Frederico Augusto Fonseca dos Santos*
Ruy Barbosa, ao analisar a Constituição de 1891, estabeleceu distinção entre direitos e garantias fundamentais. Segundo o ilustre jurista, direitos são disposições meramente declaratórias, enquanto garantias são medidas assecuratórias que visam à defesa de direitos, limitando o poder¹. Assim sendo, podemos conceituar o habeas corpus como uma ação constitucionalmente qualificada que tem por escopo assegurar a liberdade física do indivíduo, a liberdade de ir, ficar e vir (direitos humanos de primeira geração liberdade). Não obstante a tão grande importância desse instrumento, nosso constituinte originário de 1988 excluiu, a princípio, seu cabimento em punições disciplinares de militares pertencentes às Forças Armadas (art. 142, § 2º, CF) e aos Estados, Distrito Federal e Territórios (art. 42, § 1º, também da CF). É o que passamos a analisar.
Inicialmente, é de bom alvitre esclarecer que sendo o habeas corpus uma ação, é direito autônomo. Nesse particular, transcrevemos a lição de Humberto Theodoro Júnior: “O direito subjetivo, que o particular tem contra o Estado e que se exercita através da ação, não se vincula ao direito material da parte, pois não pressupõe que aquele que o maneje venha a ganhar a causa”. Note-se que se trata de direitos independentes. Nesse sentido, entendemos que o parágrafo 2º, do art. 142, da Carta Magna ao mencionar o não cabimento do referido remédio constitucional em relação às punições disciplinares, refere-se obviamente à ordem de habeas corpus (ao seu mérito), e não ao direito subjetivo do paciente de obter uma resposta do Estado-Juiz (princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional art. 5º, XXXV, CF)
Uma vez admitida a impetração do writ, cabe-nos indagar sobre a possibilidade da concessão ou não da ordem. Tratando-se de ato administrativo discricionário, não compete ao Poder Judiciário analisar o mérito da decisão, pois, se assim agisse, estaria substituindo a vontade do administrador castrense pela do juiz, violando o princípio pétreo da separação dos Poderes (art. 2º e 60, § 4º, II, ambos da CF). Portanto, não haverá momento para revisão do ato no tocante à conveniência e à oportunidade por parte do Judiciário.
Em outro giro, como todo ato administrativo, este deverá conter os requisitos gerais para sua validade, quais sejam: sujeito, objeto, forma, finalidade e motivo, sob pena de incorrer em ilegalidade, a ser declarada pela própria Administração ou pelo Judiciário. Em relação ao último requisito motivação- Di Pietro ensina que ele é inerente e obrigatório (apesar de entendimento em contrário) a qualquer ato administrativo, seja ele vinculado ou discricionário. Acrescenta a eminente jurista que a motivação é pressuposto de fato e de direito. O primeiro, seria o conjunto das situações que levam a administração a praticar o ato (conduta do militar); o segundo, o dispositivo legal em que se baseia o ato (define a infração funcional do agente público). Essa clara definição nos leva ao princípio da proporcionalidade (ressalte-se, previsto implicitamente no art. 2º, parágrafo único, da lei 9784/99), segundo o qual deverá o administrador guardar uma “proporção” adequada entre os meios que emprega e os fins que deseja alcançar, porquanto, atuando fora dessa medida, extrapolará os limites da discricionariedade do ato e incorrerá em ilegalidade, abrindo azo para apreciação do magistrado. De igual forma, como especifica Pontes de Miranda, devem estar também presentes os pressupostos especiais do ato punitivo: a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a pena prevista em lei.
Esses posicionamentos encontram respaldo tanto no Supremo Tribunal Federal:
“O entendimento relativo ao parágrafo 2º do artigo 153 da Emenda Constitucional nº 1/69, segundo o qual o princípio, de que nas transgressões disciplinares não cabia habeas corpus, não impedia que se examinassem, nele, a ocorrência de quatro pressupostos de legalidade dessas transgressões (a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente), continua válida, para o disposto no parágrafo do artigo 142 da atual Constituição que é apenas mais restritivo quanto ao âmbito dessas transgressões disciplinares, pois a limita às de natureza militar.” (HC 70648-7/RJ, Relator Ministro Sepúlvida Pertence),
quanto em julgados mais recentes do Superior Tribunal Militar:
“No controle das punições disciplinares pelo Poder Judiciário admiti-se apenas o exame da legalidade do ato punitivo. Constatado nos autos que a prisão foi imposta de conformidade com as formalidades essenciais previstas no Regulamento Disciplinar do Exército, descabe tornar o ato sem efeito em sede de habeas corpus”. (HC 2001.01.033623-0/RS, Relator Ministro José Julio Pedrosa.); “HC concedido para a análise de seus aspectos formais: fundamentação do despacho da prisão disciplinar e competência da autoridade que a determinou. Se o ato de autoridade administrativa se revela perfeito, a ordem não pode ser concedida, por lhe faltar amparo legal. Denegada a ordem. Unânime”. (HC 2001.01.033592-7/RS, Relator Ministro Aldo da Silva Fagundes.)
Faltando, então, qualquer dos pressupostos em comento, o cerceamento da liberdade é ilegal, devendo a ordem ser concedida com esteio no art. 5º, LXIII, CF: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” .
Por derradeiro, conclui-se que o constituinte originário entendeu necessário, provavelmente tendo em conta a relevância das atribuições constitucionais dos militares, preservar o regime excepcional que decorre dos princípios basilares da hierarquia e da disciplina a que se submetem os referidos agentes públicos, sem, contudo, suprimir o direito subjetivo de invocar do Estado a prestação da tutela jurisdicional independentemente da existência de direito material e, de igual forma, sem afastar da apreciação do Judiciário os casos de ilegalidade, devendo a prisão ilegal ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária (art. 5º, LXV, CF).
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
MORAES, de Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, Oitava Edição, 2000.
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 14ª Edição, 2002.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 19ª Edição, 1997.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, Sétima Edição, 1997.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, Sexta Edição, 2001.
Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 21ª Edição, 1999.
*Servidor Público do GDF, Bacharel em direito pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado pela Escola Superior do Ministério Público do Estado da Bahia. E-mail: fredaug72@bol.com.br