Marco Aurélio Romeu Fernandes*
Em anterior oportunidade, tratamos sobre as principais mudanças ocorridas no CPC decorrentes da edição de duas leis de dezembro de 2001 (lei 10352/2001 e 10.358/2001), que entraram em vigor a partir de março do ano seguinte. Na oportunidade, já manifestávamos nossa compreensão que as mesmas, junto com outras inúmeras leis que foram emitidas nos últimos anos, destinavam a dar continuidade à adequação de nosso diploma processual às necessidades da sociedade contemporânea. Envoltos, porém, na expectativa de toda a comunidade jurídica brasileira com a vigência do tão esperado Novo Código Civil, ocorrido em 11 de janeiro p.p., muitos “esqueceram”, ou não deram a devida importância, a edição da Lei 10.444, de 07 de maio de 2002, que teve vigência a contar de agosto daquele ano e que, mais uma vez, trouxe alterações – algumas profundas – a diversos diplomas processuais.
Nosso objetivo, pois, neste pequeno trabalho é, dando continuidade à manifestação anterior, e no mesmo diapasão, identificar e comentar as principais mudanças, adaptações e ajustes decorrentes do diploma legal de maio de 2002. O que faremos em dois momentos distintos.
DA TUTELA ANTECIPADA
Neste andar, o art. 273, que já houvera sofrido profunda alteração em relação ao texto original, quando da inclusão da figura da tutela antecipada, veio a suportar a inclusão de dois novos parágrafos e alterada a redação de outro.
Identifiquemos, então, referidas novidades.
“Art. 273 – […]
§ 3º – A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§4º e 5º, e art. 461-A.
[…]
§ 6º – A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso.
§ 7º – Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida em caráter incidental do processo ajuizado”.
Considerando que a medida antecipatória não se efetiva, necessariamente, pela técnica executiva, operando-se no mesmo processo no qual é deferida, normalmente por provimentos mandamentais e executivos latu sensu, por utilização de medidas de apoio previstas no art. 461 §§ 4º e 5º, o legislador adequou a redação do § 3º deste artigo, fazendo constar expressão tecnicamente mais adequada. Passou a tratar, pois, da “efetivação da tutela antecipada”, ao contrário do texto anterior que referia à “execução da tutela antecipada”.
Ainda, no mesmo § 3º, restou concedido à figura da tutela antecipada um tratamento, no que refere à sua implementação, idêntico ao da execução provisória.
A nova redação determinou uma aplicação total das regras da execução provisória em sede de efetivação da tutela antecipada. Vale dizer que, diferentemente do até então existente, há uma imposição do regime de responsabilidade objetiva por eventuais danos decorrentes da efetivação da medida, nos termos do art. 588, I.
Na busca de instrumentalizar o magistrado para que a efetividade do processo seja algo real e concreto, o mesmo parágrafo possibilita, expressamente, a aplicação dos dispositivos referentes à tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e dar coisa distinta de dinheiro, nos termos do art. 461 §§ 4º e 5º e art. 461-A do CPC (que trataremos em momento posterior).
Em verdade, o tratamento concedido pelo legislador a tais matérias determinou a criação de um sistema de vasos comunicantes entre estes dois momentos processuais, visto que aqueles parágrafos do art. 461 caracterizam-se por serem medidas de coerção direta e indireta de que o magistrado pode valer-se, inclusive de ofício, para efetivar a tutela antecipada.
Profunda alteração trazida no seio do artigo 273, com a inclusão do § 6º, acima transcrito, foi a possibilidade da resolução parcial do mérito.
Notadamente, tal hipótese, oriunda do pensamento do Prof. Luis Guilherme Marinoni 1, pressupõe o fracionamento do julgamento decorrente do tipo de pedido e a ausência de controvérsia em relação a ele, inobstante mantenha-se discussão acerca de outro, ou outros, pedidos cumulados, naqueles casos de cumulação simples de pedidos.
Para referido mestre paranaense, na hipótese autorizada no § 6º, a qual não pressupõe a presença dos requisitos gerais desta espécie de provimento (previstos nos incisos I e II do art. 273) o magistrado estará desenvolvendo verdadeira cognição exauriente e efetivo juízo de certeza e, tendo em conta que a tutela não se funda em mero juízo de probabilidade, mas, ao contrário, decorre da ausência de controvérsia, não há razão para temer-se eventual irreversibilidade.
