*José Olavo Bueno dos Passos
“A sensibilidade ao decidir a sorte de seus pares é circunstância inerente ao julgador.Sem ela não se faz justiça, muito embora se opere o direito. Entre um e outro, que se proceda a justiça.” (o autor)
A Lei de Execução Penal prevê, e não poderia deixar de assim proceder, o sistema de progressão carcerária na execução da pena privativa da liberdade. É o que determinada a moderna criminologia; é o acatamento da ressocialização com principal objetivo da sanção cerceadora da liberdade, único a manter elo sustentador da manutenção nos ordenamentos jurídicos atuais tal tipo de apenamento.
Douta magistrada, note-se que o recolhimento ao cárcere representa o afastamento temporário de indivíduo, integrante do contexto social, que compõe essa estrutura social. Afastá-lo porque motivo? Grande, imensa questão. Ora, muito embora possa buscar-se respostas em seara mais longínqua, é possível responder-se a interrogação de uma forma mais simples: o afastamento se dá para o tratamento, para a recuperação, para a reeducação.
Dessa forma, o grande trabalho da área penitenciária deve ser a de recuperar-se o apenado.
Saliento aqui, para não deixar lacunas a falsas interpretações, que não estou a defender a revogação do processo penal e de sua conseqüência, da pena. Pelo contrário, havido o delito, que se imponha ao culpado a devida sanção legal. Faça-se, no entanto, com a clara noção de que com isso estar-se-á operando a repressão ao delito, a prevenção de novos fatos, mas que isso é feito, em caráter primordial, para afastar da vivência social quem não pode viver, momentaneamente, em sociedade, para no período de ausência tratá-lo, reeducá-lo para futuro retorno à companhia de seus pares.
Dentro do sistema progressivo, o avanço do regime mais gravoso para o de menor intensidade carcerária é uma das formas de reinserção do preso dentro da sociedade de onde foi retirado. Testa-se a aptidão do condenado. Busca-se saber se pode ele voltar a vivência social.
Nada existe, em termos legais, a obstar essa possibilidade, inclusive a chamada Lei dos Crimes Hediondos, inconstitucional em seu artigo fixador da integralidade do cumprimento da pena em regime fechado, como muito bem avistou e escreveu o douto Desembargador Antônio Carlos Netto Mangabeira, integrante na 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação nº 700010588460: “Conforme já me manifestei em inúmeras oportunidades, entendo ser inconstitucional o art. 2º, parágrafo 1º, da Lei dos Crimes Hediondos, a estabelecer que os condenados pelas infrações ali elencadas deverão cumprir o castigo segregatório em regime totalmente fechado. Tal norma, como se verá a seguir, impede a adequada individualização da pena à pessoa e significa ofensa aos princípio da humanidade da sanção, garantias contidas na Lei Maior, art. 5º, incisos III, XLVI e XLVII)”.
Na mesma linha, no sentido da possibilidade da progressão carcerária em crimes hediondos, o entendimento dos Ministros Vicente Leal e Fernando Gonçalves, integrantes do Superior Tribunal de Justiça: HC nº 7.185, 6ª Turma, Rel. Ministro Vicente Leal, DJU 10.08.98, p. 81; STJ, RHC 8,046, 6a, Turma, Rel. Ministro Vicente Leal, DJU 14/12/98, p. 306; STJ, RHC,7.856, 6ª Turma, Rel. Ministro Vicente Leal, DJU 14/12/98, p. 304; STJ, HC nº8.264, 6ª Turma, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, DJU 03/05/99, p. 179; STJ, HC nº 8.181, 6ª Turma, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, j. 08/06/99, DJU 20/09/99, p. 86; STJ, HC nº 8.640, 6ª Turma, Rel. Ministro Vicente Leal, DJU 20/09/99, p. 87.
Damásio de Jesus, escrevendo a respeito da progressividade do regime prisional, em crimes hediondos, expressa-se da seguinte forma: “…com fundamento no princípio constitucional da proporcionalidade. O art. 5º, XLIII, da CF, equipara o delito de tortura aos hediondos e assemelhados. Ora, se a lei de Tortura, posterior à Lei dos Crimes Hediondos, admite a progressão, de estender-se os benefícios a estes assemelhado, por aplicação retroativa da norma mais benigna (CF, art. 5º, XL; CP, art. 2º, parágrafo único”- Boletim do IBCCrim, Novembro/99, nº 84. p. 02).
Ressalte-se que a integralidade do regime fechado para os crimes hediondos esbarra no próprio objetivo principal, da pena privativa da liberdade, já referido anteriormente, acatado por nossa Lei de Execuções Penais, uma das mais modernas do mundo, que é a ressocialização do apenado e, como ensinam doutrinadores do porte de Cezar Bittencourt, única justificativa para existência, ainda, de tal tipo de apenamento.
