Celso Luiz Moresco[1]
1. Introdução ao tema
O tema proposto ganha relevância na medida em que estabelece os limites de aplicação do princípio em exame. Em outros termos: a independência é absoluta ou admite relativização? Se admite relativização, quais os exatos termos? É sobre essas questões básicas que o trabalho será conduzido.
Em linhas gerais, a punição administrativa não depende de processo civil ou criminal a que esteja sujeito o agente público pelo mesmo fato, nem obriga a Administração a aguardar o término destes expedientes para deflagrar o processo disciplinar e fazer incidir a sanção administrativa. Verificada a falta, mediante o devido processo e garantindo-se ao acusado a ampla defesa, poderá a Administração Pública punir o agente.[2] Em determinadas hipóteses, a conduta do agente público, além de constituir ilícito administrativo, mostra-se de tal modo grave, que poderá atingir um interesse público geral (da sociedade), tipificando-se como ilícito penal. Em outras hipóteses, poderá haver reflexos de natureza patrimonial, ensejando a reparação civil (dentro do próprio processo disciplinar ou em processo judicial autônomo). Vê-se, portanto, que dependendo da natureza, da gravidade e dos reflexos/extensão da conduta ilícita do agente público, haverá possibilidade incidência das três esferas (administrativa, civil e penal), as quais serão provocadas e atuarão por meio próprio, de acordo com as regras particulares que as disciplinam, impondo a conseqüência jurídica que lhe é peculiar. Esse é, em breves notas, o princípio da independência de instâncias. Significa, em princípio, que nenhuma das instâncias de apuração está atrelada à outra.
A observação do texto da Carta Política demonstra o expresso reconhecimento do princípio da independência de jurisdição pelo legislador constituinte. Ocorre que a Constituição Federal atribui à Administração Pública a possibilidade de tomar decisões — dizer o direito — através de atos administrativos, nos casos concretos, podendo proceder à execução por si própria, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário ou até mesmo pedir autorização legislativa. É a conseqüência natural da referência constitucional expressa do princípio da separação de poderes, do qual decorrem os princípios da autonomia administrativa e da independência de instâncias. Aliás, nem poderia ser diferente. Se se quisesse ter uma instância chamada “Administração Pública”, a ela se deveria dar uma parcela de poder onde poderia atuar com alguma liberdade e independência.
Por seu turno, a legislação comum — sem adentrar em questionamento sobre sua constitucionalidade ou não — é uníssona no reconhecimento do princípio da separação das instâncias. Apenas para exemplificar, a afirmação do princípio está presente em duas importantes leis: a primeira que trata do regime jurídico dos servidores públicos da União; a segunda que trata do regime jurídico dos servidores do Estado do Rio Grande do Sul.
A Lei nº 8.112/90, que criou o regime jurídico único dos servidores públicos da União, no art. 125, é expressa em afirmar que
“As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si”.
Para extremar as dúvidas por acaso existentes, pouco após, essa mesma lei estabelece um “processo” para a aplicação das sanções administrativas.
A Lei Complementar nº 10.098/94, do Estado do Rio Grande do Sul, do mesmo modo que a Lei Federal já citada, garante a independência de instâncias. Diz no art. 186 que
“As sanções civis, penais e administrativas poderão acumular-se, sendo umas e outras independentes entre si, assim como as instâncias civil, penal e administrativa.”
Diante do reconhecimento expresso da Constituição e da Legislação infra-constitucional, parece inexorável a conclusão de que as instâncias são absolutamente independentes.
No entanto, algumas questões devem ser levantadas e, na medida do possível, respondidas: a) Qual o fundamento para a existência do princípio da independência de instâncias? b) A incidência do princípio, de modo absoluto, seria decorrência do princípio do non bis in idem? c) É possível a flexibilização do princípio, admitindo a interferência da instância penal na esfera administrativa? d) E, acaso possível, em que circunstância caberá admitir-se reflexo da sentença penal na esfera administrativa e civil? É o que trataremos de resolver no espaço seguinte.
2. Fundamento jurídico do princípio
Toda matéria jurídica, em grande medida, e para que possa ser compreendida, necessita de algumas referências sobre a natureza e fundamento. Neste caso, parece ser indispensável a fixação de alguns pressupostos sobre a sua natureza.