Decorrendo da ausência de controvérsia, por óbvio, a tutela antecipada fulcrada nesta hipótese pressuporá que o processo tenha avançado em suas fases iniciais, tendo sido oportunizada ao réu a possibilidade de resposta. Ousa-se afirmar, inclusive, que estamos frente a uma outra possível conduta que o magistrado poderá adotar na fase do julgamento conforme o estado do processo.
Considerando-se, igualmente, que a situação em tela não seria verdadeira tutela antecipada, mas emissão da própria solução definitiva, fundada em cognição exauriente, onde estaríamos frente a duas decisões de igual porte, sem nenhuma distinção ontológica nem vínculo de subordinação, pode-se indagar acerca da natureza jurídica de tal ato e, por conseqüência, qual seria o remédio recursal adequado para eventual ataque. Dinamarco assevera neste sentido, dizendo que o legislador deveria ter ido mais longe, autorizando o “julgamento antecipado parcial”2, ou seja, a prolação de sentença parcial, em momentos distintos.
Contudo, considerando-se que devemos caracterizar a espécie de ato processual de conteúdo decisório a partir da expressa conceituação colacionada no art. 162 do CPC e dos efeitos processuais que provoca, não há como nos distanciarmos da idéia de que tal provimento tem natureza jurídica de decisão interlocutória e, por conseqüência, agravável.
Por sua vez, o § 7º veio a instituir em nosso ordenamento a regra da fungibilidade entre as medidas antecipatórias e cautelar, resolvendo questão prática que atormentava os advogados em sua lide forense.
Não raras hipóteses podemos mencionar nas quais a jurisprudência e doutrina não conseguem, pacificamente, identificar como pretensão meramente acautelatória ou, ao contrário, com viés verdadeiramente de antecipação de alguns dos efeitos da sentença final de mérito.
Inobstante tenhamos claro que tais medidas (antecipatórias e cautelares) são técnicas processuais distintas e que a doutrina já às caracterizou adequadamente, a dúvida, frente aos casos concretos, teima em se fazer presente.
Muitas vezes o advogado posta-se em verdadeira encruzilhada sobre qual instrumento manejar, indagando, ainda, acerca de qual magistrado iria analisar sua peça e qual seu entendimento sobre a questão. Muitas vezes esta, aí, instaurada verdadeira loteria.
O texto do § 7º acaba com esta controvérsia. Considerando o juiz, ao receber eventual pedido antecipatório, estar frente a uma hipótese de provimento cautelar, simplesmente deverá conceder a cautela de forma incidental ao processo ajuizado, ao invés de indeferi-lo.
Ocorrerá concessão de provimento cautelar fora do âmbito do processo cautelar.
As indagações acerca do processo cautelar a partir de tal hipótese legal são muitas as quais, infelizmente, não são passíveis de serem enfrentadas neste pequeno espaço.
Uma citação, contudo, devemos fazer, qual seja, acerca da possibilidade de via inversa sobre tal questão.
Dinamarco, em sua obra afirma que “também o contrário está autorizado, isto é: também quando feito um pedido a título de medida cautelar, o juiz estará autorizado a conceder a medida a título de antecipação de tutela, se esse for seu entendimento e os pressupostos estiverem satisfeitos”.3
Há, contudo, entendimentos distintos.4
DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA
A estrutura até então vigente acerca da execução provisória fundava-se em três pontos:
prestação de caução (embora algumas exceções conferidas pela jurisprudência) e responsabilização objetiva do credor por eventuais danos;
não se autorizava a alienação de domínio, nem levantamento de importância sem a caução de caução idônea; e
uma vez reformada a decisão da qual pendia recurso, a execução tornava-se sem efeito.
A nosso ver, as duas principais alterações trazidas pela Lei 10.444, ao art. 588 do CPC, foi a possibilidade de satisfação integral do direito do exeqüente mediante levantamento de importância em dinheiro e alienação do bem, desde que seja prestada caução idônea. Foi mais longe o legislador ao autorizar prescrever que “a caução pode ser dispensada nos casos de credito alimentar, até o limite de 60 (sessenta) vezes o salário mínimo, quando o exeqüente se encontrar em estado de necessidade”.5
Na busca de uma maior efetividade do processo, o legislador trouxe instrumento inovador e importante, já utilizados no direito alemão e português.6
LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA
Ao art. 604 do CPC a Lei 10.444/2002 fez inserir dois parágrafos.
“Art. 604. […]
§ 1º Quando a elaboração da memória do cálculo depender de dados existentes em poder do devedor ou de terceiro, o juiz, a requerimento do credor, poderá requisita-los, fixando prazo de até 30 (trinta) dias para o cumprimento da diligência; se os dados não forem, injustificadamente, apresentados pelo devedor, reputar-se-ão corretos os cálculos apresentados pelo credor e a resistência do terceiro será considerada desobediência.
