Aborto: Eugênico ou Necessário?

Paulo José da Costa Jr
Professor e Advogado em São Paulo

Na legislação brasileira atual, o aborto é tipificado como crime contra a vida.

Apresenta ele múltiplos aspectos. Além do aspecto médico e legal, por sua complexidade, o aborto é tema religioso, ético, social e político. Sob o aspecto legal, incrimina-se o aborto provocado.
Entretanto, para salvaguardar determinadas situações, admitem-se exceções à norma incriminadora: o aborto necessário e o aborto em caso de gravidez decorrente de estupro. O aborto necessário é aquele em que não há outro meio de salvar a vida da gestante. Justifica-se, assim, face ao estado de necessidade. Já no aborto em caso de gravidez decorrente de estupro, a excludente da ilicitude decorre da própria violência sexual praticada contra a mulher, da qual resultou a gravidez indesejada. Nesse caso, a gravidez é conseqüência de um crime. Note-se que, em ambas as hipóteses, o aborto deverá ser realizado por médico. É o que impõe o Código Penal. Discute-se em nosso Poder Legislativo a supressão das duas excludentes de criminalidade apontadas. Quer-nos parecer um posicionamento completamente desacertado. Em relação ao aborto necessário, é de se ponderar que, mesmo suprimida a excludente específica constante do tipo penal, a hipótese estaria acobertada pelo estado de necessidade, que se aplica a todo e qualquer crime. Portanto, nesse caso, a alteração legislativa não acarretaria conseqüências maiores. O mesmo não ocorre em relação ao aborto no caso de gravidez decorrente de estupro. Nessa situação, suprimida a norma eximente, vedado estaria o comportamento, a menos que se viesse a inseri-lo na análise da exigibilidade da conduta conforme o dever, no âmbito da culpabilidade. De qualquer forma, inexistindo a aludida excludente da antijuridicidade, certamente se agravaria a situação das mulheres vítimas de estupro, que não mais poderiam se utilizar dos serviços médicos dedicados a tal fim, sendo forçadas a recorrer à clandestinidade, sujeitando-se aos riscos dela decorrentes.
Corrente oposta procura ampliar o rol de excludentes de antijuridicidade no aborto.
Segundo tal posicionamento, além das duas excludentes já existentes, seria inserida a hipótese de aborto eugênico ou eugenésico. Trata-se do aborto piedoso, praticado quando o feto é portador de anomalia grave e incurável.

A Medicina, em sua contínua evolução, já permite identificar e diagnosticar, com precisão, anomalias do feto, durante a gestação.

O diagnóstico de citadas anomalias é feito por meio da análise de células do feto, das células obtidas no líquido amniótico ou das células da placenta. As anomalias anatômicas do feto são diagnosticadas por ultra-sonografia.

Despontou em tal atividade o Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana São Paulo, dirigido pelo eminente Professor THOMAS RAFAEL GOLLOP, da Universidade de São Paulo.

Recentemente, tivemos notícia, pelo referido Instituto, na pessoa do Prof. GOLLOP, que muitos alvarás têm sido concedidos pelo Poder Judiciário para realização de aborto, em casos de malformações graves de fetos, incompatíveis com a vida. Em outras palavras: mediante prova científica irrefutável, que conduz ao grau de certeza, o feto não dispõe de qualquer condição de sobrevida.

Com base nesses exames, subscritos por junta médica, o caso é submetido ao Poder Judiciário, para autorizar o aborto.

Para formular o requerimento judicial de autorização para realização do aborto eugênico é necessário que os pais contratem advogado, que pleiteará em juízo a mencionada autorização. O pedido será instruído com laudo médico retromencionado, que comprova a anomalia do feto, inviabilizando sua vida extra-uterina. Em muitos casos, o requerimento será também instruído com laudo psicológico da gestante.

