"Ninguém tem direito de tirar vida de criança anencéfala."

por Héctor Velarde

Gostaria de compartilhar as seguintes considerações sobre a presença da Igreja nesse debate, sobre a dignidade da pessoa (criança) anencéfala, sobre alguns elementos que acompanham a (rápida) liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio Mello. Trata-se de considerações, não imposições, como alguém diria, para continuar refletindo, da maneira mais objetiva, sobre este assunto de vital importância. Ao longo deste texto também tentarei responder às observações contidas nos diversos correios que me chegaram, as observações que tem vínculo lógico com o nosso tema (para as outras coloquei um pequeno adendo no final).

A Igreja quer continuar — para isso foi fundada — o serviço realizado pelo Senhor Jesus, o Bom Samaritano: ela quer inclinar-se diante de toda a humanidade para curar suas feridas, mesmo que as pessoas achem que não precisam de ajuda (sempre respeitando a sua liberdade, pois ela é um dom do Criador e um “santuário onde nem sequer Deus mexe”). Acreditamos, seguindo tal parábola, que a Igreja é aquela pousada onde o Bom Samaritano continua a depositar a humanidade necessitada de ajuda, seja espiritual ou material. Para essa missão Ele nos deixa o auxílio e a força da graça. Em outras palavras, estamos aqui para servir à vida; e queremos fazê-lo como o Senhor Jesus, amando até o extremo (apesar de alguns períodos de trevas na história eclesial, onde alguns não agiram deste modo, em muito maior número e em incontáveis ocasiões, em todos os continentes, muitos homens e mulheres da Igreja testemunharam isso entregando suas vidas em defesa da vida e da verdade).

É com este pensamento e atitude que eu quis colocar-me à serviço de vocês neste debate. Alguns dos que acompanham esta exposição de idéias e me conhecem sabem disso e, além do mais, sabem que gosto de tentar responder a toda inquietação humana.

Assim, a Igreja entrou “no circuito” desse debate porque nada do humano é alheio a ela, e menos ainda quando falamos da vida. Por isso a Igreja se solidariza, como o Bom Samaritano, tornando-se “próxima” das pessoas que sofrem, que são agredidas, que têm carências de ideais e sentido, carências de pão, teto, saúde, etc. (só para ilustrar, vejam a ajuda enviada pelo Papa a grupos de muçulmanos no Iraque). Por isso, eu lamento absolutamente e torno minha a dor de muitas mães que passaram pela experiência da gravidez de crianças anencéfalas. Como em muitas outras coisas, nós todos sabemos que não necessitamos experimentar o mal para saber que é mal. Não precisamos assistir a todas as novelas da TV para saber que a banalidade e superficialidade são animadas por elas. Não precisamos consumir crack para saber que desse jeito estamos ganhando um lugar no cemitério. Não preciso votar em um “coronel nordestino” para saber que ele não resolverá radicalmente situações de extrema pobreza.

Quando somos capazes de sintonizar e entrar em comunhão com as pessoas com as quais nos relacionamos, as suas experiências se tornam para nós “experiências vicárias”.

E em todo este assunto a Igreja se aproxima tanto da mãe como da criança, que muitas vezes é esquecida: ela também tem direitos, embora não tenha voz… por isso a Igreja assume também o “brado” deste tipo de pessoas excluídas.

Por que entrei neste debate? Porque a criança anencéfala continua a ser uma pessoa, dentro ou fora do ventre materno. Suspender a gravidez de uma criança nessa situação será sempre suspender a sua vida. Ninguém tem esse direito. (Pelo mesmo motivo, sou contra a pena de morte.). O feto, desde sua concepção, é uma pessoa distinta da mãe. Uma pessoa que recebeu de Deus o dom da vida e o direito de viver pelo tempo que o Criador determinar. Na Igreja acreditamos nisso: Ele é Pai Criador, Ele infunde a vida e chama a sua presença do jeito que Ele acha melhor, para o bem de todos, embora algumas vezes não entendamos suficientemente alguns acontecimentos dolorosos. Esse é o drama que Camus expressa em “A peste”: nessa obra o escritor levanta o grito hodierno que pergunta pelo sentido do sofrimento humano e do mal.

A Igreja tem resposta para essa angústia: no âmago dela está o amor sem limites de Deus que se faz homem, identificando-se conosco até a morte, e vencendo essa limitação, abrindo-nos um horizonte de verdadeira esperança. Por isso, para compreender melhor toda esta questão, é necessário aproximar-se segundo esta perspectiva: isto coloca o debate jurídico e/ou moral dentro do seu verdadeiro contexto, o filosófico-teológico (a teologia é ciência, lembremos Maritain). Porém, insistir nisto seria estender-se demais para esta circunstância.
Dentro deste debate plural, tentarei dizer mais alguma coisa, voltando a linha de argumentação anterior.

