Renato Luiz Mello Varoto
O aperfeiçoamento da legislação reguladora dos contratos de obras, serviços, compras, alienações e outras práticas no âmbito do poder público, evitando-se corrupção e negociatas, foi a razão da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, conhecida como Lei de Licitações e Contratos.Em que pese seu indisfarçável e profícuo objetivo, não foi de bom êxito o resultado da Lei no que se refere a graves prejuízos ao tesouro público. Freqüentemente são revelados procedimentos incompatíveis com os objetivos do legislador, o que, em verdade, representa o surrupiar do dinheiro público.Impossível desconhecer, da mesma forma, não haver a Lei evitado profundos e graves choques na esfera legal.
De qualquer sorte, fundamental reconhecer que a Lei de Licitações representou substancial avanço no objetivo de tornar realidade na administração pública os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Os atos da administração pública tornaram-se mais transparentes e, com isso, de mais fácil controle.
A Lei contém vários dispositivos que estabelecem conflitos, pelo menos aparentes, com outros diplomas legais, como é o caso do Código Penal. Prescinde-se aqui, até por limitação espacial, de longa e complexa análise de tantos quantos conflitos se possa entender existirem no bojo da mencionada Lei. O que aqui se busca é a análise apenas de uma questão que felizmente começa a encontrar posicionamento definitivo em nossos Tribunais Superiores.
À luz deste entendimento cabe observar, pontualmente, a importância em nossa Jurisprudência de consagrar decisões capazes de dirimir o conflito estabelecido entre o art. 93 da Lei 8.666/93 e os artigos 297 e 304 do Código Penal, referindo-se, todos, em linhas gerais, à fraude. Obviamente sem esquecer o artigo 335 do Código Penal, que dispõe, com maior rigor técnico-jurídico, sobre o impedimento, perturbação ou fraude de concorrência pública, e que, por sua amplitude, mereceria comentário em apartado.
Assim:
Nos crimes previstos na Lei de Licitações está o de “impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório”, com pena de detenção de seis meses a dois anos e multa. Importante acentuar que, por ser um verbo “aberto”, a conduta resultante do “perturbar” contém em si mesma procedimentos como criar dificuldades, tumultuar, embaraçar e outros que se assemelham e cuja clareza no mundo físico é de pouca objetividade. Por igual, frise-se que o tipo aí definido é crime de resultado e, portanto, ao contrário do que alguns poucos têm entendido, ele só ocorrerá com a consumação do prejuízo, ou seja, a ocorrência do acontecimento. Não há falar em crime nos termos do art. 93 da Lei 8.666/93, quando não ocorrer dano efetivo à administração pública. Cabe, por lógico, excluir da atividade criminosa a conduta motivada por justa causa, ainda que dela decorra algum dos procedimentos previstos no texto legal.
De outra banda, no Código Penal, leia-se:
“Falsificar, no todo ou em parte, documento, público, ou alterar documento público verdadeiro”. Pena de reclusão de dois a seis anos e multa. (art. 297). Deixando-se aqui de considerar os parágrafos e respectivos incisos do artigo, posto que despisciendos ao raciocínio empregado.
“Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os artigos. 297 e 302”. Pena a mesma cominada à falsificação ou à adulteração. (art. 304). O documento referido no art. 302 é o atestado médico.
O tema, portanto, a ser enfrentado, não tem, como insistentemente lhe agregam, o caráter conflituoso que tantos debates e, por conseqüência, denúncias descabidas e ineptas hão produzido. É claro, até mesmo por elementar, que tais equívocos podem, a teor do artigo 383 do Código de Processo Penal, ser corrigidos a qualquer momento, inclusive pelo julgador quando da sentença. Por sabido que o acusado se defende de fatos e não da capitulação, mas há necessidade de destacar, principalmente quando forem lembradas, as leis que tratam dos juizados especiais criminais, que uma denúncia equivocada pode, o que freqüentemente ocorre, submeter o réu a rito processual desfavorável, além de impedir benefícios que lhe seriam concedidos ab initio. O advento da Lei 10.259/01, ampliando o conceito de “infrações de menor potencial ofensivo”, potencializou, sem a menor dúvida, o perigo à Liberdade, à Justiça e ao Direito de uma denúncia que tipifique mal a conduta do agente acusado.
No caso em tela, forçoso é ter bem clara a tipificação que se busca, sob pena de causar injustos e irreparáveis danos ao acusado. Ora, não é necessário nenhum esforço hercúleo para demonstrar que, ao estabelecer-se, o que a Lei não o faz, conflito entre os dispositivos do Código Penal e o da Lei de Licitações, estar-se-á, por certo, dando largo passo no sentido de consagrar uma persecutio injusta, provavelmente ilegal e desumana.
O que se quer aqui, alertar, ainda que rapidamente, é que quando detectado em fase de habilitação ao processo licitatório, a pretendida fraude através do uso de documento falso ou de qualquer uma das outras condutas previstas na lei, não há falar em agressão ao art. 93 de Lei de Licitações. Não haverá, a toda evidência, a consumação da fraude, com o que inexistente o ilícito, que exige a comprovação do prejuízo. Resta, portanto, segundo alguns, examinar a conduta do acusado apenas em nível de Código Penal, aplicando-se-lhe, se for o caso, a reprimenda ali prevista. Medidas mais concretas ficam, desde logo, vinculadas às exigências e limites do Código.
Inevitável, por fim, lembrar que, consagrado em Doutrina e Jurisprudência, o princípio da especialidade, isto é, a lei especial prevalece sobre a geral.
advogado