por Maurício Corrêa
Tenho dito às pessoas com quem convivo, e assim procurei agir em minha vida pública, que o bom senso se coloca como fator indispensável em qualquer atividade que desempenhemos. Brasília e o Brasil tomaram conhecimento do que ocorreu na UnB com os alunos militares vindos de outras faculdades, com matrícula garantida.
Antes, para dirimir a questão, a Advocacia Geral da União emitiu parecer que assegurou aos militares e seus dependentes, quando transferidos, acesso às universidades públicas, mesmo que no local de onde vieram estivessem cursando faculdades particulares. Em Brasília a UnB suspendeu o vestibular de direito, tal o número de transferidos que ocuparam todas as vagas.
A AGU foi provocada, tendo em vista a existência de conflito de soluções apresentadas para o caso: o Ministério da Educação entendia que o acesso dos transferidos só poderia ocorrer entre instituições congêneres — de universidade pública para universidade pública, e de particular para particular —, enquanto o Ministério da Defesa sustentava que os militares não estão sujeitos a essa restrição, garantido o acesso às universidades públicas, pouco importando a forma de ingresso original.
A AGU acabou endossando o entendimento do Ministério da Defesa, que deve ser respeitado, até porque embasado, inclusive, em precedentes judiciais. O tema, no entanto, ganha maiores proporções, uma vez que o parecer foi aprovado pelo presidente da República, o que significa dizer que, no âmbito do Poder Executivo, tem força de lei, devendo ser observado pelo Ministério da Educação e pelas universidades federais a ele vinculadas.
Pergunta-se: é justa essa decisão? Está ela em harmonia com os princípios democráticos? É uma prerrogativa legítima dos militares ou um privilégio inaceitável?
Volto ao bom senso a que me referi. Com efeito, o servidor público está sujeito a ser transferido, obrigatoriamente, para servir em outra localidade, sempre que o interesse do Estado o exigir. É o que, no jargão administrativo, denomina-se remoção ex-officio. No caso dos militares, a movimentação é ainda mais constante, fazendo parte, mesmo, da evolução natural da carreira.
Por conseguinte, nada mais razoável que esse mesmo Estado garanta as condições necessárias para que o servidor faça a sua mudança e se instale, adequadamente, em seu novo domicílio. Para isso, ainda recebe ajuda de custo e outros favores legais. Dentro dessa mesma perspectiva de ordem lógica, a lei assegura aos estudantes removidos vaga nas escolas, por transferência.
Até aqui, pois, nada de privilégios, já que tudo isso, nada mais é do que a contraprestação, a cargo do Estado, em virtude do ônus da transferência do servidor. Por seu lado, permitir que esse servidor ou seu dependente ingresse em uma universidade pública, se na origem foi aprovado para matricular-se em instituição de ensino particular, parece extrapolar a linha divisória entre o que é prerrogativa legítima e privilégio indefensável.
Ora, a universidade pública é hoje não apenas um veículo de formação superior da pessoa, mas um instrumento estratégico de desenvolvimento tecnológico de extrema importância para o país.
Nessas instituições concentram-se qualificados professores, com variedade de cursos, entre os quais os que exigem investimentos sem retorno, e que as escolas privadas não mantêm. Nada mais natural que todos almejem estudar e se formar nessas universidades, seja pela gratuidade do ensino, seja pelo nível de qualidade, o que faz com que os concursos públicos de ingresso sejam os mais concorridos.
Permitir que alguém burle essa forma democrática e transparente de acesso, sob a alegação de que foi transferido no interesse do Estado, não soa correto. Primeiro, porque essa pessoa, independentemente de sua qualificação — militar, filho de militar, servidor civil, cônjuge de servidor, ou outra qualquer —, não obteve aprovação para o ingresso, sempre mais difícil, em uma universidade pública.