A reeducação do preso atráves do tratamento penal, operado através do trabalho e da educação, esta última o meio mais eficaz de alcançá-la, é o grande esteio da pena privativa da liberdade.
Aliás, há de se perguntar o que ganha a sociedade humana com o encarceramento integral, pelo período total da pena privativa da liberdade imposta? A resposta é simples: nada, absolutamente nada. Perde sim a chance de testar ao apenado, de reinserí-lo paulatinamente na sociedade de onde foi segregado. Ao final de sua pena, é jogado no meio dos homens livres. Terá se recuperado? O tempo que passou no cárcere terá mudado seu caráter? Sua revolta, sua violência, sua agressividade terão sido contidas? Nada disso foi aferido pelo magistrado, pelo Ministério Público, pelos operadores da execução penal.
“A penitenciária é, verdadeiramente, um hospital, cheio de enfermos de espírito, ao invés que do corpo, e, alguma vez, também do corpo; mas que singular hospital! No hospital, a priori, o médico, quando percebe que a diagnose está errada, corrige-a e retifica a terapia. Na penitenciária, ao contrário, é proibido assim fazer. Não é um hospital, onde não se tenham médicos e enfermeiros: o diretor da penitenciária e os outros, que o auxiliam na direção, são o mais que desprovidos daquelas condições, que podem servir para a cura de seus enfermos; e muitas vezes eles atendem com compreensão, com paciência e por fim até com abnegação. Por outro lado, para esses médicos, a diagnose do juiz é imposta com autoridade, em função da coisa julgada; a prova do progresso da doença não importa. O juiz disse dez, vinte, trinta anos e dez, vinte, trinta devem ser, ainda que a prova demonstre que é muito ou pouco, porque também, antes do período estabelecido, o doente recuperou a saúde, ou também ao contrário, o período transcorreu inutilmente” – Carnelutti, Francesco. As Misérias do Processo Penal, 1957: Edizioni Radio Italiana, pags. 68 e 69.
É o mesmo doutrinador antes citado, do cume de sua sapiência, que declina, na mesma obra, às págs. 52 e 53: “O juízo, para ser justo, deveria ter em conta não somente o mal que um teria feito, mas também o bem que fará; não só da capacidade para delinqüir, mas também da sua capacidade para se redimir (grifo nosso)”.
Estampou Carnelutti, na mesma obra, às págs. 35 e 36, lapidar lição: “Poderia também dizer que é questão de fé no homem a questão penal. Mas a fé no homem se conquista somente amando o homem. Mais que ler muitos livros queria que os juízes conhecessem muitos homens; se fosse possível, sobretudo santos e canalhas, aqueles que estão sobre o mais lato ou o mais baixo degrau da escada. Parecem imensamente distantes; mas sobre o terreno do espírito acontecem coisas estranhas. Aqui, assim pouco se quer para um canalha virar santo. Cristo, com o exemplo do ladrão crucificado, nos tem ensinado! Após tudo basta que o canalha se envergonhe de ser canalha; e pode também bastar que um santo se glorifique de ser santo para perder a santidade. Estas são realmente as coisas essenciais; mas não se encontram em nenhum manual de psicologia. Antes se aprende na igreja ou nas penitenciárias. Curiosa também esta aproximação, não? Entre a igreja e a penitenciária, qualquer coisa como colocar juntos o inferno e o paraíso. Mas o erro, o tremendo erro está no crer que aqueles que estão recolhidos na penitenciária sejam malditos” (Grifo nosso).
Assim, na linha de raciocínio exarada, entendo que, em tendo o apenado bom comportamento carcerário, tendo cumprido o lapso temporal exigido em lei para auferir a passagem do regime carcerário atual para outro menos gravoso, bem como tendo condições subjetivas para lograr o benefício buscada, partilhando da tese exposta na concepção “Neodefensista Social”, que expõe o entendimento de que cumpre aos operadores do direito, aos magistrados, aos integrantes do Ministério Público a execução de procedimentos que venham em defesa da sociedade e, portanto, todo o agir no sentido da recuperação do apenado é um agir em defesa da sociedade, já que um dia ele voltará ao convívio social, devendo, então, voltar recuperado, mesmo que ainda parcialmente, que não importa se o crime praticado foi hediondo ou não, sendo sempre cabível a progressão carcerária.
Cumpre salientar-se, embora o anteriormente consignado, que em havendo decisão de segundo grau entendendo pela integralidade do regime carcerário fechado para o cumprimento da pena imposta, torna-se impossível juridicamente a concessão da progressão carcerária pelo Juízo da Execução Penal, proceder que lesaria a coisa julgada posta, a qual, em não havendo exame do tema na alçada dos tribunais, em sede de conhecimentos recursal ou originário, não se especializa.
*Promotor de Justiça
Professor Universitário