Decisão do STF abre porta para a burla aos concursos públicos

por Ronaldo Pinheiro de Queiroz

O Plenário do Supremo Tribunal Federal considerou constitucional, em 25 de agosto deste ano, por seis votos a cinco, a Lei 10.843/04, que autorizou contratações temporárias no Conselho Administrativo de Defesa Econômica — Cade. A decisão foi tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.068) ajuizada pelo Partido da Frente Liberal (PFL) em novembro de 2003.

Relator do caso, o ministro Marco Aurélio havia concedido liminar para suspender a eficácia da Lei. Como fundamento, julgou que as atividades a serem desempenhadas pelos contratados são de natureza regular e permanente, motivo pelo qual devem ser exercidas por titulares de cargos públicos, após prévia aprovação em concurso público.

Contudo, a maioria do Plenário seguiu a divergência aberta pelo ministro Eros Grau, entendendo que o inciso IX do artigo 37 da Constituição Federal “não separa de um lado atividades em caráter eventual, temporário ou excepcional e de outro lado atividades de caráter regular e permanente. Não autoriza exclusivamente a contratação por tempo determinado de pessoal que desempenha atividades de caráter eventual, temporário ou eventual. Amplamente autoriza contratações para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, em uma e outra hipótese”(1).

Segundo o ministro Eros Grau, não existe discriminação, pois a autorização que se encontra no texto constitucional é ampla. Ele explicou que, no caso, o que se pretende é suprir a carência de pessoal temporariamente, enquanto é criado o quadro de pessoal permanente no Cade.

Em arremate, o ministro rebateu ainda o argumento de que o governo federal já deveria ter tomado providências para regularizar a situação de pessoal do Cade, que existe há dez anos. Disse que “esse Tribunal não pode punir a inércia da administração. É um tribunal que deve considerar fundamentalmente o que está escrito na Constituição”(2).

Votaram a favor das contratações temporárias no Cade os seguintes ministros: Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Celso de Mello e Nelson Jobim. Votaram contra, considerando a Lei inconstitucional, os ministros Marco Aurélio, Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence.

Assim, em decisão apertada e polêmica, o STF abriu as portas para a burla desenfreada aos concursos públicos, permitindo uma ocupação sazonal nas funções públicas e, pretendendo resolver um problema pontual de ausência de servidores no Cade, abriu um perigoso precedente para um sem número de contratações temporárias com o mesmo fundamento, cujos efeitos funestos serão aqui explicitados.

A Constituição da República praticamente inicia o Capítulo VII, referente à Administração Pública, afirmando que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração (CF, art. 37, II).

O concurso público é a forma mais democrática e legítima de se buscar as melhores pessoas, dentre as que participaram do certame, para ingressar no serviço público. Além de ensejar a todos iguais oportunidades de disputar cargos ou empregos na Administração Pública direta ou indireta, atende, a um só tempo, aos princípios da legalidade, igualdade, impessoalidade, eficiência e, acima de tudo, moralidade.

Como visto, a regra matriz para a acessibilidade na Administração Pública é a realização de concurso público. Contudo, a Constituição abriu apenas três exceções à regra, que são o cargo em comissão, algumas nomeações para os Tribunais(3) e, a que nos interessa no presente caso, a contratação temporária para atender a necessidade transitória de excepcional interesse público.

Nesse enfoque, a nossa Constituição diz que a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (CF, art. 37, IX).

Ficou bem claro no texto constitucional que essa espécie de admissão temporária no serviço público sem o devido concurso público só tem ensejo em situação restrita de excepcional interesse público.

Quando a Constituição conferiu à lei a possibilidade de estabelecer os casos de contratação temporária, não outorgou ampla discricionariedade para o legislador, pois estabeleceu como diretriz hermenêutica que tais admissões sem concurso público só servem para atender necessidade temporária de excepcional interesse público.

Portanto, a lei ordinária, que é o veículo normativo para estabelecer os casos de exceção, não pode fugir da razoabilidade e criar situações que não a de extremo interesse público, fugindo da vontade expressa do legislador constituinte, que se confunde com a própria mens legis.

A Lei 8.745, de 09 de dezembro de 1993, que foi criada para regulamentar o inciso IX, do art. 37 da Constituição da República, estabeleceu, de forma correta, os casos em que se apresenta a necessidade temporária de excepcional interesse público, tais como assistência a situação de calamidade pública, combate a surtos endêmicos, realização de recenseamentos, entre outros, sempre buscando atender a situações emergenciais e/ou de necessidades temporárias.

Contudo, o legislador nacional, mais adiante, olvidando-se do comando constitucional, editou a Lei 10.843/2004, autorizando o Cade a empreender contratação por tempo determinado, pelo prazo de 12 (doze) meses, prorrogáveis por igual período, do pessoal técnico imprescindível ao exercício de suas competências institucionais, limitando-se ao número de 30 (trinta). Não definiu, como se esperava para legitimar a contratação, nenhuma situação de necessidade temporária de excepcional interesse público.

Sobre o alcance da expressão necessidade temporária de excepcional interesse público, a doutrina abriu duas correntes, não totalmente divergentes.

A primeira, que é amplamente majoritária, diz que a necessidade da contratação deve ser sempre para função temporária. Se a necessidade é permanente, o Estado deve processar o recrutamento através do concurso público, via normal de acesso. Portanto, está descartada a contratação para admissão de servidores temporários para o exercício de funções permanentes. Neste sentido: JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO(4); ADILSON ABREU DALLARI(5); CELSO RIBEIRO BASTOS(6) e JOSÉ CRETELLA JÚNIOR(7).

A outra corrente entende que a contratação temporária tem lugar tanto para fazer frente a serviços de caráter temporário, como, e em circunstâncias especiais, a serviços de natureza permanente. Neste último caso, sustenta-se que a situação tem que ser deveras excepcional, como, por exemplo, vários funcionários de um determinado hospital pedem aposentadoria em massa, deixando o serviço público totalmente descoberto. Em casos que tais, a contratação seria válida somente pelo tempo necessário para um novo recrutamento via concurso público. Neste sentido: CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO.

Percebe-se, em uma ou outra corrente, que, independente da natureza transitória ou permanente do serviço, é indispensável a comprovação do excepcional interesse público, da ingente necessidade, da situação incomum e inesperada por que passa a Administração.

Ou seja, interpretando o alcance da expressão legitimadora da contratação temporária, a doutrina encontra total convergência no entender que essa admissão só tem razão de ser perante situações realmente excepcionais, não de “normal interesse público”, pois “excepcional” significa situações anômalas, de exceção, de repercussões imprevisíveis.

É neste ponto que, data vênia, reside o equívoco da decisão dos seis ministros do Supremo.

Percebeu-se que o Supremo seguiu a linha da corrente doutrinária que também admite contratações temporárias para suprir necessidades de serviços de natureza permanentes. Acontece que o alcance que a nossa Corte Constitucional deu a expressão necessidade temporária de excepcional interesse público foi muito amplo, servindo, basicamente, de válvula de escape para todo tipo de contratação, sempre quando demonstrada a carência de pessoal.

Ora, sucateado como hoje está o serviço público, e como a carência de pessoal não deixa de ser uma apreciação subjetiva, não há dúvida que quase todos os setores da administração pública estão agora legitimados a contratarem temporariamente um contingente de pessoas para o fim de suprir tais deficiências.

O grande problema é que as pessoas que irão desempenhar essas funções permanentes, recebendo treinamento adequado para tanto – muitas vezes com investimento financeiro pelo Estado bastante considerável –, tendo acesso a informações sensíveis, relacionando-se com pessoas com poder de decisões importantes, entre outros fatores, quando estiverem “engrenando” no trabalho, terão de deixar o serviço público.

A título de exemplo, as contratações no Cade para técnicos na área econômica ou na Anatel para área de regulação, cargos estratégicos que são, permitem ao contratado, a par da capacitação extraordinária financiada pelo Estado, o acesso a informações sensíveis que não devem chegar ao público externo, sendo dever funcional do servidor – rectius: contratado – guardar o sigilo das informações que recebem em razão do cargo. A rigor, esse dever dura enquanto durar a sua qualidade de agente público lato sensu.

É fato notório que, após o término do prazo do contrato, ou mesmo antes, boa parte desse pessoal é absorvida pela iniciativa privada, pois os atrativos são grandes, tendo em conta que não despenderão recursos financeiros com capacitação – para isso o Estado já se antecipou –, bem como as informações obtidas no serviço público serão de muita valia para competir com mais força no mercado, que é voraz. Além disso, os “contatos” e o bom relacionamento com servidores graduados desses órgãos, poderão dar ensejo ao tráfico de influência e advocacia administrativa.

A falta de professores efetivos nas universidades públicas, que é fato, poderá ser suprida ad aeternum pela contratação temporária de professores substitutos, já que, como disse o ministro Eros Grau, o STF “não pode punir a inércia da administração. É um tribunal que deve considerar fundamentalmente o que está escrito na Constituição”.

Consciente disso, o ministro Pertence, que votou pela inconstitucionalidade da Lei, reconheceu que: “Estamos abrindo uma porta à fraude sistemática ao concurso público”(9).

Esse exemplo será de resto seguido para a admissão de pessoal nos diversos setores do serviço público, motivo pelo qual tememos que o concurso público passe a ser exceção, e não a regra, como ingenuamente escrevemos linhas acima. Mas como a última palavra da interpretação da Constituição é do STF, é melhor o caro leitor desconsiderar a doutrina citada acima, bem como o próprio texto que escrevi, pois o que aprendi estava errado.

Notas de Rodapé

1.Trecho retirado do sítio do STF, mais especificamente no link notícias do STF: http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=103102&tip=UN

2. Trecho retirado da mesma fonte.

3. Vide arts. 73, § 2º, 94, 101, 104, parágrafo único, II, 107, 111, § 2º, 119, II, 120, III, e 123, todos da CF/88.

4. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 1ª edição, p. 36.

5. DALLARI, Adilson Abreu. Regime Constitucional dos Servidores Públicos, 2ª edição, Editora Revista dos Tribunais, pp. 124 e 126.

6. BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, 3º Volume, Tomo III, Ed. Saraiva, 1992, pp. 98

7. JUNIOR, José Cretella. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 4, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 2203.

8. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Direito Administrativo na Constituição de 1988, Revista dos Tribunais, 1991, p. 194‑8.

9. Trecho extraído de reportagem do Jornal Folha de São Paulo constante do sítio: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u63588.shtml

Ronaldo Pinheiro de Queiroz é procurador da República no Distrito Federal e atua na área de Concursos Públicos.

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