O ilícito administrativo pode ser conceituado como sendo “todo ato, positivo ou negativo, imputado a agente administrativo, em virtude de infração a dispositivo expresso estatutário.”[3]
Do próprio conceito se extrai a ilação de que, em princípio, o ilícito administrativo afeta apenas a Administração enquanto instituição, como organização.[4] Ou, na linguagem utilizada pelo Direito Penal, denotam a periculosidade interna do servidor. Logo, a diferença é de abrangência dos reflexos que dele emanam, e também, na maioria dos casos, de substância se comparado com o ilícito penal. Os ilícitos administrativos, como regra, produzem efeitos para dentro; excepcionalmente, produzem efeitos externos à Administração Pública.
Diante disso, se não houvesse a independência de instâncias, os ilícitos estritamente administrativos não mereceriam sanção de qualquer natureza, exceto a civil, a menos que se outorgasse a outro poder essa competência punitiva. A Administração Pública ver-se-ia na obrigação de recorrer a terceiros, estranhos, para exercer o direito de punir.
De outro lado, o princípio da separação de poderes oferece o respaldo constitucional para fundamentar a existência do princípio da independência de jurisdição. Ocorre que o princípio da separação de poderes delimita o âmbito de atuação da Administração Pública à produção dos atos administrativos ao mesmo tempo em que exclui a participação do Poder Legislativo e do próprio Poder Judiciário. Explica-se: a Constituição confere ao Legislativo a prerrogativa de produzir normas gerais, abstratas e prospectivas. Não lhe concede a possibilidade jurídica de fazer “regulamentação” in specie. Se o Legislativo utilizasse a faculdade constitucional para produzir atos administrativos automaticamente estaria abandonando a tarefa de legislar para dedicar-se à expedição de normas individuais, invadindo o campo de atuação de outro poder ou função.
Como resultado final dessa interferência, com absoluta convicção, teríamos a violação do princípio constitucional da separação de poderes e instauração da desarmonia nas funções clássicas do Estado.[5]
3. O princípio da independência de instâncias e a regra do non bis in idem
Um dos grandes questionamentos feitos pela doutrina do Direito Administrativo reside exatamente na aplicabilidade (ou não) da regra/princípio do non bis in idem. Ocorre que as conseqüências práticas da conclusão que se adotar são extraordinárias. Vejamos: se for admitida a aplicação da regra do non bis in idem haverá a real possibilidade de impedir-se que um servidor público seja duplamente processado e, talvez, castigado pelo mesmo fato. Se não for admitida a aplicabilidade do non bis in idem o mesmo fato poderá dar ensejo a até três condenações diferentes (penal, administrativa e civil).
O princípio do non bis in idem contém dois significados principais: de um lado, o significado material, impede que uma pessoa seja punida duas vezes pelo mesmo fato (ou infração); de outro lado, funciona como uma garantia processual, impedindo que um mesmo fato possa ser objeto de dois processos distintos.[6] Os ilícitos administrativos e os ilícitos penais, conforme já observamos, têm natureza, reflexos e substância diferentes entre si. Os ilícitos penais são comandos de proteção geral da sociedade, cujo procedimento de apuração é o processo penal ou, quando se tratar de reparação patrimonial, o processo civil. Trata-se de um comando direcionado àqueles que estão sob a sujeição geral do estado. Já os ilícitos administrativos dirigem-se à proteção interna da Administração, especificamente àqueles sujeitos que se encontram em um estado de sujeição especial.[7] A punição disciplinar somente abrange as infrações relacionadas com o serviço. Em muitas oportunidades a conduta do funcionário público configura, a um só tempo, ilícito penal e ilícito administrativo, eventualmente produzindo dano patrimonial ensejador da reparação civil. Com isso, deflagra-se o poder punitivo geral do Estado uma vez que o fato repercute na esfera de proteção geral; de outro modo, deflagra-se o poder punitivo interno da Administração para proteger a organização interna administrativa. De igual modo, o Estado tem a faculdade de buscar a reparação pelos prejuízos acaso existentes, via ação indenizatória ou, se for o caso, via ação de regresso. Resulta disso a possibilidade de dois julgamentos punitivos conclusivos porque “a configuração do ilícito administrativo é diferente do ilícito penal” (…) a índole é diversa…[8], os reflexos são diversos. Assim, diante dessa diversidade substancial, de natureza e de objetivos, resulta a possibilidade de aplicação conjunta das penalidades disciplinar e penal sem que ocorra violação ao princípio do non bis in idem, conforme conclui Hely Lopes Meirelles.[9]
A restrição que fazemos a essa construção ¾ segundo a qual é possível à Administração processar e aplicar a pena por ilícito administrativo que também configura ilícito penal ¾ decorre do vício de competência que, nessa hipótese, não existe para a Administração.
