por Márcia Regina Machado Melaré
Se há uma decisão do Supremo Tribunal Federal que será acompanhada com muita atenção, por suas intensas relações com os padrões éticos e morais da sociedade brasileira e, ainda, pelo teor de natureza científica que expressa, será sobre o direito da gestante de se submeter à antecipação terapêutica do parto, no caso de feto anencefálico, cuja formação conhecida como “ausência de cérebro” o torna incompatível com
a vida extra-uterina.
Antes do mérito sobre a questão, o ministro Marco Aurélio havia concedido, em sede de liminar, tal direito às gestantes portadoras daquele tipo de anomalia, conforme despacho dado na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, solicitada pela Confederação Nacional de Trabalhadores da Saúde(CNTS), habilitada para promover a medida, nos termos do art. 103 da Constituição Federal.
Qualquer que seja a decisão do STF, a questão intensificará o nível da polêmica que já se trava em diversos conjuntos sociais organizados, particularmente nos ambientes da religiosidade, nas áreas profissionais do Direito e da Medicina, além dos grupamentos que promovem a defesa da
condição feminina e no próprio Congresso Nacional, por onde tramitam dois projetos de leis sobre o assunto, prevendo alterações no Código Penal.
Argumentos de valores ético e moral, de um lado, e fatores de ordem científica, de outro, são colocados frente a frente, impondo uma discussão que, em certos momentos, alcança as esferas mais elevadas dos dogmas, das crenças e dos preceitos sobre a natureza da vida e da morte. Portanto, não há como separar a situação endógena – a anomalia em um feto que sobreviverá, no máximo 48 horas – da abordagem exógena, em cujo interior se situam as estruturas e os padrões culturais
das sociedades e suas vivências éticas, morais e religiosas.
Em termos gerais, a questão assim se coloca: a mãe tem direito a interromper a gravidez ou deve levar a gestação até o fim? A permissão para o aborto de portadores de anencefalia não poderia, mais adiante, justificar o aborto de neonatos com outras deficiências (denominação do aborto eugênico, em sua conceituação mais ampla) e mesmo a eutanásia de doentes terminais ou portadores de doenças consideradas incuráveis?Trata-se de duas abordagens que precisam ser devidamente respeitadas, principalmente quando se levam em consideração as bases de defesa recíprocas e os campos de hipóteses levantadas.
No primeiro caso, que é o tema abordado, não se podem deixar de considerar as indicações feitas pela medicina, quando projetam as patologias maternas decorrentes do feto anencefálico, como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líquido amniótico), grande fatores de risco da mulher gestante, na gravidez. De outra parte, apontam-se relevantes matizes morais e religiosas a determinar o prolongamento da gestação, tais como o respeito à humanidade do ser, independente de sua racionalidade, e o direito à integridade da vida.
A abordagem dos fatores favoráveis à interrupção da gravidez, nesses casos, abriga o argumento de que a gestante deve ter o direito de defender sua integridade física. Se não há um procedimento médico capaz de minimizar seu sofrimento físico e psicológico, na certeza de que ao feto nada poderá ser feito para extirpar ou mesmo atenuar a anomalia, a gestante está diante da violação de seu direito fundamental à vida com segurança. Além disso, nesses casos, sequer estaríamos falando de aborto, em seu sentido técnico, já que o feto que se desenvolve sem cérebro não tem potencialidade de vida extra-uterina.
Pelo conceito de aborto legal, no Brasil, a interrupção da gravidez pode ocorrer em fetos com total potencialidade de vida, mas, por terem sido gerados por estupro ou em razão de a gestação causar risco de vida à mãe, a interrupção pode ser autorizada. Ora, se a legislação brasileira já aceita o aborto de feto com potencialidade de vida, deve permitir os procedimentos médicos para a interrupção das gestações de fetos inviáveis. Não podemos, também, deixar de considerar a abordagem científico-pragmática: se a legislação declara morto um paciente, após a constatação de sua morte cerebral (inclusive para fins de transplante de órgãos), a interrupção da gestação de um feto anencefálico se ompatibiliza com essa hipótese legalmente prevista.
Alguns países já consideram lícita a interrupção da gestação por má formação do feto, tais como Bélgica, França, Espanha, Itália, Suíça, Hungria, Áustria, Cuba, Nova Zelândia, República Checa, diferenciando-se as legislações em função do tempo e do risco de saúde ou de vida da mulher ou do feto. Já o México, Paraguai, Venezuela, Equador, China, Chile, Argentina e Colômbia não permitem o aborto seletivo, por motivo de deficiência de formação do feto.
Ante as considerações feitas , chega-se à conclusão de que o direito de opção de uma mulher que enfrenta tal situação é a máxima a ser defendida e garantida. E tal garantia deve ser obtida mediante alteração da legislação penal ou por meio de interpretação exegética que o Supremo Tribunal Federal fará do direito constitucional à vida, ao se pronunciar nos autos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, n. 54, impetrada pela CNTS.
O direito à vida, de acordo com preceito que o atribui à mão divina, é fundamento que merece todo respeito. Mas, dentro dos parâmetros da democracia de respeito e solidariedade, que precisamos sustentar nessa matéria, o que deve prevalecer é o direito à liberdade de decisão, direito ao livre arbítrio da mulher. A preservação da autonomia da vontade, ainda que
balizada por limites de índole científica, que confirmem a inviabilidade da vida extra-uterina por falta de solução médica, constitui o meio termo entre os justos e legítimos direitos da mulher e os do feto.
Trata-se do meio termo entre o aborto livre, tal como autorizado pelos países mais liberais como Holanda e Estados Unidos, e o aborto eugênico ou profilático.
Por mais que se discuta a questão, ninguém, jamais, saberá ditar – genericamente e “erga omnes” – o melhor valor, a melhor crença ou dogma moral, ético, religioso, cultural e social para solucionar o tema de maneira satisfatória para todas as partes. Somente a gestante, com tranqüilidade, liberdade e sem dúvidas médicas, sopesando seus próprios e íntimos conceitos e valores, devidamente cotejados com os elementos exógenos de seu próprio meio social, deve decidir o rumo tomar.
A defesa do direito ao exercício do livre arbítrio das gestantes acarretará, para muitas, a remoção de uma pena cruel, ilegítima e dolorosa a elas imposta pela própria condição de conduzir a gravidez de um filho inviável.
Márcia Regina Machado Melaré é advogada do escritório Approbato Machado e presidente em exercício da OAB-SP