A Constituição brasileira estabelece que Legislativo, Executivo e Judiciário são poderes independentes e harmônicos entre si, ainda que mencione a separação de poderes. “O vocábulo ‘separação’ (…) indica, no entanto, sem qualquer dúvida, independência e harmonia entre eles e não cisão entre os poderes”.
Assim o ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal, definiu que não há qualquer ingerência de um poder noutro com a instituição do Conselho Nacional de Justiça nos atuais moldes. A afirmação foi feita na quarta-feira (13/4), na sessão que julgou constitucional o CNJ. A votação ficou em 7 a 4.
Além de Eros Grau, votaram pela constitucionalidade do Conselho o relator da matéria, ministro Cezar Peluso, e os ministros Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Nelson Jobim. Foram vencidos os ministros Marco Aurélio, Ellen Gracie, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence.
A decisão foi tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros. A entidade contestava a presença, na composição do CNJ, de dois membros indicados pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, além de dois indicados pelo Ministério Público e dos dois advogados indicados pelo Conselho Federal da OAB.
“Não visualizo, contudo, na presença dos dois primeiros, ingerência de um Poder — o Legislativo — em outro — o Judiciário. A admitir-se, apenas para efeito de argumentação, que esses dois membros do colegiado representassem o Senado e a Câmara, dar-se-ia aqui, no controle a ser exercido pelo Conselho Nacional de Justiça, algo semelhante à ampla fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e ao ‘controle externo’ exercidos pelo Congresso Nacional em relação aos órgãos do Poder Judiciário”, afirmou Eros Grau.
Para o ministro, não se pode questionar a constitucionalidade dessa fiscalização. Em relação aos dois membros do MP e aos dois advogados, Eros Grau escreveu: “limito-me a observar que o Ministério Público ‘é instituição permanente, essencial à função jurisdicional’ (CB, artigo 127) e a aludir ao fato de que a Constituição do Brasil confere atribuições de extrema relevância à OAB”. Segundo ele, basta ressaltar que a Constituição confere legitimidade à OAB para a propor Ação Direta de Inconstitucionalidade e define o advogado como essencial à promoção da Justiça.
“De resto, — e este ponto é de fundamental importância — ao Conselho Nacional de Justiça não é atribuída competência nenhuma que permita a sua interferência na independência funcional do magistrado. Cabe a ele exclusivamente o ‘controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes’, nada mais do que isso”, frisou Eros Grau.
Leia o voto do ministro Eros Grau
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.367-1 DISTRITO FEDERAL
RELATOR : MIN. CEZAR PELUSO
REQUERENTE(S) : ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS – AMB
ADVOGADO(A/S) : ALBERTO PAVIE RIBEIRO E OUTRO(A/S)
REQUERIDO(A/S) : CONGRESSO NACIONAL
V O T O
O SENHOR MINISTRO Eros Grau: A separação dos poderes, como observei em texto de doutrina(1), constitui um dos mitos mais eficazes do Estado liberal, coroado na afirmação, inscrita no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, de que “qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição”.
Trata-se de uma idéia dominante; ainda hoje a doutrina da separação dos poderes mostra-se como idéia dominante, enunciada como “lei eterna”(2).
Essa doutrina chega até nós a partir da exposição de Montesquieu, e não pela via da postulação norte-americana dos freios e contrapesos. De resto, mesmo a prioridade de Montesquieu na sua formulação merece questionamentos, seja desde a ponderação de antecedentes remotos, em Aristóteles, seja na sua enunciação por Bolinbroke e na contribuição de Locke.
2. John Locke, no Segundo Tratado sobre o governo, propõe uma efetiva separação entre Poderes Executivo, Legislativo e Federativo. O primeiro compreende a execução das leis naturais da sociedade, dentro dos seus limites, com relação a todos que a ela pertencem. O Poder Federativo, a gestão de segurança e do interesse do público fora dela, juntamente com todos quantos poderão receber benefício ou sofrer dano por ela causado. O Poder Legislativo é o que tem o direito de estabelecer como se deverá utilizar a força da comunidade no sentido da preservação dela própria e de seus membros.