Figure-se, por exemplo, a situação em que o agente seja acusado administrativamente de “crime contra a Administração”, definido no Código Penal, com fundamento no art. 132, I, da Lei 8.112/90. Nesse caso, por força de norma constitucional que define o princípio da unidade de jurisdição, compete exclusivamente ao Poder Judiciário definir se naquela hipótese há ou não a configuração do ilícito penal. Daí que é necessária a suspensão do processo enquanto perdurar o processo penal sob pena de, inconstitucionalmente, a Administração arvorar-se no direito de dizer o direito também em relação à esfera penal. Tal situação é inconcebível e caracteriza, no mínimo, usurpação de funções. Logo, a incidência da sanção disciplinar somente poderá ocorrer após a prolação da sentença penal condenatória.
Afora isso, não encontraria justificativa para a existência de previsão expressa nos estatutos de suspensão ou interrupção da prescrição quando os ilícitos também sejam ilícitos penais.
Não são irrelevantes essas observações diante da previsão expressa do art. 132, da Lei 8.112/90, in verbis:
“A demissão será aplicada nos seguintes casos:
I – crime contra a administração pública.”
Esse entendimento não é compartilhado pela Corte Excelsa. Para essa Corte, há sempre a possibilidade de aplicação da sanção administrativa concomitantemente com a penal conforme se pode concluir da decisão no Mandado de Segurança 22.362-6, in verbis:
“A ausência de decisão judicial com trânsito em julgado não torna nulo o ato demissório aplicado com base em processo administrativo em que foi assegurada ampla defesa, pois a aplicação da pena disciplinar ou administrativa independe da conclusão dos processos civil e penal, eventualmente instaurados em razão dos mesmos fatos. Interpretação dos artigos 125 da Lei nº 8.112/90 e 20 da Lei nº 8.429/92 em face do artigo 41, § 1º, da Constituição. Precedentes. 5 – Mandado de segurança conhecido, mas indeferido.[10] Porém, o princípio do non bis in idem tem aplicação plena quando se trata de processo instaurado dentro da mesma instância. Em outros termos: o servidor público poderá opor o princípio para impedir que a instância administrativa promova mais que um processo sobre o mesmo fato. Vigoram, nesse caso, as mesmas garantias materiais e formais, vigentes para o Direito Penal, no campo do Direito Disciplinar. Logo, se o fato já foi objeto de apuração e o agente punido (ou absolvido) o fato não mais poderá ser objeto de processo, nem se permite a abertura de novo processo.[11] O próprio Supremo Tribunal Federal expediu a Súmula nº 19, reconhecendo o princípio aqui mencionado: “É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada no mesmo processo em que se fundou a primeira”.
4. Flexibilização do princípio da independência de instâncias
O princípio da independência de instâncias, tantas vezes proclamado, levou a doutrina tradicional, assim como o próprio Supremo Tribunal Federal, a afirmar que “a punição administrativa ou disciplinar não depende de processo civil ou criminal a que se sujeite também o servidor pela mesma falta, nem obriga a Administração a aguardar o desfecho dos demais processos. Apurada a falta funcional, pelos meios adequados (processo administrativo, sindicância ou meio sumário), o servidor fica sujeito, desde logo, à penalidade administrativa. (…) A punição interna, autônoma que é, pode ser aplicada ao servidor antes do julgamento judicial pelo mesmo fato.[12]
Muito embora a lição ditada pelo mais renomado professor de Direito Administrativo, e em que pese a lei tenha consagrado o princípio em sua literalidade, o princípio da independência de instâncias vem sofrendo contemporização. Ora é a doutrina que lhe dá nova formatação; ora é a jurisprudência que lhe empresta novo significado. E esse trabalho de construção de uma nova forma e novo conteúdo já se reflete na própria legislação.
O reflexo na legislação já começa a se fazer sentir em alguns preceitos esparsos — mas de grande influência, uma vez que estão estrategicamente colocados em alguns textos legais de forte repercussão no ordenamento jurídico.
