Bloqueio de créditos em virtude de débitos fiscais é ultrajante

por Luís Felipe Bretas Marzagão

Não é de hoje que o Estado cobra tributos absolutamente ilegais dos contribuintes. A história brasileira, rica em exemplos de barbaridades fiscais, demonstra que o respeito à lei e aos postulados mínimos garantidos aos cidadãos é sempre colocado de lado em virtude de premências financeiras da administração pública.

Nas últimas décadas, muitos impostos e contribuições inconstitucionais foram cobrados das pessoas e sociedades, sendo que poucos foram efetivamente restituídos.

É como se o sistema tributário brasileiro houvesse sido concebido não para vigorar, mas para ser desrespeitado. Não é compreensível por que são criados princípios e normas se eles não são observados. Melhor seria, então, que eles simplesmente não existissem. Pelo menos não se assistiria a tantas violações e não se perderia a crença no direito, uma vez que o efeito prático (a cobrança indevida de tributos) seria verificado de qualquer maneira.

Apesar das adversidades, os contribuintes, firmes na luta contra os abusos fiscais, recorrem ao Poder Judiciário e, por vezes, conseguem ver reconhecido o direito à restituição daquilo que foi indevidamente cobrado. No transcurso de décadas de espera e calotes constitucionais, como por exemplo a permissão de parcelamento de precatórios judiciais em até dez anos (artigo 78 do ADCT), os contribuintes ainda vivos vão recebendo aos poucos o que têm direito.

E quando se pensa que o Estado não dispõe mais de meios para maltratar os administrados, ele sempre surpreende com incomparável capacidade criativa.

Assim é que foi publicada, em 22 de dezembro de 2004, a Lei 11.033 (produto da conversão da MP 206/04), que determina, no artigo 19, a apresentação de certidões negativas de tributos federais, estaduais, municipais, bem como certidão de regularidade para com a Seguridade Social, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e a Dívida Ativa da União como condição para autorização de levantamento das quantias decorrentes de precatórios judiciais.

Como conseqüência, a prática corrente é o pedido, pelas Procuradorias das Fazendas, de bloqueio de créditos decorrentes de ação ajuizada contra o Poder Público, em virtude da existência de outros débitos tributários em nome do contribuinte. Ou seja, quando a ação já está finda, em fase de pagamento de precatório, a Fazenda Pública pede a suspensão do levantamento das parcelas que vão sendo depositadas nos autos, sob o argumento de que aquele contribuinte possui débitos fiscais.

Vale dizer, criou-se uma nova forma de coerção, de maneira inconstitucional, para obrigar os contribuintes a regularizar os débitos tributários. O raciocínio do Estado é o seguinte: “Se você me pagar o que deve, eu lhe pagarei o que devo”, como se fosse possível condicionar a eficácia de uma decisão já transitada em julgado a fatos estranhos ao processo judicial do qual ela decorre.

Ora, o contribuinte suporta durante décadas o regular processamento da ação, é obrigado a aguardar um pagamento parcelado em dez anos, perde a fé no Poder Judiciário, e, quando vai finalmente receber o que desembolsou de maneira indevida no passado, é surpreendido com uma prática totalmente abusiva, que lhe tolhe o patrimônio sem observância do devido processo legal.

Como se sabe, a Fazenda Pública dispõe de meios legalmente previstos para constranger o patrimônio dos cidadãos em virtude de débitos fiscais. Trata-se do procedimento disciplinado na Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/80). Esse procedimento, em razão da existência do mandamento constitucional de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5o, LIV, CF), é informado por uma série de normas rígidas que não podem ser dispensadas nunca (ajuizamento de ação própria, citação, oportunidade de defesa, produção de provas etc).

Ao dispensar esse procedimento para pretender constranger o patrimônio das pessoas e sociedades nos autos de uma outra ação, proposta inicialmente com a finalidade de restituir valores indevidamente recolhidos pelos contribuintes, o legislador olvida o primado do devido processo legal e, sobretudo, ignora a eficácia imutável e indiscutível da coisa julgada.

O ordenamento jurídico vigente atribui força imperativa e inevitável às decisões do Poder Judiciário. Isso significa que as decisões judiciais são impostas a todos independentemente da vontade de cada um. É um atributo da jurisdição, decorrente da previsão de que as sentenças terão “força de lei” entre e as partes (arts. 467 e 468 da Lei 5.869/73 – Código de Processo Civil).

Ao condicionar o levantamento dos créditos decorrentes de ação judicial à apresentação de certidões negativas de tributos, o Estado está, na verdade, pretendendo furtar-se da imperatividade e inevitabilidade da decisão judicial que o condenou a devolver determinada quantia ao contribuinte.

É importante observar que o crédito devidamente reconhecido em juízo, a título de restituição de tributos ilegais, já faz parte do patrimônio do contribuinte (tanto que a sentença condenatória constitui título executivo judicial – art. 584, I, da Lei 5.869/73 – CPC). O fato do dinheiro ser pago por meio de execução forçada e de maneira parcelada não descaracteriza essa natureza.

Portanto, se já é um bem do contribuinte, tal crédito não pode ser tolhido sem observância do devido processo legal. Essa importante conclusão é um dos custos do Estado democrático de direito, que garante a liberdade e a propriedade dos bens das pessoas (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” – art. 5o, LIV, CF).

Justamente por isso, o Poder Judiciário, sensível ao comando constitucional, nega pedidos dessa natureza e autoriza o levantamento dos depósitos pelo contribuinte.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “Não é lícito ao Fisco apropriar-se de tal depósito a pretexto de que existem outras dívidas do contribuinte, oriundas de outros tributos. Semelhante apropriação atenta contra a coisa julgada (CPC, Arts. 467 e 468).” (STJ, RESP 297.115, DJ 04/06/2001, p. 72. No mesmo sentido: STJ, AGRMC 3.008, DJ 23/04/2001, p. 120, RSTJ 146/59)

Na mesma linha, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região também impossibilitou o bloqueio: “A existência de ação contra o exeqüente em outro juízo não autoriza, por si só, o bloqueio do crédito, não se justificando a retenção de valores para futura satisfação do crédito da Fazenda perante outra Vara Federal.” (TRF4, AG 2003.04.01.055488-0, DJ 03/03/2004, p. 354)

A conclusão é decorrência lógica do sistema processual em vigor, bem como do princípio do devido processo legal, porquanto é patente que uma ação proposta pelo contribuinte contra o Estado, para restituição de tributos ilegais, não pode abarcar pedidos fazendários para que sejam liquidados débitos fiscais. A cobrança de créditos tributários da Fazenda Pública está adstrita tão-somente ao procedimento da execução fiscal, nos termos da lei.

É somente no âmbito da ação de execução fiscal que o juiz pode determinar a expropriação de bens do contribuinte para fins de satisfação de débitos tributários. Isso nunca poderia ser feito por meio de uma ação proposta pelo contribuinte contra a Fazenda Pública, até porque, nesse caso, a expropriação de bens dá-se no sentido oposto (do contribuinte contra a Fazenda, para que seja satisfeita a restituição dos valores indevidamente recolhidos).

Portanto, se o juiz não tem poderes, fora da execução fiscal, para determinar o pagamento do débito tributário, então como querer condicionar a realização do crédito já reconhecido no processo judicial ao pagamento de débitos fiscais perante a Fazenda? É um contra-senso que não encontra amparo em qualquer princípio de direito.

Em muitos casos, aliás, os débitos inscritos na dívida ativa em nome dos contribuintes referem-se apenas a erros em declarações de tributos, guias de pagamentos preenchidas incorretamente etc, como se tem constantemente observado. Em outras situações, os débitos simplesmente não existem e são cobrados em duplicidade. As filas para entrega de requerimentos de revisão (“envelopamentos”) na Procuradoria da Fazenda Nacional são provas disso e falam por si sós.

Vê-se, a partir daí, além da afronta aos princípios mais básicos de direito, como já se expôs, a perversidade do mecanismo adotado pela Lei 11.033/04.

Com esse diploma normativo, os cidadãos recebem a mensagem estatal de que não adianta mesmo entrar em juízo para cobrar tributos inconstitucionais. O Estado quer vencer pela força, e não pelo direito, o inconformismo dos cidadãos quanto a cobranças indevidas. Irrompe, assim, mais um obstáculo para a cobrança judicial de tributos ilegais, esvaziando-se o sistema tributário brasileiro e o propósito do Poder Judiciário.

O único argumento que pode fundamentar um nonsense como esse é o raciocínio arbitrário de um Estado que entende legítimo o próprio calote e, por estar em uma posição mais forte que a dos administrados, faz prevalecer a vontade do ditador, como se o Poder Público fosse fim em si mesmo e não um meio para o povo alcançar o bem comum.

Quebra-se, assim, a idéia de que o Estado persegue os interesses dos cidadãos. Não! Ele persegue os próprios interesses e, para tanto, não se incomoda em ultrajar os princípios que sustentam o Estado democrático de direito: o devido processo legal e a autoridade da coisa julgada proveniente do Poder Judiciário.

Não é demais lembrar que a Lei de Execuções Fiscais proíbe a compensação pelo contribuinte quando ele está sendo cobrado por débitos fiscais (art. 16, §3o, da Lei 6.830/80). Por que, então, quando o Estado está sendo cobrado em relação a tributos inconstitucionais ele pode alegar que possui créditos contra o contribuinte? A injustiça salta aos olhos e demonstra a posição selvagem que a administração pública adota em relação aos súditos do Estado.

Por todos esses motivos, independentemente de existirem ou não os débitos fiscais, o crédito do contribuinte reconhecido em juízo, após regular processamento, não pode ser bloqueado ou condicionado a qualquer apresentação de certidões negativas, pois já faz parte do patrimônio do vencedor da ação. Eventuais créditos tributários da Fazenda Pública devem ser perseguidos em ação própria, prevista na lei, de acordo com os ditames do devido processo legal.

Condicionar o pagamento de precatórios judiciais à regularização de débitos perante a Fazenda é criar um novo processo de execução fiscal, sem ajuizamento de ação própria, sem citação, sem oportunidade de defesa, enfim, é criar um procedimento que não encontra sustentação no sistema jurídico vigente.

É importante observar que apesar das mencionadas decisões repudiando o procedimento pretendido pela Fazenda Pública, o entendimento do Poder Judiciário poderá mudar após a edição da Lei 11.033/04.

Por isso, não bastasse a luta ingrata para obter o reconhecimento do crédito em juízo, agora os administrados terão que combater também os obstáculos criados de maneira indevida para o efetivo recebimento do dinheiro, o que infelizmente criva de certeza a máxima “ganhou, mas não levou”, freqüentemente observada no âmbito judiciário.

É incrível que a efetiva satisfação do direito reconhecido em juízo seja resultado de sucessivas batalhas por parte do contribuinte e não uma decorrência lógica do término da ação. Isso transgride, mais uma vez, os princípios e normas informadores do direito e colabora para a descrença coletiva em relação à efetividade do Poder Judiciário. Resta ao cidadão torcer para que esse Poder faça valer sua força e, principalmente, a Constituição da República.

Luís Felipe Bretas Marzagão é advogado do escritório L.O. Baptista Advogados Associados

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