elevadas responsabilidade e o direito de isonomia de vencimentos dos defensores públicos em relação aos membros do Ministério Público ou das Procuradorias dos Estados.
Uma defensoria pública eficiente é esteio das causas populares. Os mais ricos já têm seus advogados. A atuação das defensorias públicas implica, com efeito, uma tomada de posição do próprio Estado frente aos conflitos sociais e às contradições de classes.
O direito de acesso à Justiça pode e deve ser viabilizado por ações concretas como:
antes de mais nada, existência um Poder Judiciário independente e soberano, constituído por um corpo de magistrados nomeados mediante métodos de seleção eficazes e irreprocháveis do ponto de vista moral e técnico;
pela racionalidade do sistema de custas e despesas, de tal modo que o cidadão não sofra gravame patrimonial injustificável para movimentar a máquina estatal quando procura pelo Judiciário;
por mecanismos de gratuidade dos serviços judiciários que funcionem adequadamente e que impliquem a atuação eficaz dos serviços cartoriais;
por serviços auxiliares do juiz — cartórios ou secretarias — realizados pelo próprio Estado, através de um corpo de funcionários concursados, com veto à ocupação patrimonialista desses serviços públicos;
e por uma defensoria pública com estrutura humana e material adequada.
Reginaldo Melhado é juiz do trabalho no Paraná e membro da comissão legislativa da Anamatra