A primeira inserção estava contida no art. 1.525 do Código Civil de 1916, in verbis:
“A responsabilidade civil é independente da criminal; não se poderá, porém, questionar mais sobre a existência do fato, ou quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no crime”.
O atual Código Civil repete a disposição, em seu sentido e alcance, com diferença meramente formal, conforme abaixo se verifica:
“Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.”
Por seu turno, a legislação processual penal, no que guarda perfeita harmonia com a legislação civil, também propugna pela flexibilização do princípio da independência de jurisdição. Diz o art. 65 do Código de Processo Penal, in verbis:
“Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.
A complementação do disposto no art. 65 é realizada pelo art. 66 e 67 do Código de Processo Penal.
“Art. 66 – Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.
Art. 67 – Não impedirão igualmente a propositura da ação civil:
I – o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação;
II – a decisão que julgar extinta a punibilidade;
III – a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime.”
Na legislação estatutária o reflexo dessa orientação legal teve pouco aprofundamento, cabendo à doutrina e à jurisprudência, nos casos concretos, decidir pela flexibilização das instâncias. Talvez essa quase omissão se deva ao fato de que o legislador ordinário ao inserir a norma no Código Civil e Código de Processo Penal somente se referia às instâncias civil e penal sem dar a devida importância à esfera administrativa. Disso decorre que os estatutos, ao prever a repercussão, o fazem ainda de modo restrito, como é o caso da Lei nº 8.112/90, que se refere aos servidores públicos federais. Nesse estatuto há previsão de apenas duas hipóteses de reflexos da sentença penal na esfera administrativa. Diz o disposto no art. 65:
“A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria”.[13]
Mostra-se evidente que o princípio da independência de instância não é absoluto. É, ao contrário, relativo. E o dispositivo do Código Civil confere prevalência à jurisdição penal.
A conclusão que se extrai dos dispositivos acima mencionados é a de que a sentença penal transitada em julgado, desde que estabeleça um juízo definitivo sobre a existência ou não do fato, da autoria, da antijuridicidade, refletirá na esfera administrativa.[14] Daí que é importante estabelecer com precisão na sentença penal os fundamentos da absolvição ou da condenação do servidor público. É deles que diretamente decorre a influência da sentença penal na esfera administrativa, flexibilizando-se o princípio da independência de jurisdições.
5. Razões da predominância da jurisdição penal
Ainda que exista alguma divergência doutrinária acerca dos casos em que a sentença penal deva prevalecer sobre as demais instâncias, é certo que se admite a supremacia dessa instância sobre a instância administrativa e civil. Por isso é certo dizer que, quando cabível, a sentença penal faz coisa julgada nas instâncias civil e administrativa, podendo ser oposta questão de prejudicialidade.[15] A doutrina se encarregou de construir uma série de razões jurídicas e pré-jurídicas com o que pretendem demonstrar a predominância da jurisdição penal sobre a jurisdição administrativa. Entre eles, alguns merecem maior destaque:[16]
a) Princípio de ordem pública. As determinações de ordem pública, em se tratando de matéria penal, são extremamente mais exigentes — tanto do ponto de vista material quanto formal. Mostra-se, portanto, na matéria penal, uma presença mais intensa e criteriosa dos comandos de ordem pública.
b) Gravidade das conseqüências penais. O Código Penal, em diversos dispositivos, admite a condenação à perda do cargo público em face de ilícitos cometidos contra a Administração Pública. Não se trata de pena acessória. É pena principal. Disso decorre que os efeitos são extremamente mais gravosos na instância penal do que nas demais instâncias, devendo prevalecer aquela sobre estas.
c) Exigência probatória. O Direito Penal somente admite condenação quando ficar demonstrado de modo induvidoso a autoria, a materialidade, a culpabilidade e a antijuridicidade. Sem a presença firme e indiscutível desses elementos, o princípio in dubio pro reo determina a absolvição (ainda que seja por insuficiência de provas). “O juízo penal, em matéria de instrução e prova, é bem mais exigente do que as instâncias civil e disciplinar”, afirma José Armando Costa.[17] Ocorre que se o Juízo mais severo, mais rigoroso, entender que existe ou não o ilícito ou que incide uma circunstância excludente, não caberá ao Juízo mais simplificado opor-lhe resistência. Conclui-se, juntamente com Francisco Campos, que o caráter prejudicial da coisa julgada criminal está sustentada fundamentalmente na “razão do maior peso ou da maior intensidade com que se exteriorizam no Juízo Penal os motivos de ordem pública que no civil têm caráter mais remoto ou, se quiser, de segundo plano”.[18]
Não há, pois, qualquer dúvida sobre a possibilidade de incidência da sentença penal firme sobre as demais instâncias jurisdicionais. É necessário avançar para tratar dos casos e condições que os efeitos da sentença penal influem no âmbito administrativo.
