NOTAS SOBRE O NOVO CÓDIGO CIVIL

Álvaro Luís de Araújo Ciarlini

O primeiro questionamento que tem sido feito em torno da elaboração de um novo Código Civil cinge-se ao seu aspecto histórico. Indaga-se sobre a oportunidade da nova codificacão que ora é objeto de estudo no Congresso Nacional, ou seja, se o momento social, econômico e político vivenciado no Brasil é propício e adequado às alterações dos paradigmas jurídicos do Direito Privado.

O centro das preocupações dos estudiosos a esse respeito, ao que parece, consiste no temor de um retorno à tentativa de (re)construção do direito privado tendo como molde a jurisprudência clássica dos conceitos, do século XIX, a qual denota a legitimidade da norma jurídica baseada exclusivamente em sua correção sistemática, para a produção de um modelo de decisão a partir da dedução de um conceito formal, que, no mais das vezes, distancia-se paulatinamente da realidade social, sempre dinâmica. Este molde formal representa o alheamento da ciência jurídica em face às constantes mutações sociais e, portanto, políticas, econômicas etc.

O positivismo legalista, historicamente, encontrou severa resistência por parte dos prosélitos de um pensamento antiformalista (cite-se, v.g., a Escola do Direito Livre e a opção pela jurisprudência dos interesses, bem como a crítica de Marx à Escola Histórica do Direito).

O embate assim travado tem em mira a necessidade de constante adequação do rigorismo formal dos códigos à realidade imediata experimentada pela sociedade. Isso paradoxalmente passaria a não existir a partir do primeiro momento após o redimensionamento formal do Direito Privado onde há a prevalência de normas de caráter dispositivo , pois este tenderia à instituição exaustiva dos tipos jurídicos em abstrato, revitalizando o vigor do legalismo formalista, que entre nós já vem sendo, há muito, mitigado pela constante necessidade de adequação do Código Civil ainda em vigor aos dias atuais. A atividade hermenêutica dos juristas de nosso país, assim, tem permitido por meio de um esforço criativo a permanente densificação da norma jurídica, por sua aplicação aos casos concretos, e, também, via de conseqüência, uma constante dialetização entre a realidade social e o preceito legal.

Para Pontes de Miranda, o Direito Privado pátrio necessitaria ainda de alguns decênios de intensa preparação, para que se compreendesse e meditasse a imensa quantidade de obras jurídicas e decisões dos tribunais, elaboradas a partir do Direito Privado atual. O célebre jurista alagoano viu como o maior mal da Justiça (e isso mostra-se perfeitamente adequado aos dias atuais) a falta de precisão de conceitos e enunciados jurídicos, o que certamente só será remediado por uma percuciente investigação científica.

Diante desse prisma, pode-se concluir que o problema do Direito Privado Brasileiro não está a requerer, precisamente, a elaboração de um novo corpo normativo. Antes, demanda a elaboração de estudo das bases da dogmática jurídica estabelecidas pelos civilistas do Século XIX, e que ainda não foram adequadamente assimiladas em nossa cultura jurídica , bem como de sua necessária evolução, em correlação com o estudo das sínteses hermenêuticas modernas. Diante dessa ordem de idéias, o direito civil precisaria ser (re)pensado a partir do ordenamento jurídico vigente, com a paulatina agregação das alterações normativas necessárias, sem impor-se, abruptamente, um novo modelo sistematizado do Direito Privado.

Ultrapassada a crítica à (re)codificação do Direito Privado brasileiro, todavia, deve-se tecer elogios ao profícuo trabalho realizado pelo relator-geral ao Projeto de Lei nº 118/94, senador Josaphat Marinho, bem como aos relatores parciais e à erudita Comissão encarregada de levar a cabo uma obra de tamanha envergadura.

