Há mais de duzentos anos congressistas franceses legaram para o mundo o conceito, a partir da localização das pessoas num determinado espaço físico, que ainda hoje define a orientação política tomada pelas correntes de pensamento na sociedade. Na Assembléia dos Estados Gerais de 1789, girondinos e jacobinos debatiam os limites da pré-revolução burguesa que pôs fim ao regime dos nobres, da aristocracia e dos clérigos monarquistas (1).
Por escolha absolutamente aleatória (2), os congressistas defensores de pequenas alterações no modelo político-econômico francês, mas sem a perda da essência do poder, estavam sentados à direita, enquanto os radicais na luta pelo fim dos privilégios e representantes da pequena burguesia e do proletariado urbano, posicionaram-se à esquerda. Nunca mais esquerda e direita se limitaram a exercer o papel de meros sinalizadores.
Ambas as correntes ideológicas, no passado não muito distante, assumiam-se com tais perfis sem nenhum temor. O problema é que depois de revoluções, contra-revoluções, o holocausto e o genocídio causados pela direita nazi-fascista de Hitler e de Mussolini, bem como as ações criminosas em massa da pretensa esquerda dos stalinistas, a nova direita ridiculariza a referida conceituação, enquanto a esquerda já não é mais tão esquerda assim. Uma nega o seu passado e a outra é incapaz de desempenhar a tarefa para a qual um dia se comprometeu. É o enredo da negação versus a capitulação.
O genial Ariano Suassuna, com raro senso de expressar a sua opinião sem o receio do patrulhamento, é taxativo ao declarar que “no Brasil atual, é de esquerda quem luta para manter a soberania nacional e é socialista, colocando a sua visão do social com ênfase na justiça, sendo de direita quem é entreguista e capitalista” (3).
No Brasil governado pelo Partido dos Trabalhadores, a velha direita, de roupagem aparentemente mais moderna, por meio de articulistas e de outras nefastas figuras do mundo político, diariamente cria e recria teses conspiratórias mirabolantes de que estamos vivendo tempos de administração do país pelos soviets (conselhos operários), de “comunização” e de “cubanização”da “patria amada” somente pelas elites reacionárias golpistas.
É gente que ainda condena Jean Jacques Rosseau pela influência de suas idéias sobre a revolução francesa. São saudosistas das relações sociais mais atrasadas da Humanidade. Aplaudem a política beligerante de Bush e de Sharon que podem lançar o mundo no caminho da ida sem volta. São pessoas que não disfarçam o ranço preconceituoso contra o que há de mais nobre no atual Presidente da República, a sua origem humilde, operária, a mesma da imensa maioria do povo brasileiro.
Nutrem ódio fascista porque uma força política outrora identificada como de esquerda, chegou ao poder de maneira legítima, e cujo primeiro mandatário eleito não freqüentou qualquer universidade, seja brasileira, norte-americana ou européia. Continuam a praticar, pois, o que sempre fizeram durante toda a sua história: propagação de rasgados preconceitos dos mais variados gêneros, segregacionismo social e eliminação das forças identificadas com os explorados.
Sofrem da psicose da perseguição comunista. Têm pesadelos com as imagens e idéias de Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Mészáros, José Saramago,Boaventura de Souza Santos, Emir Sader e de Ricardo Antunes. Satanizam e ridicularizam quem lê os pensadores socialistas, como se o mundo inteligente fosse obra divina de falsos sábios propagadores da doença degenarativa do ódio ideológico à democracia social, mas não gostam de lembrar que a tal inteligência de exercício do poder por eles construída arrasou a humanidade e calou nações mundo afora, inclusive no Brasil dos golpes seguidos das ditaduras de 1937 e de 1964.
Mas há motivo para a turma brasileira de aprendizes das manias da velha Tradição, Família e Propriedade, guardar tamanha preocupação com os rumos do governo Lula? Nenhum. É óbvio que essa gente delira e atira na própria sombra, sendo capaz de enxergar “perigosos comunistas” até no céu ou no inferno após o ato final. Sofrem do mal incurável do medo da igualdade, em qualquer plano.
E por que é desnecessária a preocupação da direita com os rumos do atual governo? Ora, porque estamos diante de um governo que cumpre com extremo rigor os ditames do mercado e dos credores internacionais, especialmente os caprichos da maior nação imperialista, com enormes sacrifícios para o povo trabalhador brasileiro. O modelo econômico, base de sustentação do aparato político, é o dos sonhos de liberais e da direita, tendo como um dos principais articuladores, importante banqueiro oriundo do sistema financeiro mundial.
As reformas realizadas e as que se anunciam, em momento algum, colocam em xeque a elevadíssima concentração de renda existente no Brasil. Como em qualquer governo de composição, há ministros empresários, ruralistas, integrantes de blocos conservadores e outros que militaram na esquerda.
Do ponto de vista político, as alianças construídas no Congresso e na sociedade estão sempre à direita, quando analisamos o perfil histórico do Partido dos Trabalhadores, não havendo espaço para eventuais mudanças mais ousadas. E como poderia ser diferente se a agenda do governo Lula coincide com a de qualquer governo centrista?
Aliás, apenas a título de ilustração, como considerar de esquerda um governo que não teve coragem de enfrentar logo o mistério do desaparecimento de militantes na guerrilha do Araguaia, mesmo após decisão judicial nesse sentido, que trabalhou insistentemente para conceder privilégios ao sistema financeiro na nova lei de falências em detrimento da força de trabalho ou que em nada colaborou para lançar luz sobre a CPI do Banestado, esse cipoal em que está enredada boa parte da elite brasileira? Evidentemente que de esquerda não se trata, e socialista muito menos.
Portanto, devagar com o andor os afoitos ultra-direitistas brasileiros, eis que o governo desejado pela vontade livre do eleitor em 2002, em face de bandeiras históricas das forças que conduziram o líder operário Lula à Presidência República, deveria enfrentar outros e maiores desafios de interesse da classe trabalhadora nacional, e que ainda não enfrentou.
Ainda que para causar arrepios, devo trazer à tona novamente a franqueza nordestina de Ariano Suassuna, tendo ele sentenciado que “olhando para o futuro, acredito que enquanto houver um desvalido, enquanto perdurar a injustiça com os infortunados de qualquer natureza, teremos que pensar e repensar a História em termos de esquerda e direita” (4).
Com ou sem rusgas, definitivamente, a esquerda não ocupou o poder no Brasil.
Notas de rodapé
01- LEMOS, Anderson de Macedo. Direita X Esquerda – Uma visão histórica – Revista Política. Ano II, nº 8, Fevereiro/2004.
Revolução Francesa – Princípios da esquerda e eficácia da direita –
02- Princípios e verdades da esquerda. Seminários – Irreflexão Política Social e Econômica.Internet.
03- SUASSUNA, Ariano. “Esquerda e Direita” – Artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, de 14/09/1999.São Paulo-SP.
04- Suassuna, Ariano – Artigo citado
por Grijalbo Fernandes Coutinho