Segundo Locke, é conveniente que os Poderes Legislativo e Executivo fiquem separados. Mas dificilmente podem separar-se e colocar-se ao mesmo tempo em mãos de pessoas distintas os Poderes Executivo e Federativo: ambos exigindo a força da sociedade para seu exercício, é quase impraticável colocar-se a força do Estado em mãos distintas e não subordinadas; além disso — transcrevo palavras de Locke —, na colocação destes poderes em mãos de pessoas que possam agir separadamente, a força do público ficaria sob comandos diferentes, o que poderia ocasionar, em qualquer ocasião, desordem e ruína.
Para logo se vê, destarte, que no pensamento de Locke surge perfeitamente delineado o princípio da separação dos poderes. De toda sorte, observa-se que, embora visualize três tipos de poder, a separação que surge como conveniente e viável é a que se operaria entre o Legislativo, de um lado, e o Executivo e o Federativo, de outro. O que Locke propõe é uma separação dual — e não tríplice — entre os três poderes que descreve.
3. Montesquieu jamais propôs a separação dos poderes. Sua exposição encontra-se no capítulo VI do Livro IX de O espírito das leis. As idéias que coloca inicialmente, neste capítulo, a sumariam: “Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o Poder Legislativo, o Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o Executivo das que dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente, o Poder Executivo do Estado. A liberdade política num cidadão é esta tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança: e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o Poder Legislativo está reunido ao Poder Executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo Senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Poder Legislativo e do Executivo. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”.
É certo, ademais, que Montesquieu não sustenta a impenetrabilidade, um pelos outros, dos poderes que refere. Assim, por um lado afirma que: “apesar de que, em geral, o poder de julgar não deva estar ligado a nenhuma parte do Legislativo, isso está sujeito a três exceções, baseadas no interesse particular de quem deve ser julgado”. Por outro lado, distinguindo entre faculdade de estatuir — o direito de ordenar por si mesmo, ou de corrigir o que foi ordenado por outrem — e faculdade de impedir — o direito de anular uma resolução tomada por qualquer outro (isto é, poder de veto) —, entende deva esta última estar atribuída ao Poder Executivo, em relação às funções do Legislativo; com isso, o Poder Executivo faz parte do Legislativo, em virtude do direito de veto: “Se o Poder Executivo não tem o direito de vetar os empreendimentos do campo Legislativo, este último seria despótico porque, como pode atribuir a si próprio todo o poder que possa imaginar, destruiria todos os demais poderes”. “O Poder Executivo, como dissemos, deve participar da legislação através do direito de veto, sem o quê seria despojado de suas prerrogativas”.
O que importa verificar, inicialmente, na construção de Montesquieu, é o fato de que não cogita de uma efetiva separação de poderes, mas sim de uma distinção entre eles, que, não obstante, devem atuar em clima de equilíbrio. Isso fica bastante nítido na análise de outro trecho de sua obra: “Eis, assim, a constituição fundamental do governo de que falamos. O corpo legislativo sendo composto de duas partes, uma paralisará a outra por sua mútua faculdade de impedir. Todas as duas serão paralisadas pelo Poder Executivo, que o será, por sua vez, pelo Poder Legislativo. Estes três poderes deveriam formar uma pausa ou uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a caminhar, serão forçados a caminhar de acordo”.
De outra parte, importa enfatizar que já da sua exposição resulta a distinção entre Poderes Executivo e Legislativo, de um lado, e funções executiva e legislativa, de outro. Segundo Montesquieu, o Poder Executivo deve estar dotado de funções executivas e — pela titularidade da faculdade de impedir (poder de veto) — também de parcela das funções legislativas. Da mesma forma, entende deva o Poder Legislativo, em casos excepcionais, estar dotado de funções jurisdicionais.
4. O alinhamento procedido, das colocações de Locke e de Montesquieu, permite-nos verificar que o primeiro propõe uma separação dual entre três poderes — o Legislativo, de um lado, e o Executivo e o Federativo, de outro — e o segundo sugere não a divisão ou separação, mas o equilíbrio entre três poderes distintos — o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Mais ainda: de modo bastante nítido na exposição de Montesquieu — o que está implícito na postulação de Locke — visualizamos a necessidade de distinguir entre poderes e funções. Para que o equilíbrio a perseguir seja logrado, impõe-se, v.g., que o Poder Executivo exercite parcelas de função não executiva — mas legislativa.
