Mal Cardíaco Preexistente e Imputação Objetiva

Damásio de Jesus
O empresário R. J. P. J., de 50 anos, de São Paulo, morreu na noite de 8.8.2003, na Praia do Lázaro, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo, depois de ter sido amarrado e amordaçado por dois homens armados. Por volta das 22 horas, os bandidos invadiram a casa de P. J., que estava com a mulher, M. L., de 55 anos. Trancaram os dois num dos quartos e roubaram celulares, anéis, relógios, malas e R$ 360,00, fugindo em seguida. Em depoimento, M. L. contou que o empresário se sentiu mal e morreu ao dar entrada no pronto-socorro[1]. Imagine que a vítima fosse portadora de problemas cardíacos desconhecidos dos assaltantes. Considerando que:

1. o art. 157, § 3.º, parte final, do Código Penal, descrevendo o latrocínio, prevê a morte como resultado da violência;

2. o resultado morte pode advir de dolo ou culpa[2], de perguntar-se: na hipótese, a morte da vítima é de responsabilidade dos autores, respondendo eles por latrocínio?

Segundo pensamos, não é possível atribuir aos agentes a morte da vítima, razão pela qual somente respondem pelo crime de roubo circunstanciado ou agravado, em função do emprego de arma, concurso de pessoas e seqüestro, este utilizado como meio executório do roubo[3].

É possível chegar-se a tal conclusão de duas formas distintas:

1.ª) Doutrina tradicional do CP de 1940: afastamento do crime de latrocínio por ausência de dolo ou culpa, subsistindo o roubo triplamente agravado[4];

2.ª) Teoria da imputação objetiva: atipicidade do resultado morte, subsistindo o delito supramencionado.

De notar-se que as soluções guardam uma sensível diferença, embora coincidam nos resultados: na primeira, o fato é típico, excluindo-se o delito pela falta de dolo ou culpa; na segunda, o resultado morte é objetivamente atípico, sendo desnecessário analisar a presença ou não do dolo ou da culpa.

Pela teoria tradicional, os problemas cardíacos do empresário configuram causa preexistente relativamente independente da conduta dos assaltantes. Procedendo-se ao juízo de eliminação hipotética, subsiste o nexo de causalidade entre a violência exercida pelos agentes e o resultado morte, uma vez que, se não tivessem amordaçado e amarrado o empresário, o mal cardíaco de que era portador não teria desenvolvido o processo que o levou à morte. De ver-se, contudo, que a doutrina tradicional se posiciona no sentido de excluir a imputação do resultado quando a causa preexistente relativamente independente lhe era totalmente desconhecida, como no caso em exame, argumentando que nessa hipótese não se poderia falar na existência de dolo ou culpa com vistas ao resultado morte. Afinal, “pelo resultado que agrava especialmente a pena só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”[5]. Daí a primeira conclusão mencionada: afastamento de dolo ou culpa no que tange à morte do empresário, excluindo o delito de latrocínio. Saliente-se, entretanto, que, antes de se perfazer a imputação pessoal, examinando-se a presença do dolo ou culpa, deve-se configurar a imputação objetiva.

Como dissemos recentemente, “investigações que visam a certificar se o resultado é obra do autor prescindem do elemento subjetivo. É indiferente, para tal compreensão, tenha o agente desejado (dolo) ou não (culpa) o resultado. Somente após verificar-se a possibilidade de imputação, levando em consideração aspectos meramente objetivos, é que se deve partir para a análise da questão subjetiva”[6]. Mir Puig pondera, nesse sentido: “antes de perguntar se um fato foi praticado com dolo ou culpa é necessário saber se efetivamente houve sua realização”[7]. Conforme afirmamos, “a imputação objetiva requer a verificação de a conduta haver criado um perigo juridicamente reprovável ao bem jurídico e de o resultado produzido corresponder à realização do perigo juridicamente proibido (relação de risco-resultado). Ela deve ser feita ex post. Se o resultado foi causado por um risco diferente daquele produzido pela conduta desaprovada, não pode ser atribuído a seu autor. Em conseqüência, o resultado é objetivamente atípico quando não corresponde ao gênero de risco criado pelo agente (…). Assim, inexiste imputação objetiva na hipótese de o evento não se conformar à realização do perigo juridicamente desaprovado criado pelo comportamento (resultado não correspondente à realização do risco juridicamente desaprovado criado pela conduta)”[8].

Exige-se “um relacionamento direto entre o dever infringido pelo sujeito e o resultado produzido. Há só responsabilidade pelos danos diretos. O autor não responde pelas conseqüências secundárias, i. e., pelos danos indiretos ou resultados que não se encontram na extensão da incriminação da figura típica.”[9] Dessa forma, ainda que se verifique a existência de nexo causal, a morte não pode ser imputada aos assaltantes, porquanto a situação de risco por eles criada não se concretizou dentro do âmbito de proteção da norma do art. 157, § 3.º, do CP, mas somente naquela do art. 157, § 2.º, I, II e V, do mesmo diploma punitivo. Vê-se, pois, que a conduta dos agentes não guarda tipicidade com o crime de latrocínio pela falta de imputação objetiva.

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[1] Fonte: O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11.8.2003. Caderno Cidades, p. C4.

[2] RT 413/113; RTJ 94/330.

[3] CP, art. 157, § 2.º, I, II e V.

[4] CP, art. 157, § 2.º, I, II e V.

[5] CP, art. 19. Trata-se da proibição da responsabilidade penal objetiva.

[6] Diagnóstico da teoria da imputação objetiva no Brasil. São Paulo: Ed. Damásio de Jesus, 2003. p. 34.

[7] Derecho Penal: Parte General. 4.ª ed. Barcelona: PPU, 1996. p. 215.

[8] Imputação objetiva. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 82-83.

[9] Op. cit. Imputação objetiva. p. 84.

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