Segundo dados fornecidos pelo Instituto, foram requeridas duzentas e cinqüenta autorizações para realização do aborto eugênico, sendo que apenas seis pedidos foram indeferidos em todo o Brasil: dois no Rio de Janeiro, dois em Guarulhos e dois em Belo Horizonte.

Na comarca de Campinas, entre julho de 1994 e novembro de 1995, todos os pedidos judiciais de autorização para realização do aborto, em caso de anomalia grave do feto, que conduzem à incompatibilidade com a vida, foram deferidos.

A pesquisa revela que grande parte dos diagnósticos, nos casos em que o aborto foi autorizado, era de anencefalia, anomalia que inviabiliza por completo a vida extra-uterina do feto.

Observe-se que o aborto, nessas situações, é aparentemente eugênico. Na realidade, o aborto é necessário.

Outros casos de incompatibilidade com a vida, decorrentes de anomalias do feto, também ensejaram autorizações para realização do aborto, por parte do Poder Judiciário, nas comarcas de São Paulo, Guarulhos, Manaus e São Carlos, de acordo com dados fornecidos pelo Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana São Paulo.

Fundamentam as aludidas decisões os seguintes argumentos, basicamente:

1. Não é qualquer anomalia do feto que dá ensejo à autorização judicial para o abortamento. Somente as anomalias do feto que inviabilizem sua vida extra-uterina poderão motivar tal autorização.

2. O diagnóstico da anomalia deverá ser inquestionável.

3. Ao lado da inviabilidade da vida extra-uterina do feto, deve ser considerado o dano psicológico para a gestante, decorrente de uma gravidez, cujo feto não apresentará sobrevida.

De se destacar ainda que nas decisões que deferiram pedido para realização do aborto eugênico, duas ordens de raciocínio podem ser identificadas.

A primeira delas sustenta que o pedido de autorização do aborto eugênico não encontra acolhida expressa em nossa legislação, mas deverá ser deferido diante da inviabilidade da vida extra-uterina do feto e dos danos psicológicos à gestante, não se podendo censurar o comportamento por inexigibilidade da conduta conforme o dever.

Outra corrente sustenta que o dano psicológico à gestante, desde que comprovado, acarreta risco à saúde da mesma, inserindo a hipótese no aborto necessário.

Por fim, nas decisões denegatórias da autorização, sustenta-se a impossibilidade jurídica do pedido, uma vez que o aborto eugênico não encontra guarida na legislação penal brasileira.

Não sustentamos a legalização indiscriminada do aborto. O aborto provocado é um ato cirúrgico que, além de ceifar uma vida, pode produzir danos à saúde física e mental da gestante, ainda que realizado por médico. Certamente não se cuida de um método anticoncepcional adequado. Sob esse aspecto, incumbe à saúde pública disseminar os métodos anticoncepcionais existentes, orientando a população quanto aos benefícios e riscos de cada um deles.

Entretanto, as exceções, que excluem a criminalidade do aborto, são legítimas.

O aborto necessário e aquele no caso de gravidez decorrente de estupro dispensam comentários além dos que já foram tecidos.

Quanto ao aborto eugênico, é do senso comum a sua admissibilidade. Por que levar adiante uma gravidez cujo feto seguramente não sobreviverá? Por que impor um sofrimento psicológico tão intenso e inútil à gestante?

Direito é bom senso. Direito é balanceamento de bens, cotejando-se, em cada situação, os seus valores. Diante de diagnóstico de anomalia do feto, que o incompatibiliza com a vida de modo definitivo, a melhor solução é o aborto.

Assim como na ortotanásia o médico não está obrigado a prolongar indefinidamente uma vida que dá sinais de esgotamento, também não se deverá impor o término de uma gravidez infrutífera, com sérios danos psicológicos à gestante.

A hipótese é de inexigibilidade de conduta conforme o dever, na atual legislação. Melhor fosse ela uma excludente da criminalidade, facilitando o acolhimento de pedidos de autorização para o aborto eugênico, formulado pelas gestantes. A tarefa incumbe, pois, ao legislador. É a ele que passamos a palavra.

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