A Constituição do Brasil afirma que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são poderes independentes e harmônicos entre si — artigo 2º — ainda que o § 4º do seu artigo 60 mencione “separação dos Poderes”. O vocábulo “separação” neste parágrafo indica, no entanto, sem qualquer dúvida, independência e harmonia entre eles e não cisão entre os poderes.
A construção teórica de Montesquieu merece, contudo, não apenas ser descrita, porém ser também analisada desde a perspectiva crítica.
5. Detenho-me, inicialmente, sobre dois textos de Charles Eisenmann(3), nos quais encontra Althusser(4) os fundamentos da assertiva de que a “separação dos poderes” não passa de um mito. Montesquieu, como vimos, além de jamais ter cogitado de uma efetiva separação dos poderes, na verdade enuncia a moderação entre eles como divisão dos poderes entre as potências e a limitação ou moderação das pretensões de uma potência pelo poder das outras. Daí por que, como observa Althusser(5), a “separação dos poderes” não passa da divisão ponderada do poder entre potências determinadas: o rei, a nobreza e o “povo”.
Eu gostaria de avançar nesta análise crítica da exposição de Montesquieu, mas não vou maçar a Corte com essas considerações.
O mínimo, no entanto, há de ser dito. O ponto de partida de Montesquieu no Livro IX de O espírito das leis é a liberdade: “Encontra-se a liberdade política unicamente nos Estados moderados. Porém ela nem sempre existe nos Estados moderados: só existe nesses últimos quando não se abusa do poder; mas a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites (…). Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder”. Ora, se a liberdade só pode existir nos Estados moderados nos quais ninguém abuse do poder, a divisão dos poderes encerra em si a virtude, precisamente, do equilíbrio. Esse equilíbrio é que Althusser(6) visualiza na divisão dos poderes entre as potências — o que importa que, nos Estados moderados, o poder não seja absoluto, porque, mercê daquele equilíbrio, controlado(7).
Daí a indagação que se introduz: a quem beneficia o equilíbrio que provém da divisão dos poderes? Ou, em outros termos, quem controla o poder? A resposta a tais perguntas dá-nos Althusser na afirmação de que Montesquieu fazia da nobreza a beneficiária de tal equilíbrio — a nobreza controlava o poder.
A aplicação da teoria, contudo, na praxis política, finda por demonstrar que não apenas quando Executivo e Legislativo estejam controlados pela mesma classe ou fração hegemônica a divisão dos poderes é, no seu funcionamento, inexistente; pois — observa Poulantzas(8) —, mesmo quando são grupos diferentes os que os controlam, a unidade do poder institucionalizado se mantém no lugar predominante onde se reflete a classe ou fração hegemônica. Diz o próprio Montesquieu: “Assim, em Veneza, ao Grande Conselho cabe a legislação; aos pregandi, a execução; aos guaranties, o poder de julgar. Mas o mal é que esses tribunais diferentes são formados por magistrados do mesmo corpo, o que quase faz com que componham um mesmo poder” (grifei).
6. O que nos tem faltado é reflexão a respeito do Estado. Para compreendê-lo seria conveniente recorrermos a Hegel(9): o Estado político, diz ele, divide-se nas seguintes diferenças substanciais: a) o poder de definir e estabelecer o universal — poder legislativo; b) a subsunção dos domínios particulares e dos casos individuais sob o universal — poder de governo; c) a subjetividade como decisão suprema da vontade — poder do príncipe. Neste último, os diferentes poderes são reunidos em uma unidade individual e, por conseqüência, este poder é a suma e a base do todo. Mas o Estado político, erigido sobre a Constituição racional — racional na medida em que, continua Hegel(10), o Estado determina e distribui sua atividade entre vários poderes, porém de modo que cada um deles seja, em si mesmo, a totalidade, ou seja, um todo individual único — o Estado político, dizia eu, é uma totalidade. Ensina, em passos sucessivos, o velho HEGEL:
“O princípio da divisão dos poderes contém, com efeito, o momento essencial da diferença, da racionalidade real. Ora, o entendimento abstrato apreende-o de um modo que implica, por um lado, a determinação errônea da autonomia absoluta dos poderes uns com relação aos outros, e, por outro lado, um procedimento unilateral que consiste em tomar seu relacionamento mútuo como algo negativo, como uma restrição recíproca. Esse modo de ver encerra uma hostilidade, um temor, de cada qual em face do outro; cada um aparece como um mal para o outro e o determina a opor-se a ele, o que certamente leva a um equilíbrio geral de contrapesos, mas de modo algum a uma unidade viva”(11);
“… saibamos que nem sempre aquilo que espontaneamente vem à mente, ou aquilo que mais impressiona, é o essencial. É assim, é verdade, que devem ser distinguidos os poderes do Estado, mas cada um deles deve constituir um todo nele próprio, e conter nele os outros momentos. Quando se fala da diversidade de eficácia dos poderes, de sua ação e de sua eficiência, é necessário evitar incorrer no enorme erro de considerar as coisas como se cada poder estivesse supostamente lá abstratamente, por ele próprio, quando os diferentes poderes supostamente se diferenciam apenas enquanto momentos do conceito”(12).
