Estado tem de responder por tratamento desumano a presos

por Luís Guilherme Vieira

O Brasil, conforme noticia Cláudio Júlio Tognolli, será denunciado perante a Comissão de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), pelos maus tratos institucionalizados no país contra os presos. E por comungar desse ideal de inspiração humanístico, é que advogados dos quatro cantos de nossa terra, cansados de tanto vivenciar a criminosa inércia do Estado, estão, capitaneados pelo ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, o notável José Roberto Batochio, em progressão geométrica, aderindo a uma inquebrantável corrente que teve seu elo inaugural imantando em congresso realizado recentemente pela OAB do Paraná. Aqui, por justiça, devemos registrar que, não fosse os esforços de René Ariel Dotti e Elias Mattas Saad, coordenadores deste evento, talvez nada disso teria sido possível.

Com efeito, o sistema prisional brasileiro foi à garra e o Estado não tem a coragem (ou, o que é pior, a vontade política) para decretar, definitivamente, sua falência. Ninguém é ignorante o bastante para não perceber que discursos, normalmente mais acalorados em anos eleitorais, bem como as leis de pânico (já se cansou de tanto repetir que criminalidade, por ser fenômeno social, não terá fim, poderá ter controle) não resolvem os problemas da criminalidade que a tantos apavora. Em ambas as hipóteses, talvez elejam, aqui e acolá, alguns oportunistas de plantão. Nada mais. Não, como nada mais: isto já é muito danoso para uma sociedade carente de políticos (e de políticas) sérios, não é verdade?

É bom dizer logo: não pensem os ideólogos da terceirização do sistema prisional que isto representa, subliminarmente, uma campanha a favor da privatização. Ao contrário, somos radicalmente contra ela (felizmente, esse ainda é o pensamento majoritário que permeia a mente de todos), a qual, em nosso sentir, porventura implantada em terras patrícias, só trará mais problemas e mais malefícios a algo que, em médio prazo, parece não ter solução, tamanha a gravidade do problema e a incompetência das autoridades no trato de questão que nos é tão cara.

A privatização, é comentar, só beneficiará os gananciosos empresários da opressão (Executivos de Hotelaria Prisional, dirão os empolados. Será necessário ter o título universitário para exercer tão virtuoso cargo? Bem, tudo é possível, afinal de contas, senão mais estamos no país dos coronéis, por certo ainda estamos no dos bacharéis…), que terão as ações de suas empresas atingindo altos picos nas bolsas de valores, como aconteceu, por exemplo, com as empresas que exploram prisões nos Estados Unidos da América do Norte. Enquanto isto, a massa carcerária, em sua esmagadora maioria afastada do topo da pirâmide social, continuará a comer (quando lhes dão comida) o pão (normalmente mofado) que o Diabo (terá ele encarnado na pele do Estado?) amassou…

O sistema penitenciário encontra-se carcomido há anos. Os porteiros, depois de cuidadosamente trancarem os cadeados enferrujados das celas, sorrateiramente, escafederam-se, levando consigo os molhos de chaves, para que ninguém ouse dali retirar seus diletos hóspedes. Antes de tomar rumo incerto e não sabido, cuidaram de apagar todas as luzes, porque temiam, como ainda temem, serem denunciados por aqueles insistentes, como nós, que acham que Direitos Humanos não é algo disponível ou que paira, somente, no imaginário de alguns privilegiados cidadãos que sonham viver num mundo mais humanitário. Os síndicos (sim, foram vários) da massa falida, sabedores da atitude dos porteiros e com pavor dos credores, à socapa, também fugiram, indo ao encontro daqueles, porque de besta eles não têm nada.

A última vez em que todos foram vistos, corriam, corriam de mãos dadas, passos firmes e rápidos, transparecendo, aos desavisados, que corriam sem destino. Em verdade, corriam sim, como ainda correm, mas de medo, puro medo, é revelar. Porém, o destino deles está traçado, ou melhor, começa a ser traçado a partir dessa corrente que a cada dia ganha elo novo e mais forte. Por curiosidade e em tom de blague, dizem por esse mundo que nem sempre é de nosso Deus, que quando se deparam com uma grade encravada num desses incólumes condomínios de luxo espalhados Brasil afora, aceleram o passo, receando ser reconhecidos pelos condôminos, o quais, por aplaudirem suas administrações (afinal de contas, não eram eles os responsáveis por manter, presos, aqueles seres [humanos, é bom que não nos esqueçamos disso] por eles tidos como abjetos?), por certo os convidarão a voltar a seus postos, com o fim de exercerem suas nobilíssimas funções, mantendo, por conseguinte, bem longe de todos, é repetir, aqueles desgraçados que foram pegos pela teia da fatalidade. Nada disto os assustaria, não fosse o fato de que terão que abrir as portas que criminosamente deixaram trancadas (mas algum dia algum deles pretendeu abri-las?), e não saberão o que fazer com o depósito de apodrecidos corpos humanos que lá criminosamente deixaram entregues à própria sorte.

