por Armando Rodrigues Coelho Neto
Os membros do ministério público que se arvoraram do mister de promover investigações sempre souberam ou presumiram as conseqüências dessa ousadia insana em que se atiraram. Tanto sabiam, que seus representantes de classe nunca abandonaram os corredores da Câmara e do Congresso, tentando aprovar projetos de leis que lhes garantissem essa prerrogativa.
Estariam movidos, por certo, na afirmação feita em dezembro de 1998 pelo ministro Carlos Velloso, no sentido de que “não existe ofensa ao art. 129, VIII, C.F., no fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial” (grifo nosso).
Endossando aquela posição, o Supremo Tribunal Federal, em votação unânime, proclamou que, “o MP não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos, nem competência para produzir inquérito policial sob o argumento de que tenha possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos, e pode propor ação penal sem inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Mas os elementos suficientes não podem ser auto-produzidos pelo MP, instaurando ele inquérito policial” Disse, portanto, por várias vezes a mais alta Corte Judicial do país, não ser atribuição do Ministério Público promover investigações.
Não sem razão. Após anos de ditadura, a Constituição Cidadã veio para, entre outras finalidades, por cada coisa no seu devido lugar, definindo quem é quem e as atribuições de cada instituição. Redefiniu o papel daquela instituição, reservando às Polícias o papel investigatório, separando, desta forma, o processo de coleta de dados e provas, de apreensão preliminar dos fatos, para finalmente submetê-lo ao Judiciário, com as oportunas intervenções do Ministério Público e da Defesa.
Quis, com isso, o constituinte, garantir que o quadro caracterizador da quebra de regras e o delineamento do pretenso violador transcorresse numa outra instância. Tudo isso para dizer que, após anos de arbitrariedades, a nova Carta tinha um viés cidadão e que o tripé da promoção da Justiça se consolidaria em condições de igualdade entre os atuantes.
As polícias, no exercício de suas funções constitucionais, enquanto titulares das investigações, têm mostrado sua indiscutível eficiência. Seus eventuais vícios não justificam a supressão de suas atividades e sim a punição exemplar de seus maus policiais.
Ninguém fala em supressão de prerrogativas de juizes ou de membros do Ministério Público, quando da constatação de suas faltas, falhas, crimes. Aliás, quem sabe se elas existem diante da névoa ou da caixa blindada que circunda o todo poderoso MP? Quem os fiscaliza? Quem os pune? Ou seriam os representantes do Ministério Público uma legião de congregados marianos puros e intocáveis, acima do bem e do mal, a ponto de autoderminar-se o que faz, não faz, contra quem investem e diante de seus próprios erros, se auto-julgar-inocentar? Seriam eles capazes de publicamente cortarem a própria carne e arranharem sua presumível credibilidade?
Enquanto sobre eles pairam a névoa e a blindagem, nas polícias as investigações são transparentes, com as reservas permitidas por lei. Mas, em suas repartições ingressam advogados, juizes, promotores, representantes de organizações não governamentais, a anistia internacional e tudo que nela se constata é debatido, refletido e objeto de punição. O mesmo não se pode dizer do Ministério Público.
Sem embargo, não existe a menor probabilidade matemática, lógica ou jurídica a indicar que, se os crimes tidos como não esclarecidos teriam final diferente se fossem investigados pelo Ministério Público. Constata-se com isso, que se utiliza uma verdade para vender uma mentira.
A verdade é representada pelos desacertos das policiais, pela realidade dos maus policiais, pelas estatísticas assombrosas, por números muito mais associadas à miséria e a corrupção crônicas do país, do que mesmo a uma ineficiência do aparelho policial. Já a mentira, destaque-se, reside justamente em querer impor à sociedade, que tudo seria diferente se finalmente o Ministério Público Federal ou Estadual, assumissem os trabalhos investigatórios de uma vez por todas.
Mas aí dizem: não é bem assim. Não se deseja investigar tudo, serão apenas em alguns casos, determinadas investigações, provavelmente inspirados no espetáculo jornalístico patrocinado pelos promotores italianos na denominada “Operação Mãos Limpas”, hoje cada mais turvas. Os certos casos estão evidentes.
É público sabido e notório, que o Ministério Público não quer apurar os crimes famélicos, o aborto clandestino, os pequenos assaltos nos sinais, as arengas conjugais, brigas de bar, furtos em supermercados, truculência de seguranças em casas noturnas, arruaças de trânsito ou furto do perfume da patroa.
