Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira
Tenho acompanhado as várias notícias que têm sido divulgadas a respeito da Reforma Administrativa, definitivamente aprovada no Congresso Nacional, após mais de dois anos de longa discussão. Três delas, pelo menos, causaram-me inquietação, as quais passo a discorrer, sem qualquer avaliação sobre o mérito das alterações ocorridas.
A primeira delas refere-se à afirmação de que é incabível o concurso público nos chamados contratos de gestão. A questão envolve estudos amplos, mas que, em síntese apertada, passa pelo conhecimento do Plano Diretor de Reforma do Estado, que dividiu a Administração em quatro núcleos. A controvérsia repousa nos 2º e 3º Núcleos, aquele de serviços exclusivos do Estado, prevendo-se a criação ou a qualificação de autarquias e fundações em Agências Executivas (Lei nº 9.649/98) e este, de serviços não-exclusivos, campo de atuação das chamadas Organizações Sociais, entes privados, que, em parceria com o Estado, porque dele receberão recursos, participarão da promoção de serviços, como a educação, a saúde, o meio ambiente e outros (Lei nº 9.637/98). Ambas as figuras jurídicas recém-criadas estão autorizadas a celebrar contratos de gestão, previstos no novo art. 37, § 8º da Constituição Federal, autorização essa que engloba, além da Administração Pública Indireta, a Administração Pública Direta, nos termos como propôs o substitutivo oferecido pelo deputado Moreira Franco, que em agravo, previu, ainda, regras específicas de contratação temporária de pessoal via contrato de gestão (art. 37, § 8º,‘‘d’’). No entanto, ao argumento de que tal implicaria na possibilidade de admissão sem concurso público, o deputado retirou, ele próprio, a mencionada alínea ‘‘d’’. Isso quer dizer que, pelo menos em termos de interpretação histórica, é possível concluir que não se quis afastar a moral admissão nas hipóteses em que a mão-de-obra vier a ser recrutada, quer pela Administração Pública Direta e Indireta e aqui pelas Agências Executivas, quer pelas Organizações Sociais, por meio de contrato de gestão. No entanto, a redação do art. 37, inciso II da Constituição, ainda mantém a previsão do concurso público apenas para os cargos, empregos e funções, o que certamente ensejará maiores polêmicas.
A segunda questão trata dos agentes políticos ou membros de poder que perceberão subsídio, parcela única, não fazendo mais jus às suas eventuais vantagens pessoais, nos termos da redação do art. 39, § 4º da CF. No entanto, outra interpretação tem ido colhida, de que o art. 37, XI da CF, ao qual o anterior dispositivo faz remissão, alude ao teto, incluídas, textualmente, às ‘‘vantagens pessoais’’. Ora, sendo assim, o agente político que percebesse vantagem pessoal, mas que não atingisse o teto, teria o seu direito preservado. É, contudo, necessário ressaltar que o art. 37, XI, refere-se ao termo ‘‘vantagens pessoais’’, porque trata também dos servidores públicos, que efetivamente as podem ter, desde que se submetam ao teto. Sendo assim, o agente político não poderia validamente utilizar o termo grafado no art. 37, XI, pois entra em contradição direta com o que diz ser o subsídio parcela única. Fora isso, questiona-se, pelos mesmos motivos, se esses e outros que receberão subsídio poderão perceber, na nova sistemática, 13º salário e férias, já que parlamentares, magistrados e promotores percebem os dois, sendo que apenas o presidente da República não percebe férias. Já se argumenta, assim, que esses valores seriam devidos, a título de subsídio-extra.
Finalmente, questiona-se o art. 39, § 5º, realmente tratou do subteto, ao argumento de que o art. 37, inciso XII do substitutivo adotado pela Câmara previa a hipótese de leis locais estipularem limite remuneratório inferior ao teto nacional. Como referido dispositivo não passou, tendo sido mantido apenas o citado parágrafo 5º (na redação anterior, § 7º) sem remissão ao tal inciso XII, é porque o subteto não mais encontraria previsão. Referida tese não prevaleceu, tanto que a recente Lei nº 9.624/98 estimulou o novo limite remuneratório para o Poder Executivo Federal que passou a ser de 80% (oitenta por cento) do cargo de Ministro de Estado. O certo, a meu ver, é que diversamente do que se disse, o dispositivo constitucional, tal como está redigido, permite o subteto, pois utiliza a expressão ‘‘em qualquer caso, observado o art. 37, inciso XI’’, e também não se limita a essa ou aquela carreira, mas aos ‘‘servidores públicos’’, em geral.
Resta saber se é possível perceber valores acima do subteto, mas abaixo do teto nacional. Os que defendem essa possibilidade admitem o subteto, mas entendem que a percepção é devida porque a irredutibilidade só cederá em relação ao teto. Apesar de respeitável, considero o argumento frágil, porque também o art. 39, § 5º, manda observar o art. 37, XI, de tal sorte que, se assim fosse, não haveria nem mesmo o subteto.
Em conclusão, só é possível um teto em nível local e todos lhe devem obediência, salvo direito adquirido, já que lei local não poderá prejudicar referido direito, nem mesmo lei reclamada em texto constitucional. Então, o servidor que estiver percebendo acima do subteto e abaixo do teto nacional poderá, validamente, opor-se à redução, se invocar direito adquirido. Com efeito, não é todo o excesso que se inclui nessa condição.
De qualquer modo, é sempre válido lembrar que a discussão deverá chegar ao STF, pois os dispositivos questionados, inclusive o próprio art. 37, XI (que manda incluir as vantagens pessoais no teto para efeito de corte) é fruto de um poder constituinte derivado, que não poderia suprimir um direito individual (art. 60 § 4º, IV, da CF), como é a hipótese do direito adquirido.
Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira
Procuradora do Ministério Público junto ao Tribunal de
Contas do Distrito Federal e autora do livro ‘‘Reforma
Administrativa — O Estado, o Serviço Público e o Servidor’’