Disse-o, de modo diverso, Carlos Maximiliano(13), ao afirmar que “[c]omo no corpo do homem, não há no Estado isolamento de órgãos, e, sim, especialização de funções”.
7. Devo deixar um outro aspecto, neste ponto, bem vincado. Também em texto de doutrina(14) observei ser necessário distinguirmos o discurso que trata do direito no plano das abstrações daquele que dele cogita como realidade(s) concreta(s). É que não existe, concretamente, o direito; apenas existem, concretamente, os direitos.
O direito não é uma simples representação da realidade social, externa a ela, mas, sim, um nível funcional do todo social. Produto cultural, é, sempre, fruto de uma determinada cultura. Por isso não pode ser concebido como um fenômeno universal e atemporal. Lembro Aristóteles(15) n’A Política: “il n’est pas possible, en effet, que les mêmes lois soient bonnes pour toutes les démocraties, s’il est vrai qu’il existe plusieurs espèces de chacun de ces régimes, et non pas uniquement une seule démocratie ou une seule oligarchie”.
8. Precisamente por isso não há um modelo universal de “separação” ou harmonia e equilíbrio entre os poderes, a cada sociedade política correspondendo um modelo particular e específico seu.
O modelo brasileiro de harmonia e independência entre os poderes é desenhado pela Constituição do Brasil, a Emenda Constitucional n. 45 tendo a ele incorporado o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Esse controle em verdade não é externo. Diz com acuidade Sergio Bermudes, em ensaio há poucos dias publicado(16): “A instituição do Conselho Nacional de Justiça constitui vitória da ampla corrente, a que me filiei, contrária ao controle externo do Poder Judiciário”. Disse-o também recentemente Gilberto Bercovici(17), professor do Largo de São Francisco: “Como podemos perceber, toda polêmica gerada sobre o ‘controle externo’ do Poder Judiciário e do Ministério Público não faz nenhum sentido. […] no nosso caso não foi criado nenhum controle externo real”.
A ADI questiona a presença de membros, no Conselho Nacional de Justiça, indicados pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados, além de dois indicados pelo Ministério Público e dos dois advogados indicados pelo Conselho Federal da OAB.
Não visualizo, contudo, na presença dos dois primeiros, ingerência de um Poder — o Legislativo — em outro — o Judiciário. A admitir-se, apenas para efeito de argumentação, que esses dois membros do colegiado representassem o Senado e a Câmara, dar-se-ia aqui, no controle a ser exercido pelo Conselho Nacional de Justiça, algo semelhante à ampla fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e ao “controle externo” exercidos pelo Congresso Nacional em relação aos órgãos do Poder Judiciário. É inquestionável a constitucionalidade dessa fiscalização e desse controle, que se compõem, harmoniosamente, no modelo brasileiro de harmonia e independência entre os poderes. A sermos coerentes, ao admitirmos fosse inconstitucional a presença de membros indicados pelo Senado e pela Câmara dos Deputados no Conselho Nacional de Justiça haveríamos de incisivamente afirmar a inconstitucionalidade daquela fiscalização e controle, o que está fora de qualquer cogitação. É o quanto basta.