§ 2º Poderá o juiz, antes de determinar a citação, valer-se do contador do juízo quando a memória apresentada pelo credor aparentemente exceder os limites da decisão exeqüenda e, ainda, nos casos de assistência judiciária. Se o credor não concordar com esse demonstrativo, far-se-á a execução pelo valor originariamente pretendido, mas a penhora terá por base o valor encontrado pelo contador.
Parágrafo único. O juiz, ao despachar a inicial, poderá fixar multa por dia de atraso no cumprimento da obrigação, ficando o respectivo valor sujeito a alteração, caso se revele insuficiente ou excessivo.”
Sem dúvida, as mudanças inseridas neste dispositivo decorreram de dúvidas oriundas da supressão, pela Lei 8.898/94, da modalidade de liquidação de sentença por cálculo do contador. Aquele diploma, visando acelerar o processo executivo, atribuiu ao credor o ônus de apresentar a memória discriminada e atualizada do cálculo, sem qualquer necessidade de homologação judicial, podendo o executado, por conseqüência, impugnar o valor exeqüendo, por intermédio dos embargos à execução.
Contudo, algumas perguntas ficaram:
E se a elaboração do cálculo depender de documento que esteja em poder do devedor ou de terceiro?
E se a parte litigar amparada pelo benefício da gratuidade da justiça? Terá ela que contratar profissional para a realização da memória ou o contador judicial desenvolverá o trabalho?
É possível o controle do valor exeqüendo pelo juiz, ao receber a inicial do feito executivo? Ou o devedor deverá suportar restrição patrimonial, mediante penhora, no parâmetro apresentado pelo credor?
Tais indagações, que vinham sendo gradativamente respondidas pelos tribunais, foram agora afastadas.
O § 1º inseriu um incidente processual em momento pretérito à citação do devedor na ação executiva. Ao autorizar que o juiz da causa determine ao devedor ou terceiro a apresentação de documento indispensável para elaboração da memória do cálculo (até mesmo sob pena de multa), fez surgir verdadeiro incidente cognitivo exibitório. Não apresentados os documentos pelo devedor toma-se, por presunção, a adequação do cálculo oferecido pelo credor e, ainda, considera-se como desobediência (com seus consectários) aquela recusa.
Por sua vez, o § 2º , nos casos do autor demandar amparado com o beneplácito da gratuidade da justiça, reintroduziu, em parte, a modalidade de liquidação por cálculo do contador. É claro que sem a necessidade de eventual sentença homologatória.
Da mesma forma, concedeu ao magistrado a possibilidade de, também utilizando-se do contador judicial, implementar um controle prévio sobre o valor apresentado à execução pelo credor, a fim de evitar abusos e onerosidade excessiva ao devedor no período no qual transcorrer o feito executivo. Tanto o é que, sendo elaborada a conta pelo contador e o credor com ele não concordar, a execução continuará pelo valor originariamente apresentado. Porém, o ato restritivo patrimonial (a penhora) restará restrita ao valor apurado pelo contador.
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1 Marinoni, Tutela antecipatória, julgamento antecipado da lide e execução imediata da sentença, 3ª ed. , RT, São Paulo, 1999.
2 Dinamarco, Cândido Rangel. A reforma da reforma, Malheiros, São Paulo, 2002, p. 196.
3 Dinamarco, A reforma da reforma, p. 92.
4.Por exemplo, Humberto Theodoro Jr. – “O que não se pode tolerar é a manobra inversa, ou seja, transmudar medida antecipatória em medida cautelar, para alcançar a tutela preventiva, sem observar os rigores dos pressupostos específicos da antecipação de providências satisfativas do direto subjetivo em litígio”. Tutela de emergência. Antecipação de tutela e medidas cautelares, in O processo civil no limiar do novo século, Forense, RJ, 1999, p. 94.
5 Art. 588, § 2º, com redação dada pela Lei 10.444/2002.
6″Será atribuída à execução provisória maior abrangência e eficácia, de modo a permitir que o exeqüente possa realmente, de regra sob caução, receber o bem da vida que o julgamento lhe reconheceu ou atribuiu. O atual sistema brasileiro da execução provisória revela-se totalmente superado, porque despido de eficácia prática.” – Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 3.476, que originou a Lei 10.444 de maio de 2002.
*Advogado – Professor de Direito Processual Civil (Faculdade de Direito/UFPel)