6. Efeitos da sentença penal na instância administrativa
1.1. Delimitação de hipóteses
A classificação dos ilícitos administrativos é indispensável para que se possa compreender as hipóteses de ressonância da sentença penal na instância administrativa. A razão é simples: somente haverá comunicabilidade de instâncias quando houver a possibilidade jurídica de repercussão do ilícito nas demais esferas. Se a repercussão é meramente administrativa, nenhuma outra instância será acionada; se a repercussão atinge interesses gerais da sociedade, a instância penal poderá ser acionada. Desse modo, a comunicabilidade de instância exige que o delito repercuta externamente à Administração.
A doutrina moderna classifica, materialmente, em: a) Ilícito administrativo puro; b) ilícito administrativo penal; c) ilícito administrativo misto, onde estão presentes o ilícito administrativo penal e, residualmente, ilícito administrativo puro, como resíduo.[19] No primeiro caso, não existe possibilidade jurídica de repercussão, uma vez que a esfera administrativa é suficiente para apurar e julgar a conduta do servidor. “Não participa o Judiciário, em princípio, especialmente na esfera penal, pois o julgamento da falta exaure-se na própria esfera administrativa, exceto eventual controle jurisdicional de legalidade formal ou legitimidade, acionado na esfera cível” afirma Edmir Netto de Araújo.[20]
No segundo caso a conduta do servidor tem repercussão na esfera penal. No terceiro caso, a esfera penal será acionada, restando competência residual exclusiva para a Administração Pública. Ocorre que, no caso de haver resíduo, o juízo penal exime-se de apreciá-lo, não ingressando no mérito de eventual punição estritamente administrativa.
1.2. Efeitos da sentença penal condenatória
A sentença penal condenatória — uma vez que estabelece um juízo de certeza absoluta e incontestável — pelas razões expostas acima, torna indiscutível a questão na via administrativa e na via civil. Não abre mais a oportunidade de instauração de um novo processo de conhecimento. Evidentemente que essa repercussão somente existe quando houver a condenação por ilícito administrativo penal, conforme a classificação acima oferecida.
José Armando da Costa, em lição que merece ser transcrita, afirma:
“O decisório penal passado em julgado, contendo a insofismável afirmação de que o servidor público cometeu determinado fato ilícito, repercutirá indubitavelmente na seara disciplinar, não mais podendo ser ali discutido, a menos que o fato elucidado na sentença não seja definido, pela lei ou pelo regulamento, como falta disciplinar. Afora essa ressalva, a sentença penal condenatória transitada em julgado projetará, sempre, os efeitos no campo disciplinar”.[21] No mesmo sentido a lição Edmir Netto de Araújo[22] e José Cretella Jr.[23]
Por isso, três hipóteses podem ocorrer: a) se já houver processo administrativo sobre o fato decidido no processo penal, aquele perde o objeto em virtude da superveniência de sentença penal condenatória; b) se não houver processo administrativo, a Administração Pública aproveitará a sentença penal para aplicar a pena que nela for determinado (v.g. demissão); c) se o processo administrativo já estiver concluído, a sentença penal servirá apenas de confirmação se igual decisão tiver sido tomada pela Administração ou, acaso a decisão administrativa for contrária à decisão penal, a Administração deverá adequá-la.
1.3. Sentença penal absolutória. Casos de repercussão.
A observação atenta do fundamento da absolvição penal indicará com precisão se haverá ou não reflexos na esfera administrativa.
Assim, de acordo com os fundamentos da sentença penal, pode-se catalogar os seguintes casos de repercussão:[24]
a) Inexistência do fato que constituiu a única razão de punição do servidor. É o próprio regime jurídico único dos servidores federais que contempla essa hipótese. Se não há o fato, inexiste fundamento para aplicação de qualquer sanção.
b) Não há provas sobre a existência do fato. O fato não provado — materialidade — não tem a aptidão de produzir qualquer efeito no mundo jurídico. Esta hipótese não pode ser confundida com a inexistência de provas da ocorrência de ilícito penal ou que o fato constitua ilícito penal. Inexistir prova do fato tem a mesma conseqüência da inexistência do fato. Já dizer que inexiste prova da ocorrência de ilícito penal ou de que o fato constitua ilícito penal significa afirmar que o fato existiu porém as provas carreadas ao processo indicam que não preenche as condições estabelecidas no tipo penal ou são insuficientes para demonstrar a sua ocorrência.
c) Não existe prova de que o réu concorreu para a infração penal. “Se não concorreu, obviamente também não praticouo fato…”, diz Netto Araújo.[25] Equivale a reconhecer a negativa de autoria. d) A sentença penal reconhece a excludente de criminalidade. Se a ação do servidor público somente se deu por força de uma das hipóteses do art. 23 do Código Penal, embora se reconheça que o fato existe, assim como a autoria, a sentença penal reflete na instância cível e administrativa. Desse modo, o estado de necessidade,[26] legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito eximem de responsabilidade o autor da ação ilícita.
e) Eximentes de pena (art. 20, § 1º e 21 do Código Penal): estas hipóteses repercutem, dependendo do exame do caso concreto. O erro, se for de fato ou sobre a ilicitude do fato poderá ser suficiente para eximir da pena. Neste caso, somente a condenação por resíduos poderá subsistir na esfera administrativa.
A coação irresistível ou estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquica também se faz com que as instâncias se comuniquem uma vez que o Código Penal somente considera passíveis de punição os autores da coação ou da ordem. Enquadra-se aqui a embriaguez proveniente de força maior.
A inimputabilidade penal (art. 26 do Código Penal) também repercute, podendo servir de causa para a aposentadoria por invalidez ou a readaptação do servidor público.
Nestas hipóteses, a absolvição criminal incidirá sobre o processo administrativo, retroagindo os efeitos para recompor todos os prejuízos eventualmente havidos e restabelecendo o status quo ante. Apenas para exemplificar, acaso tenha sido o servidor expulso do serviço público, a sentença penal servirá de justa causa para reintegração com pagamento de todas as vantagens do cargo, como se não tivesse ocorrido a demissão.[27]
1.4. Sentença penal absolutória. Casos de não repercussão.
Muitas são as hipóteses em que a sentença penal deixa lugar para a incidência do princípio da independência de jurisdição. Nestas hipóteses remanesce para a Administração a autonomia na apuração e aplicação das sanções disciplinares. Entre os casos, pode-se catalogar os seguintes:
a) O fato não constitui infração penal. A interpretação do Direito Penal exige que, para que se configure o crime, exista exata subsunção entre o fato e a norma. A partir do exame de um e de outro, com interpretação restritiva, pode-se chegar à conclusão que o fato não constitui infração penal. Porém, mesmo não sendo crime pode caracterizar ilícito administrativo, sendo passível de punição. “Então, havendo previsão legal, mas em modelo não tão rígido quanto o criminal, o servidor poderá ser punido administrativamente e a sentença penal absolutória que declare que o fato não é crime, nenhuma ingerência terá na esfera administrativa, exceto quando o servidor tenha sido indiciado por crime, sem descrição administrativa da conduta”, afirma Netto de Araújo.[28]
b) Insuficiência, deficiência ou ineficiência de provas para a condenação. O juízo penal exige certeza e precisão em muito maior medida que o juízo administrativo, inclusive pela própria estruturação do tipo penal. Diante disso a prova insuficiente (frágil, débil), ou ineficiente (não é apta para preencher a estrutura do tipo penal), ou deficiente (falha) não pode conduzir a uma condenação. No entanto, poderá ser capaz e apta para produzir a incidência do poder disciplinar.
7. Conclusão
Diante do exposto, pode-se afirmar que:
a) o princípio da independência de jurisdições encontra amparo na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional;
b) o princípio da independência de jurisdição não é absoluto, admitindo a interferência de outras esferas, com prevalência da sentença penal absolutória ou condenatória, dependendo do fundamento da absolvição:
b.1) Se a absolvição tiver como fundamento a) inexistência do fato que constituiu a única razão de punição do servidor, b) Não há provas sobre a existência do fato, c) Não existe prova de que o réu concorreu para a infração penal, d) A sentença penal reconhece a excludente de criminalidade e e) eximentes de pena, a sentença penal influirá na esfera administrativa para restabelecer o status quo ante acaso tenha sido modificado por eventual punição administrativa. Observe-se que essa influência somente existe nos casos em que o fato constitua ilícito administrativo penal.
b.2) No entanto se o fundamento da absolvição consistir em a) O fato não constitui infração penal, e b) Insuficiência, deficiência ou ineficiência de provas para a condenação, não haverá reflexo na esfera administrativa, sobrevivendo incólume a decisão interna (seja condenatória, seja absolutória).