Quer sim, os pretensos grandes casos, criando desta forma três tipos de investigações, as que vão para o Jornal Nacional, as que vão para o “Brasil Urgente” (programa sensacionalista de televisão) e as que engordam estatísticas. Investigar o carteiro, o punguista é coisa de polícia, enquanto contas na Suíça e nos paraísos fiscais estariam afetas à elite apuratória, leia-se, MP, na realidade, verdadeira invasora de uma ação que os tribunais de todas as instâncias insistem em dizer que não integra seu acervo atuante, o seu mister funcional. Vide introdução a esta fala.
Ao criar a hierarquia investigatória, inclusive com base no clicherizado brocardio do quem pode mais pode o menos, o Ministério Público, agora com a complacência de parte da imprensa, esquece não só as decisões supremas, mas também o próprio o processo evolutivo pelo qual passaram as polícias, às quais se somaram a sua competência e tradição investigatória, o altíssimo nível, que tem como indicador preliminar seus próprios concursos.
A Polícia Federal, por exemplo, cujo quadro orgulhosamente integramos, vem adotando os mais rigorosos testes, seja na alta exigência intelectual, no perfil psicológico e no seu aprimoramento técnico na Academia Nacional de Polícia, uma referência na América do Sul. Sem embargo, uma entidade historicamente inspirada nas polícias do Canadá, Estados Unidos e Reino Unido.
Tanto o perfil capacitatório quanto a eficiência das polícias são uma realidade. As cadeias e presídios estão lotados, não por obra dos representantes daquela instituição, mas sim das polícias. Registre-se por oportuno, que se muitos cidadãos ainda se encontram presos não é por culpa das polícias.
Ao mesmo tempo, muitos fiascos policialescos difundidos pela mídia não foram obra das policiais e sim das câmeras secretas e suas filmagens “James Bonescas”, promovidas por membros do MP alinhados com a programação “global”. Numa delas, em vez de prender em flagrante os pretensos criminosos, os procuradores limitaram-se a filmar, deixando em aberto um longo processo de discussão sobre a identificação das pessoas filmadas, sobre a legalidade do ato etc.
Criado o impasse, o Ministério Público recorre à imprensa. Formadores de opinião como Clovis Rossi e Josias Leite, do jornal Folha de S. Paulo, Boris Casoi (TV Record), para ficar apenas nuns poucos, têm destacado casos como o bem articulado “Maluf Gate”, em que o político Paulo Maluf é vendido pela imprensa como o maior estelionatário vivo da história do País, sem sentença com trânsito em julgado, dando a ele suporte político, inclusive, para dizer que, a cada campanha eleitoral desenvolve-se ou surge contra ele uma onda de denúncias.
Não só, operações como Anaconda, Vampiro e outras de nomes e sobrenomes inusitados, também servem de referência de bom trabalho do Ministério Público, não raro com a omissão do trabalho policial como pano de fundo ou até mesmo espinha dorsal. Tudo sob o sagrado espectro de que o Eldorado iminente é fruto do Ministério Público.
O maniqueísmo está lançado. De um lado está o Ministério Público representante do bem e de outro o satânico Maluf, personificando todas as mazelas institucionais, o câncer que ao longo dos anos corroeu nossa consciência cívica, nossas finanças.
Nem o Duda Mendonça conseguiria uma propaganda tão boa. O tema está na mídia e o apelo jornalístico é grande e repetitivo: será um prejuízo ao país, um prêmio à corrupção se o Tribunal invalidar o trabalho do Ministério Público. Caberá ao STF dizer sim ou mandar refazer tudo pela polícia.
É possível que com esse apelo mediático, essa panacéia política, esse exaspero sentimental, o Superior Tribunal Federal venha até a desdizer o que já disse, mesmo porque, assistir a mais um espetáculo de impunidade num país moralmente em estado de coma, doeria em todo mundo, inclusive em nós, que defendemos as prerrogativas da autoridade policial.
Mas não deixaria de ter sido uma verdadeira chantagem social, de ter sido um golpe baixo na Democracia e no Estado de Direito; não deixaria de ter sido um precedente para que, no futuro, qualquer prova ilegal possa vir a ser legitimada pelo clamor público, sepultando de uma vez por todas a harmonia entre os poderes e o ordenamento jurídico pátrio. Não deixará de ser ou ter sido, uma aventura temerária e prepotente onde fomos lançados pelos representantes do Ministério Público.
Armando Rodrigues Coelho Neto é delegado e presidente da Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal