por Valter Foleto Santin
Nos últimos tempos verificou-se uma maior participação do Ministério Público brasileiro na fase de investigação criminal, seguindo a tendência mundial e dos países desenvolvidos, em que é o MP quem dirige as investigações, com apoio da polícia, objeto de meus estudos — O Ministério Público na investigação criminal, Edipro, 2001. O MP não podia mesmo continuar alheio e distante, devendo assumir a liderança no combate ao crime (68% do povo quer o MP na investigação de todos os crimes e 19%, quando necessário, in Pesquisa sobre o Ministério Público no Brasil, CONAMP, 2004).
A atividade de investigação criminal destina-se principalmente à elucidação da autoria e materialidade do delito, para a formação de convencimento (opinio delicti) do Ministério Público, para a ação penal pública, submetida a denúncia e o arquivamento ao controle do juiz. No processo judicial, há repetição das provas da investigação, em atendimento aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, inexigíveis na fase pré-processual, por ausência da condição de litigante ou acusado (artigo 5º, LIV e LV, CF).
A atribuição normal para a realização de investigação criminal é das polícias, através de IP e TC. Porém, a polícia não detém exclusividade da investigação criminal, por tradicional atuação de outras autoridades (artigo 4º, caput, CPP), sendo universalizada a investigação para facilitar o acesso à justiça.
O acesso à justiça é facilitado pelo aumento do leque de entes legitimados a investigar e maior número de casos apurados, numa universalização da investigação, permitindo elevação da quantidade de ações penais. O constituinte não condicionou a realização de investigação policial para o ingresso de ação penal (artigos 5º, XXXV, 129, I e 144, CF), procedimento facultativo (artigos. 39, parágrafo 5º e 40, CPP), sendo que o sistema acusatório (artigo 129, I, CF) pressupõe a separação entre as funções de acusar, defender e julgar, no qual a investigação criminal compõe a função acusatória.
O principal obstáculo do acesso à justiça na esfera criminal relaciona-se à investigação criminal, por qualidade e quantidade insatisfatórias da investigação policial. No estado de São Paulo a polícia investiga somente 18% dos casos (1997, 1.417.611 crimes e apenas 255.008 inquéritos policiais; 1998, 1.588.234 crimes e 299.923 IPs), com esclarecimento de apenas 2,5% dos crimes (1997).
O princípio da universalização da investigação criminal representa o aumento do leque de pessoas e entidades legitimadas a participar no trabalho de investigação criminal. Contrapõe-se ao monopólio policial. A universalização da investigação tem relação com a democracia participativa, a maior transparência dos atos administrativos, a ampliação dos órgãos habilitados a investigar e a facilitação e ampliação de acesso ao Judiciário, princípios decorrentes do sistema constitucional atual. O conflito entre o interesse público/social e o corporativo da polícia deve ser resolvido com a prevalência do interesse social de investigação por vários órgãos.
Não há exclusividade da investigação criminal por parte da polícia. O monopólio policial não se coaduna com o sistema constitucional vigente, que prevê a concorrência de atribuição, extraída do poder investigatório das CPIs (artigo 58, parágrafo 3º, CF) e do Senado Federal nos crimes de responsabilidade (artigo 52, I e II), o exercício da ação penal e o poder de investigação do Ministério Público (artigo 129, I, III e VI), o direito do povo de participar dos serviços de segurança pública (artigo 144, caput), incluída a investigação criminal (artigo 144, parágrafo 1º, I e parágrafo 4º), o acesso ao Judiciário (art. 5º, XXXV) e o princípio da igualdade (artigo 5º, caput e I). Nem o MP tem total privatividade da ação penal pública (artigo 129, I), por possibilidade de ação subsidiária (artigo 5º, LIX, CF).
Não se extrai do sistema de Segurança Pública a exclusão de outros entes públicos ou privados. Ao contrário, o constituinte até estimulou a participação ampla no setor, fixando o “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos” (artigo 144, caput, CF), numa autêntica parceria público-privada positiva, observando-se que a investigação criminal é uma das funções do gênero segurança pública, cujas outras espécies são prevenção, repressão, polícia de fronteiras e polícia judiciária. Note-se que a investigação criminal e a polícia judiciária são funções diferentes entre si, sendo duas atividades policiais distintas (de apuração de infrações penais e de polícia judiciária) e com duas finalidades diversas (investigação e cooperação).
O constituinte colocou-as em incisos diferentes (I e IV) do §1º do artigo 144, e no seu § 4º a palavra “funções” é usada no plural e as frases sobre as incumbências são ligadas pela conjunção aditiva “e” e o artigo “a”, sinal de duplicidade do assunto tratado no período. Não se sujeita à “exclusividade” (nem tão exclusiva assim), restrita à função de polícia judiciária da União (artigo 144, parágrafo 1º, IV).
A legitimidade constitucional do Ministério Público para exercer a investigação criminal tem relação direta com as suas funções institucionais (artigo 129, CF). De início, o princípio da privatividade da ação penal (artigo 129, I, CF) deve ser interpretado com a ampliação do conceito de ação penal pública, parcela da soberania estatal, para incluir a função de investigação criminal. O Ministério Público detém poder de promoção de procedimentos administrativos, de várias espécies, desde o nominado “inquérito civil” para proteção de direitos difusos e coletivos (artigo 129, IIII, CF) até outros procedimentos inominados para outras áreas de atuação (artigo 129, VI, CF).
O procedimento para apuração de delitos, de natureza administrativo-criminal, é adequado ao perfil institucional do MP, função que preenche perfeitamente o princípio de atuação e proteção social ampla, norma aberta e de conceito jurídico indeterminado, com intensa compatibilidade com a sua finalidade (IX) de acusador público (I). Também é autêntico exercício de controle externo da atividade policial (VII).
A investigação pelo Ministério Público deve se pautar pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, inerentes à Administração Pública (artigo 37, caput, CF), preservando os interesses da sociedade e do investigado, em atendimento aos preceitos legais, agindo de forma similar ao procedimento adotado pela autoridade policial no inquérito policial, com os poderes e instrumentos especiais do Ministério Público, sem prejudicar ou beneficiar deliberadamente o investigado, uso de meios morais e éticos, de forma pública e transparente, na busca de celeridade e melhor resultado, inclusive em co-participação com órgãos policiais, tudo sob controle judicial próprio.
Espera-se que o E. STF prestigie e confirme o direito de investigação do MP, os princípios da universalização da investigação criminal e do acesso à justiça criminal, em julgamento paradigmático (INQ. 1968, MPF x Remy Abreu Trinta), em prol dos interesses sociais e do Estado Democrático de Direito, possibilitando a persecução de todos os infratores das leis penais e para que a Justiça possa também atingir os engravatados, não apenas ladrões de galinha ou de melancia.
Valter Foleto Santin é mestre e doutor em Processo (USP) e promotor de justiça em São Paulo.