Nesse sentido a lição da Augusta Corte: “A absolvição criminal por insuficiência de provas não vincula a autoridade administrativa, que pode punir o servidor público com a pena de demissão, desde que assegurada a ampla defesa. 2 – Recurso conhecido e não-provido”.[29]
b.3) No caso da sentença condenatória, tendo como fundamento a prática de ilícito administrativo penal, a repercussão será inexorável e absoluta.
Eis a conclusão, s. m j.
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[1] Professor Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas. Advogado. Doutorando em Direito pela Universidade de Granada/Espanha; autor de Temas de Direito Administrativo”, Editora da UFPEL : Pelotas, 1998.
[2] Vide: Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, 24ª ed., Malheiros : São Paulo, 1999, p. 442.
[3] José Cretella Jr. Prescrição da falta administrativa. In: Revista Forense, nº 275, p. 63.
[4] Vide: Edmir Netto de Araújo. O ilícito administrativo e seu processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994, p. 251.
[5] Vide: Celso Luiz Moresco. Temas de direito administrativo. Editora da UFPEL : Pelotas, 1998, p. 28 e segs.
[6] Vide: Juan Manuel Trayter. Manual de derecho disciplinario de los funcionarios públicos. Madrid : Marcial Pons, 1992, p. 191.
[7] Trayter. Op. cit., p. 192.
[8] J. Cretella Jr., Prática do processo administrativo. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1988, p. 116.
[9] Op. cit., p. 109.
[10] STF ¾ MS 22.362-6 ¾ PR – Plenário – Rel. Min. Maurício Corrêa – Unânime – DJU 18.06.1999, p. 3.
[11] Nesse sentido, também, José Cretella Jr., Prática do processo administrativo, p. 76.
[12] Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. 24ª ed., São Paulo : Malheiros, 1999, p. 442.
[13] Cabe observar que esse dispositivo de lei é, em essência, a transcrição de decisão do Supremo Tribunal Federal (vide: Revista de Direito Administrativo 30/101; 36/112; 51/179 e 54/253). E, também, reflete exatamente o ponto de vista defendido pelo Prof. Hely Lopes Meirelles (Op. cit., p. 444), onde afirma que “a absolvição criminal só afasta a responsabilidade administrativa e civil quando ficar decidida a inexistência do fato ou a não autoria imputada ao servidor, dada a independência das três jurisdições”.
[14] Nesse sentido também a conclusão de José Armando da Costa (Teoria e prática do processo administrativo disciplinar. 2ª ed., Brasília : Brasília Jurídica, 1996, p. 301.
[15] “A relação condicionante, objeto de outra causa, dada a sua natureza prejudicial, determina a suspensão do processo, por força de norma legal que prestigia o princípio da economia processual e a própria lógica do sistema jurídico”. (STJ – 4ª Turma, Resp 3.032-RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, J. 7.5.91, deram provimento, v.u., DJU 3.8.92, p. 11.318, 2ª col., em.).
[16] José Armando da Costa, Op. cit., p. 301 e seguintes.
[17] Op. cit., p. 301.
[18] Direito administrativo. São Paulo, Freitas Bastos, vol. 2, p. 367.
[19] Vide: Edmir Netto de Araújo. O ilícito administrativo e seu processo. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1994, p. 254. Também, José Cretella Jr., Prescrição da falta administrativa. Revista Forense nº 275/66.
[20] Op. cit., 254.
[21] Op. cit., p. 302
[22] O ilícito administrativo e seu processo, p. 255
[23] Teoria e prática do direito administrativo, citado por Edmir Netto de Araújo, op. cit., p. 255.
[24] Seguimos as hipóteses oferecidas por Edmir Netto de Araújo, op.cit., p. 257.
[25] Op. cit., p. 257
[26]
[27] Netto Araújo, op. cit., p. 258.
[28] Op. cit., p. 259.
[29] (STJ – REsp 205.415 – SP – 5ª T. – Rel. Min. Edson Vidigal – Unânime – DJU 14.06.1999, p. 225)