Sabe-se, de outro lado, que tentaram assistir, anonimamente, é claro, o documentário A Justiça, da premiada cineasta Maria Augusta, mas da sessão saíram rapidamente e de fininho, porque os protagonistas do filme poderiam ser um dos seus mais ilustres albergados e, por certo, não gostariam de vê-los em posição de destaque, por entenderem inconcebível, afinal de contas, como podem aqueles desgraçados se tornarem atores principais (e eles, os intocáveis, coadjuvantes de somenos importância), ainda que de um teatro macabro?

Se não fosse o suficiente, triste do governo que edita lei criando o regime disciplinar diferenciado (ou regime da desesperança, consoante o arguto René Dotti), por todos, é bom repicar, por todos os operadores do direito taxado com a balda da inconstitucionalidade. Tal regime está a reclamar, com urgência, um estudo mais acurado à luz da psiquiatria, porque ele é, por si só, uma máquina de fazer loucos ou mais loucos. Ao que parece, para os legisladores e governantes, isso não importa. O que importa é dizer que homens perigosos — aliás, o que significa homens perigosos mesmo? — estão trancafiados e sem direito a absolutamente nada. Não, eles têm um único direito. O direito de morrer. Mas o direito de morrer calado, porque ninguém, ninguém tem coragem ou o escrúpulo ou a misericórdia de ouvir suas súplicas.

Afinal de contas, são animais irascíveis, e os animais irascíveis não devem ser ouvidos, ainda que em suas pretensões legais. O Estado e seus dirigentes têm que começar a ser responsabilizados, nacional e internacionalmente, porque não podemos mais conceber, em pleno século XXI, homens sendo tratados com tamanha desumanidade. De fato, embora tenhamos a pétrea convicção, como Evandro Lins e Silva tinha, de que a cadeia é o reconhecimento mais explícito de que a sociedade dita moderna é incompetente para tratar de seus males, creio que o Judiciário deva pensar (pensar muito) antes de mandar, sem pejo, para as prisões, homens que lá não deveriam estar, porque os crimes por eles praticados não estão a merecer tamanha reprimenda.

Mas é preciso mais. É preciso que o Judiciário se humanize. É preciso que o juiz tenha a consciência de que está ali, a mando da sociedade, para julgar um semelhante. Um ser humano como outro qualquer, e não um monte de folhas numeradas e empoeiradas que formam, sem alma, um processo, no mais das vezes falho, por exclusiva responsabilidade do próprio Estado, desde o seu nascedouro. Enfim, o Estado-juiz está a julgar um cidadão, a princípio e por direito, inocente. Uma pessoa que tem o direito à vida, substantivo aqui utilizado em seu sentido mais amplo, que a Constituição da República Federativa do Brasil a todos garante, sem qualquer distinção, não é demasiado lembrar. É imperioso reagir.

E imprescindível que o juiz tenha coragem, ainda que esta coragem venha aparentemente na contramão da opinião pública (não, da opinião publicada, que, como se sabe, difere daquela). A cadeia, enquanto civilização não encontrar fórmula outra (descartada, é óbvio, as penas que atentem contra a vida e a prisão perpétua), há de ser reservada para poucos, muito poucos, e, assim mesmo, para estes raros casos, o tempo há de ser parcimonioso, porque o que alimenta, na sociedade, a incredulidade no sistema penal, não são as penas baixas ou altas, mas a incerteza do efetivo cumprimento daquela que é ao réu imposta, depois de findo um processo justo.

No mais, o Estado não pode esquecer que esses infelizes condenados à masmorra, não perderam, e não perderão jamais, o direito de ter a sua dignidade pessoal preservada. Isso não é um sonho. É um dever cívico que deve brotar na alma de cada cidadão.

Enquanto isto não acontece, vamos todos, em uníssono, cantar, em comemoração a Lei de Execução Penal, parabéns a você, nesta data (in)feliz, já que ela completou, no último dia 11 de julho, 20 anos de vida, sem que tenha saído do papel para cumprir sua missão social.

Luís Guilherme Vieira é advogado, professor e coordenador do Curso de Especialização em Advocacia Criminal da Universidade Candido Mendes (RJ e PR), fundador e conselheiro da Associação pela Reforma Prisional, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, dentre outros

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