Em segundo lugar, porque, quando alguém é transferido de uma instituição pública de ensino para outra da mesma natureza, além da prévia demonstração de ter condições de cursar uma faculdade de alto nível em igualdade de condições com os demais, abre, na universidade de origem, uma vaga para ser disputada por todos os demais interessados e habilitados.
Não se pode dizer, assim, que o transferido, nesse caso, esteja subtraindo uma vaga de outrem, dado que, na verdade, dá-se tão-somente uma troca de local. Não é a mesma coisa, quando o transferido vem de faculdade privada e, nesse caso, é claro que não há essa simples mudança de endereço, sendo evidente o prejuízo a todos os potenciais candidatos àquela vaga.
Não se descobriu ainda método mais igualitário e eficaz de acesso do que o concurso público, em que a diferença entre um cidadão e outro se dá pelo mérito. Desvirtuar esse regime, que vem dando certo e tem o aval de toda a sociedade brasileira, não é o melhor caminho. Os militares, servidores que merecem o respeito da nação, devem ter, quando removidos de ofício, a garantia de transferência, porém, observada a paridade entre as instituições de origem e destino. Caso contrário, o que antes revela prerrogativa justa e legítima, transforma-se em privilégio odioso.
A Constituição Federal tem como fundamento essencial, a observância ao princípio da igualdade, e o reitera, em várias disposições, tais como, nos artigos 1º, II; 3º, IV; 4º, II; 5º, caput, I e XLI, entre outros. Não sem razão, e dentro dessa mesma perspectiva, o artigo 206 dessa mesma Constituição arrola, como princípios fundamentais do sistema educacional, a igualdade de condições para acesso e a gestão democrática do ensino público (incisos I e VI).
Por isso mesmo, penso que a interpretação de qualquer lei que venha assegurar o ingresso em universidades estatais, por meio de transferência, somente se legitima se levar em consideração esses postulados. Não se trata aqui de impor restrições não instituídas pela lei, como sustentou o parecer já mencionado, mas de ver, ler e aplicá-la, segundo os princípios constitucionais que informam, não apenas a norma em si, mas toda e qualquer relação da sociedade brasileira e dela com o Estado. A exegese acolhida pela AGU, segundo entendo, embora possa ser a melhor na análise isolada da lei, não está em harmonia com a Constituição Federal.
A sociedade brasileira tem participado cada vez mais do debate em torno dos rumos da nação, em especial a partir da Carta de 88, e não tem tolerado desvios aos postulados que formam a base da República e do Estado de Direito Democrático. Ações paternalistas de outrora não são mais aceitas, e os privilégios que choquem com as garantias do cidadão devem e precisam ser eliminados.
Não se deve permitir que um direito legítimo e justo dos servidores, civis ou militares, de ver assegurada a transferência escolar seja desfigurado e torne-se, perante a opinião pública, discriminação mesquinha, privilégio desmedido. É preciso que o governo tome providências imediatas para repor as coisas no devido lugar, de modo que a igualdade, entre cidadãos, seja respeitada, permitindo que a interpretação da lei, dada pelas universidades, possa continuar, sem causar prejuízos a ninguém, nem mesmo aos beneficiários do citado parecer.
Se tal não ocorrer, espera-se que o procurador-geral da República ou quaisquer dos agentes autorizados pelo artigo 103 da Constituição Federal suscitem a inconstitucionalidade, em parte, do artigo 1º da Lei 9536, de 11 de dezembro de 1997, para dar-lhe interpretação conforme a Constituição, de sorte que a transferência do servidor seja obrigatória, desde que as instituições de ensino, originária e destinatária, sejam congêneres.
Se nada disso for possível, que se altere, por lei, essa ignomínia e desrespeito aos direitos do cidadão, para que as desigualdades e injustiças não remanesçam. É preciso que alguém tenha bom senso para pôr termo a esse opróbrio lançado contra o princípio da igualdade entre os cidadãos brasileiros. Aguardemos.
*Originalmente publicado no Correio Braziliense desta segunda-feira (4/10)
Maurício Corrêa é advogado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal