Súmula vinculante não suprime liberdade de convicção do juiz

por Alexandre Sormani

Uma das promessas da reforma do Poder Judiciário foi a adoção da súmula vinculante, como estofo para a uniformidade dos julgamentos, de modo a evitar a imprecisão e a incerteza quanto aos efeitos jurídicos das condutas tomadas em sociedade, bem como obstar a sempre indesejável repetição de processos sobre matéria idêntica.

Inicialmente, a idéia era dar tal tratamento a todas as súmulas. Posteriormente, entendeu-se melhor conferir o efeito vinculante às súmulas proferidas pelos Tribunais Superiores. No final, a fixação da súmula vinculante se ateve exclusivamente à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional.

À primeira vista, parece incompreensível não dotar de efeitos vinculantes os precedentes jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal: se ele é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, nada mais lógico que exista o respeito às suas decisões pelos demais órgãos judiciais. Porém, na formação histórica do direito brasileiro, a liberdade de convicção dos magistrados sempre foi tida como valor importante para a sociedade(1). Sem adentrar em um juízo crítico, o fato é que a tendência moderna das reformas brasileiras é no sentido de hierarquização do Poder Judiciário, suprimindo a liberdade de convicção em benefício da celeridade das soluções das causas.

Não é demais dizer que o efeito vinculante buscou luzes no sistema norte-americano. Lá, para a funcionalidade do sistema judicial — que também possui salutar morosidade, as decisões da Suprema Corte Americana gozam de efeito vinculante em relação aos demais órgãos judiciais. É o chamado stare decisis. Lembrando que em um sistema em que a lei não é a única fonte primária do direito, resta clara a necessidade do efeito vinculante das decisões judiciais(2). No entanto, no Brasil, onde a jurisprudência é apenas uma fonte de apoio e não uma fonte criadora do direito, a adoção de súmulas vinculantes pode causar inconsistências e dificuldades no funcionamento judicial.

De qualquer modo, tem-se no direito brasileiro tal previsão, inserida no artigo 103-A da Constituição em vigor, por intermédio da Emenda nº 45/04.

A primeira observação que se faz é se a súmula vinculante não faz confundir o Supremo Tribunal Federal — órgão de formação não democrática — com o Legislativo — órgão de formação democrática. Obviamente, se essa confusão se verificar, a súmula está fadada à inconstitucionalidade por desrespeito ao artigo 2º da Constituição Federal. Com efeito, a justificativa para a existência da súmula vinculante é a de pacificar os conflitos existentes na sociedade sobre a matéria constitucional, diante de decisões judiciais antagônicas sobre a validade de normas determinadas. Portanto, a súmula vinculante não se baseia em hipóteses, mas sim em conflitos reais, porém de plano abstrato. É mister do Poder Judiciário pacificar conflitos, mesmo os que ocorrem no confronto entre normas determinadas e a Constituição.

Portanto, além de ser a finalidade para a adoção da súmula vinculante, a previsão inserta no § 1º do artigo 103-A é a pedra de toque que distingue a atividade do Supremo Tribunal Federal da do Legislador. O Legislativo trabalha com hipóteses e o Judiciário com conflitos reais, mesmo que no âmbito normativo. Assim, a previsão de súmula vinculante, por si só, não é inconstitucional(3).

Note-se, porém, que se preconizou a adoção do efeito vinculante da súmula mesmo para os casos em que não existam decisões judiciais conflitantes entre si, desde que o antagonismo exista entre o Judiciário e a Administração Pública. Nessa hipótese, com a devida vênia ao magistério de Gilmar Mendes(4), não há validade para o efeito vinculante. Ora, se todos os órgãos do Poder Judiciário que foram instados a julgar a questão, posicionam-se pela invalidade de uma norma determinada e a Administração pensa o contrário, não há incerteza jurídica, mas descumprimento pela Administração de solução dada pelo Judiciário à matéria, sujeito às sanções penais e administrativas cabíveis(5). Somente no momento em que houver decisões antagônicas no âmbito judicial — inclusive do próprio Supremo Tribunal em relação aos demais órgãos judiciais — que cause a instabilidade ou o estado de incerteza, é que se justifica a súmula com efeito vinculante; antes não.

Diga-se, também, que o efeito vinculante, uma vez adotado, se dirige ao Judiciário e à Administração direta ou indireta das três esferas federativas. Não quer isso dizer que o Poder Legislativo está fora do efeito vinculante, pois também contém sua parcela de atividades administrativas, mas quer isso dizer que a liberdade de convicção do legislador foi mantida, de modo que o efeito vinculante somente não vincula os atos legislativos próprios, isto é, os instrumentos normativos (Ex: Leis ordinárias, complementares, Emendas Constitucionais, etc). O mesmo se diga da Medida Provisória que, muito embora seja emanada do Executivo, não é ato de administração, mas sim ato normativo e, portanto, não sujeito ao efeito vinculante da súmula.

O dispositivo introduzido pela reforma trouxe claramente que o efeito vinculante é atribuído à súmula e, portanto, ao resultado de uniformização de jurisprudência do Tribunal e não a uma decisão isolada. Não será vinculante toda e qualquer súmula, mas somente aquela que, em se tratando de matéria constitucional, houver de receber tal efeito mediante decisão de dois terços dos ministros do STF. Obviamente, os votos pela vinculação ou não da súmula — como todo voto judicial — deverá ser fundamentado, sob pena de nulidade. Na fundamentação, o ministro estabelecerá se o caso tem a justificativa de pacificar os conflitos sobre a matéria, de modo que a atribuição do efeito vinculante não é de natureza arbitrária, mas sim fundamentada. O mesmo se diga na votação para a conversão das súmulas já existentes, autorizada pelo artigo 8º da Emenda Constitucional 45/04.

O dispositivo constitucional criado pela reforma tem aplicação imediata, não necessitando de lei regulamentadora. O que exige lei é a previsão do procedimento de revisão ou de cancelamento da súmula vinculante, muito embora já esteja claramente definido que os legitimados do artigo 103 da Constituição são os que podem provocar a edição, a revisão e o cancelamento da súmula. Com isso, afastou-se a preocupação de petrificação da jurisprudência da Corte.

Outra questão de relevo é a previsão do § 3º do citado artigo 103-A, em que a vinculação não só abrange a aplicação da súmula, como também impede a aplicação incorreta da mesma. Em um caso ou outro, o aludido dispositivo preconizou, como defesa e conseqüência do efeito vinculante, o recurso de reclamação direto à Corte Máxima. Ora, a aplicação indevida da súmula é o resultado de um trabalho de exegese equivocado e impedir esse trabalho exegético significa vincular os julgadores a determinada interpretação. Logo, muito embora não esteja muito claro no preceito constitucional ora acrescido, há a necessidade de um conflito atual e relevante sobre a interpretação da súmula, para que, validamente, também a exegese tenha o efeito vinculante, sob pena de se estender a vinculação a situações não conflituosas e invadir assim a seara do Legislativo.

Essas são as considerações iniciais que podem ser feitas a respeito desse novo instituto no regime constitucional atual, fazendo votos que o mesmo seja bem utilizado em benefício dos anseios sociais, sem a supressão completa da liberdade de convicção dos magistrados, que ainda possui valor relevante para a sociedade brasileira.

Notas de rodapé

1- Vide as críticas de André Ramos Tavares em relação à sobrevalorização do princípio do acesso ao Judiciário, em detrimento da viabilidade da prestação jurisdicional, em Tratado da Argüição de Preceito Fundamental, p. 298-303.

2- As idéias da adoção do efeito vinculante no Brasil se originaram também da influência do direito alemão. Por exemplo, as decisões da Corte Constitucional Alemã possuem força de lei (Gesetzeskraft).

3- No mesmo sentido, foi o posicionamento do Supremo Tribunal Federal ao analisar a Emenda Constitucional nº 3/93 na questão de ordem da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 1- 1

4- Ação Declaratória de Constitucionalidade e Demonstração da Existência de Controvérsia Judicial. Revista Jurídica Virtual. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_09/Gilmar.htm. Acesso em: 2.6.2001.

5- Ora, se o ente público insistir em descumprir a decisão judicial não é caso de súmula vinculante, mas sim de se punir a desobediência.

Alexandre Sormani é juiz Federal, mestre em Direito Constitucional, professor da Universidade Paulista, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, da Fadap e da Univem – Marília, e autor do livro: “Inovações da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade”

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