por Joaquim Falcão
Na economia, existem os partidários do supply side economics e os do demand side economics. Na reforma do Judiciário também. Pois a crise do Judiciário pode ser entendida como um desequilíbrio entre uma crescente demanda social por justiça e uma sempre insuficiente oferta de sentenças definitivas.
A maioria das propostas busca aumentar a oferta de sentenças: maior agilidade, mais varas, mais juízes, menos recursos protelatórios, menos instâncias, maior respeito aos prazos, e por aí vamos. Buscam combater a lentidão decisória. Esta é condição necessária, mas claramente insuficiente. Sozinha não fará verão, por pelo menos três motivos.
O primeiro, denomino de a estreita porta do acesso. Na sociedade moderna, a imensa maioria dos conflitos é coletiva. Um só conflito jurídico entre o fisco e o contribuinte repercute nos direitos e obrigações de milhões de outros contribuintes. Entre uma grande empresa e o consumidor, nos direitos e obrigações de milhões de outros consumidores. Estes conflitos têm difícil acesso ao Judiciário. Em geral, para ingressarem no aparelho judicial precisam se “descoletivizar”. Entram um a um, aos milhares, talvez milhões.
Nosso direito processual precisa fortemente ampliar, ou melhor, remodelar a porta de entrada da justiça. Criar instrumentos como class actions, mais condizentes com a natureza da sociedade em que vivemos. O que desafogaria imediatamente o Judiciário.
Entretanto, toda tentativa de criar ações coletivas encontra oposição do Poder Executivo e de algumas grandes empresas. Seu temor: perder uma ação desta natureza poderia quebrá-los. Basta ver, por exemplo, as decisões recentes sobre a aplicação dos índices do FGTS e, agora, os da aposentadoria. Apenas nestas duas ações que o governo perdeu, estima-se que passou a dever aos cidadãos mais de vinte bilhões de reais. Vinte bilhões que saíram do armário.
O segundo motivo, e correlato, denomino de a judicialização da dívida individual. Seja este indivíduo público ou privado. Não é apenas a sociedade que faz o cálculo custo/benefício entre pagar o que deve ou lutar na justiça. Todos fazem. O Poder Executivo também. Para este, o Poder Judiciário é hoje importante fonte de capitalização do devedor. É bem verdade que, aqui, a maior agilidade decisória reduziria os custos. Contudo, enquanto esta agilidade não se implanta em todo o sistema, o que exigirá ainda muito tempo, medidas mais imediatas poderiam ser logo implantadas. Como, por exemplo, multas para as demandas claramente protelatórias. Tudo sem alterar a lei.
Estas duas situações, são, acredito, responsáveis maiores pela lentidão da justiça. A busca de soluções para viabilizar demandas de natureza coletiva, e que visem a proibir a judicialização da dívida através de uma iníqua capitalização do devedor, é mais do que um desafio gerencial envolvendo o funcionamento do Poder Judiciário. É também um desafio político-econômico. Estamos diante de uma indevida apropriação do orçamento público para cobrir os custos de um uso egoísta e patológico do Judiciário. Apropriação e benefício para alguns devedores, desperdício e prejuízo para milhões de contribuintes.
Mas, antes de tudo, estamos diante de um desafio de ética pública, causado por um anti-ético uso da justiça. Até que ponto a sociedade vai continuar a aceitar ações que visem a dificultar injustamente o reconhecimento dos direitos e obrigações dos cidadãos, suas empresas e seus governos?
Finalmente, o terceiro motivo é o paradoxo do sucesso. Vejam o que acontece com os juizados especiais. Os julgamentos estão mais céleres, resolvidos na primeira instância, sem advogados, muitas vezes pela negociação. Como a demanda é muito reprimida, quanto mais céleres ficam os Juizados, mais forte a mensagem de eficiência e credibilidade do Judiciário que enviam. O mercado a recebe, processa e reage. A demanda reprimida desperta. Os casos afluem exponencialmente. Os juizados ficam insuficientes. Estamos diante de um círculo vicioso. Quanto maior o sucesso, maior o problema. Melhor: no caso, estamos diante de um círculo virtuoso.
Estratégia mais compreensiva da reforma do Judiciário poderia combinar ações para conter a demanda patológica e estimular a demanda coletiva, sem prejuízo da busca por uma maior oferta de sentenças definitivas
Joaquim Falcão é diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e mestre em Direito pela Harvard Law School