Consideremos uma pessoa idosa que, por alguma doença, está em “estado vegetal”: com o mesmo critério, poderia suspender sua vida? Mais, consideremos um jovem que tenha sofrido um sério acidente e esteja condenado a passar todo o resto de sua vida ligado a máquinas. Não seriam essas pessoas igualmente portadoras de “patologias incompatíveis com a vida?” No entanto, sabemos bem que até o final da existência cada indivíduo tem um papel a cumprir junto aos seres humanos que se relacionam com ele. Um idoso ou um jovem em estado vegetativo que reclamam cuidados de seus familiares subliminarmente lhes ensinam a verdadeira caridade, o dar sem esperar retorno.

Enquanto há vida, ainda que haja dor, deve prevalecer o amor. Isso nos torna cada vez mais humanos. Inúmeras são as famílias que descobrem esse tesouro por terem que conviver com essa dura realidade.

Do mesmo modo, a mãe que carrega no ventre um ser que morrerá ao nascer, ainda assim carrega um filho a quem poderá amar infinitamente por toda a vida, vivo em seu ventre ou já à sua espera junto ao Criador. E a tristeza de perdê-lo tão breve será mitigada pela certeza do amor que há entre ambos. Ela é uma mãe especial, que gera um ser com uma breve missão nesta terra. Assim deve ser vista essa criança, e não como um “monstro”, uma “coisa”, que deve ser “jogada fora” o quanto antes.

Um padre conhece bem a dimensão do sofrimento dessas mulheres.
Uma criança anencéfala é tão pessoa humana como a mãe, como o idoso ou o jovem em estado “vegetativo”. Seja quem for, mesmo não honrando sua humanidade, toda pessoa humana tem uma dignidade que exige considerar sua capacidade de continuar existindo. Mesmo sem cérebro ou sendo um gênio, tendo 4 células ou tantas como tem um adulto, trata-se de uma pessoa humana.

Em essência, esta é a verdade que desconsidera a liminar que o Dr. Marco Aurélio assinou isoladamente. Neste ponto, eu gostaria de oferecer as declarações do presidente da União dos Juristas Católicos (O fato de serem “católicos” não os torna juristas de segunda categoria, não é verdade?

O mérito das declarações deve ser considerado sem preconceitos religiosos, é o próprio de uma sociedade plural e democrática), Dr. Paulo Leão: “Os juristas que analisam a questão da anencafalia estão mal informados do ponto de vista científico, e por isso a analisam muito superficialmente, tanto no que diz respeito à prevenção, quanto ao tratamento dado ao feto”. Para sustentar esta afirmação cita um texto aprovado por unanimidade pelo Comitê Nacional de Bioética da Itália (em 21/6/1996), que conclui: “O anencéfalo é uma pessoa viva e a reduzida expectativa de vida não limita os seus direitos e a sua dignidade”.

O mesmo advogado oferece também outros argumentos, que coloco à seguir:

A ação ajuizada pela CNTS (ADPF 54), se baseia nos preceitos mais genéricos da Constituição Federal, como:

1. A dignidade da pessoa humana; que neste caso desconsidera a dignidade da criança.

2. A liberdade; que aplicada como se propõe, seria de matar a criança no ventre materno.

3. O direito à saúde; sem levar em conta que a criança é um ser vivo e com direito à saúde.

Enfim, em tudo isto, acredito que é importante ver este drama também desde a perspectiva dos “mais pobres” nesta história, as crianças anencéfalas.

PS: Acredito que as observações que misturaram outros temas como pedofilia, Inquisição, etc., exprimindo uma argumentação “ad hominem”, suficiente resposta podem encontrar nos últimos estudos sérios sobre tais matérias (muito além da informação que fornecem os jornais, os palpites de rua ou os chamados “formadores de opinião” sem formação acadêmica); a Igreja não foge de encarar os pecados de seus filhos e filhas, mas o faz com a esperança que vem de Deus. A própria Bíblia não esconde as falhas de S. Pedro, mas mesmo ele tendo-as, o Senhor continua acreditando na sua capacidade de fazer o bem; do contrário seria não acreditar na sua capacidade de mudança e nos colocaria, sim, no grupo dos que queriam atirar a primeira pedra…

Héctor Velarde é padre

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