Falso Testemunho

Luiz Vicente Cernicchiaro

O Direito Processual Penal moderno registra, como uma das características, o contraditório. Admitidos todos os meios de prova, salvo se obtidos por meio ilícito, a teor do disposto no art. 5º, LVI da Constituição da República. Acusação e defesa, dessa forma, têm amplo poder para evidenciar a tese que sustentam. O crime, como fato histórico, acontece em variadas circunstâncias. Daí, com freqüência, ser presenciado por terceiros. A testemunha, dessa forma, é convocada para depor, trazendo subsídios para esclarecer o que aconteceu e passou a ser objeto da denúncia, ou da queixa, O esclarecimento verbal é de singular importância; pode, sem dúvida, porque prestado pelo homem, ser tendencioso, visando a favorecer uma das partes. Daí, evidente, com excessivo exagero, a prova testemunhal, tantas vezes ser apelidada de a prostituta das provas. Não é bem assim, do mesmo modo que a confissão não é a rainha das provas, ao falso argumento de que jamais alguém confessa o delito, depondo contra si mesmo. Todos os meios de prova têm o mesmo significado, a mesma importância. Ademais, analisados conjuntamente. O juiz, com a sensibilidade que se espera do magistrado, saberá aferir o valor probante de cada meio utilizado.

O art. 342 do Código Penal define o crime de Falso Testemunho ou Falsa Perícia, verbis: ‘‘Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade, como testemunha, perito, tradutor ou intérprete em processo judicial policial ou administrativo, ou em juízo arbitral’’.

O Código de Processo Penal, por seu turno, no Capítulo ‘‘Das Testemunhas’’, exige ‘‘a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado’’, a testemunha prestará o compromisso de dizer a verdade (CPP, art. 203). há três espécies de pessoas, relativamente à testemunha: a) pessoa que tem obrigação de depor (CPP. art. 206); b) pessoa proibida de depor (idem, art. 203); c) podem recusar a prestar depoimento o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias (CPP. art. 206). Nota-se, a terceira hipótese é condicionada.

Toda lei apóia-se em princípios, diretrizes que comandam a respectiva solução normativa. No último caso, busca-se não compelir alguém ao constrangimento de revelar fatos ou circunstâncias que possam levar à condenação de uma pessoa a ele ligada por laços de parentesco, ou afeição.

A testemunha, antes do depoimento, prestará o compromisso de dizer a verdade. não será exigido aos doentes e deficientes mentais e aos menores de 14 (quatorze) anos, nem às pessoas a que se refere o art. 206 (CPC, art. 208), ou seja, aos que podem se recusar a depor.

Indaga-se então: o compromisso é pressuposto do crime de Falso Testemunho? A doutrina e a jurisprudência são divergentes, apontando soluções em ambas as direções.

A colocação do tema não deve partir desse ponto. Mais uma vez, imprescindível indagar, alcançar a causa da distinção mencionada e sentir a finalidade do tratamento normativo diverso. Pessoas ligadas ao réu, ou à vítima, por parentesco ou amizade, sentir-se-ão constrangidas para dizer o que será sopesado contra elas. É o que normalmente acontece. O Direito não pode exigir que ninguém seja santo, ou herói, repetindo-se o saudoso Hungria. O aspecto formal (prestar compromisso) deve ceder passagem ao aspecto material (buscar a realidade dos fatos).

O compromisso, assim, é secundário, mera manifestação solene de advertência do depoente. Não integra o depoimento; registra, isso sim, o que foi prometido pela pessoa convocada para esclarecimentos.

A lei penal precisa ser sensível a distinções; aliás, o Código de Processo, registrou-se, assim o fez. As máximas da experiência revelam que a mãe, como regra, protege, preserva o filho ainda que o descendente pratique condutas socialmente proibidas. A recíproca também é verdadeira. E, na devida proporção, acontece com todo ascendente, ou descendente, cônjuge, mesmo desquitado (leia-se hoje, divorciado) ou entre pessoas que, de uma forma ou outra, alimentam afeição entre si.

O depoimento dessas pessoas, portanto, deve ser considerado conforme tal realidade. É humanamente compreensível que esclareçam para favorecer (o oposto, em tese, também, deve ser ponderado). Pouco importa a solenidade do compromisso. Cede espaço, à realidade das coisas.

Dessa forma, o pressuposto do crime não é, como se tem insistido, a solenidade do compromisso, mas a relação humana que vincula a testemunha ao réu (ou à vítima).

O Judiciário, de modo geral, é pouco atento ao sentido humanístico da norma jurídica; daí, tantas vezes, não conseguir romper as barreiras da lógica formal. Imagine-se testemunha obrigada a depor, advertida do significado da solenidade, altere a verdade, mentindo descaradamente; por um lapso do escrivão, não constar na ata da audiência o termo de compromisso. Evidente, postas as coisas no seu devido lugar, haverá o crime. O que interessa, o que conta é o conteúdo do depoimento e não a solenidade formal de dizer a verdade. Em conseqüência, constatada a relação de afeição, ou amizade, não obstante o registro do compromisso, inadequado divisar infração penal. O Direito não pode contrastar a realidade das coisas (axiologicamente analisadas)!.

Luiz Vicente Cernicchiaro
Ministro do Superior Tribunal de Justiça,
Professor titular da Universidade de Brasília e
Autor do livro ‘‘Questões Penais’’

Extraído do site do jornal Correio Braziliense

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