Quanto à presença, no colegiado, de dois membros do Ministério Público e dos dois advogados indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, limito-me a observar que o Ministério Público “é instituição permanente, essencial à função jurisdicional” (CB, artigo 127) e a aludir ao fato de que a Constituição do Brasil confere atribuições de extrema relevância à OAB, a propósito bastando ressaltar o disposto no inciso VIII do artigo 103 da Constituição, que confere legitimidade ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, bem assim a definição do advogado como essencial à promoção da Justiça, ao qual é assegurada inviolabilidade no que tange aos seus atos e manifestações no exercício da profissão.
De mais a mais, como anota ainda Sergio Bermudes(18), os conselheiros indicados pelos tribunais, pela OAB e pelo Ministério Público “não representarão os órgãos de origem. Sem qualquer subordinação a eles, exercerão, autonomamente, as suas funções, com toda independência”. O mesmo há de ser dito em relação aos dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada indicados um pela Câmara dos Deputados e o outro pelo Senado Federal. Eles não representarão, no colegiado, a Câmara e o Senado, evidentemente. Tal como nenhum de nós, membros desta Corte, a ela aportados por indicação do Presidente da República, após aprovação de seus nomes pelo Senado Federal, representa, em nosso colegiado, este ou aquele.
9. Força é, na análise do modelo brasileiro de harmonia e equilíbrio entre os poderes — é essa recomendação faço a mim mesmo, sem desejar ensiná-la aos meus pares; limito-me a chamar a atenção de todos para este ponto — força é, nesta análise, seguindo as anotações de Hegel, não incorrermos no enorme erro de considerar as coisas como se cada poder estivesse supostamente lá abstratamente, por ele próprio, quando os diferentes poderes supostamente se diferenciam apenas enquanto momentos do conceito.
10. De resto — e este ponto é de fundamental importância — ao Conselho Nacional de Justiça não é atribuída competência nenhuma que permita a sua interferência na independência funcional do magistrado. Cabe a ele exclusivamente o “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”, nada mais do que isso. Sua presença, como órgão do Poder Judiciário, no modelo brasileiro de harmonia e equilíbrio entre os poderes, não conformará nem informará — nem mesmo afetará — o dever-poder de decidir conforme a Constituição e as leis que vincula os membros da magistratura. O controle que exercerá está adstrito ao plano “da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”. Embora órgão integrante do Poder Judiciário — razão pela qual desempenha autêntico controle interno — não exerce função jurisdicional.
11. Há mais, todavia, a ser considerado.
É que esta Corte é um tribunal político. Político, sim, no sentido de que provê a viabilidade da polis. Cumpre-nos compreender a singularidade de cada situação no âmbito da polis, isto é, do Estado. Por isso não estamos aqui para sacrificar a realidade em benefício de doutrinas. Não interpretamos apenas textos normativos, mas também a realidade, de modo que o significado da Constituição é produzido, pelo intérprete, contemporaneamente à realidade.
A Constituição é a ordem jurídica fundamental de uma sociedade em um determinado momento histórico e, como ela é um dinamismo, é contemporânea à realidade. Daí porque tenho afirmado que não existe a Constituição de 1.988. O que hoje realmente há, aqui e agora, é a Constituição do Brasil, tal como hoje, aqui e agora, ela é interpretada/aplicada por esta Corte.
12. Ademais, o discurso da ordem abrange o lugar da racionalidade [a Constituição, a lei] e o lugar do imaginário social como controle da disciplina das condutas humanas e de sua sujeição ao poder(19). De modo que não se justifica a alienação do intérprete à realidade social, constituída também pelas aspirações da sociedade.
Frustrar a existência efetiva do Conselho Nacional de Justiça, a pretexto de incompatibilidade da presença, nele, de membros indicados pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados, bem assim pelo Ministério Público e pelo Conselho Federal da OAB, frustrar sua existência efetiva, dizia, a pretexto de incompatibilidade dessa presença com a doutrina da “separação dos poderes”, isso não se justifica. O confronto com o imaginário social e as expectativas que nutre, neste momento, sem que uma razão constitucional definitiva houvesse a justificá-lo — e, se ela houvesse, eu estaria pronto, sem qualquer temor, a enfrentar as reações que haveria de provocar — confronto dessa ordem, sem que uma razão constitucional definitiva houvesse a justificá-lo, repito, comprometeria a força normativa da Constituição. A Constituição então produzida por esta Corte, na interpretação da Emenda n. 45, afrontaria a natureza singular do presente.
Revista Consultor Jurídico, 14 de Abril de 2005