O projeto do novo Código, de inegável valor técnico, procurou preservar a estrutura que nos foi legada pela pandectística alemã, adotando o modelo formado por uma parte geral e parte especial: a primeira composta de três livros, quais sejam o Das pessoas, Dos bens e Dos Fatos jurídicos; a segunda, formada por cinco livros: Do direito das obrigações, Do direito de empresa, Do direito das coisas, Do direito de família e Do direito das sucessões, seguido por um livro complementar estabelecendo as disposições finais e transitórias.

Deve-se ressaltar, em breves notas, que algumas alterações foram introduzidas no indigitado projeto, as quais, mesmo acompanhando as várias proposições doutrinárias e a sedimentação jurisprudencial já assente em nosso meio jurídico, demandavam, de lege ferenda, um adequado redimensionamento legislativo. Entre elas estão a proteção ao direito de personalidade, o adequado tratamento ao tema fatos jurídicos estabelecendo a necessária distinção entre ato e negócio jurídico e também entre prescrição e decadência. Traz, ainda, dentre os defeitos do negócio jurídico, a figura do estado de perigo e a lesão, acompanhando uma tendência de mitigação do princípio da obrigatoriedade da estipulação negocial. Especificamente quanto ao ato ilícito, o novo texto acompanha a orientação da Constituição Federal em vigor, para expressamente versar também sobre o dano moral.

Destaque-se ainda a diminuição da idade para o estabelecimento da capacidade plena (de 21 para 18 anos).

No que concerne à parte especial, ainda na linha da quebra da figura do individualismo jurídico, o novo Código valoriza a denominada cláusula rebus sic stantibus em detrimento do valor dado ao princípio pacta sunt servanda.

A alteração mais importante feita à parte especial do novo Código, segundo o nosso entendimento, foi o passo dado em direção à unificação entre o Direito Civil e o Direito Comercial, com o estabelecimento do denominado Direito de Empresa e disciplina exaustiva sobre o Direito societário.

Nos chamados Direitos Reais, especificamente quanto ao direito de propriedade, a alteração de maior relevo foi a expressa relativização do jus utendi, fruendi e abutendi, com a normatização de limitações ao direito de propriedade em face de suas finalidades econômicas e sociais.

A redução dos limites de tempo para as várias modalidades de usucapião é também digna de nota (arts. 1239 e 1242), o mesmo ocorrendo com a proibição da constituição de enfiteuse (respeitado o ato jurídico perfeito e o direito adquirido).

No âmbito do Direito de Família, dentre as várias alterações observadas, a que merece destaque é a alusiva ao estabelecimento da figura do poder familiar, em substituição ao denominado pátrio poder, prestigiando a orientação constitucional de equivalência de direitos e deveres entre o homem e a mulher. O estabelecimento da entidade familiar pela constituição da união estável também mereceu disciplina expressa, com a fixação de tempo de convivência (3 ou 5 anos, de acordo com a hipótese).

No Direito das Sucessões o aspecto mais saliente é o que se reporta à sucessão testamentária, com o abrandamento das formalidades necessárias ao estabelecimento do testamento público, cerrado ou particular

Feitas estas brevíssimas ponderações, sem nenhum intuito de elaboração de um juízo pormenorizado sobre o tema, e, ainda, partindo-se da premissa de que a nova codificação é uma realidade, deve-se reiterar que, embora criticável a idéia de criação de um novo código civil, no presente momento, o projeto em curso no Congresso Nacional encontra-se adequadamente estruturado e, feitos os necessários ajustes, próprios do processo legislativo, o novo diploma certamente terá sido a melhor opção, dentre as possíveis. Isto se explica pelo claro posicionamento do legislador brasileiro em garantir ao aplicador da lei civil uma adequada margem de ponderação de seus preceitos normativos, à vista da mutável realidade que nos cerca

Álvaro Luís de Araújo Ciarlini
Juiz da Vara Cível de Planaltina e professor de Direito Civil
do Centro de Ensino Unificado de Brasília (Ceub)

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