Fundamentos da prisão em flagrante nas infrações de menor potencial ofensivo

Wagner Adilson Tonini

O artigo 69 da Lei Federal nº 9.099/95 estabeleceu, em seu parágrafo único, que a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado, não impondo prisão em flagrante ao autor do fato, nem exigindo fiança, desde que seja imediatamente encaminhado ao Juizado ou assuma o compromisso de comparecimento.

Delineou o legislador a regra basilar que, todavia, comportará exceções por exclusão, bastando ao aplicador, no caso a autoridade policial, exercitar o raciocínio da subsunção lógica do caso concreto às hipóteses não permissivas, previstas como excludentes procedimentais, dentro do próprio texto legal. Não sendo possível o encaminhamento imediato do autor ao Juizado e/ou não querendo este ser encaminhado nem assumir o compromisso de comparecimento,ou não podendo assumir o compromisso, só restará sua autuação em flagrante delito.

I – A embriaguez como fundamento

A embriaguez pode ser invocada sempre como o fundamento mais provável para alicerçar uma lavratura de auto de flagrante delito. Mas será necessário fundamentar porque a embriaguez costuma ser dividida em quatro fases distintas, a saber:
a) Fase do macaco — o indivíduo fica relaxado ou festivo, e a embriaguez não sendo completa lhe permite consciência de seus atos. Nesta fase ele pode praticar o crime de desacato, a nosso ver e s.m.j., justamente porque tem lucidez relativa e suficiente para ser responsabilizado por seus atos. Pela mesma razão poderá assumir o sério compromisso de comparecer perante o Juízo. Mas alguns poderão demonstrar inequívoco descompromisso, comportando-se de modo inconveniente, fazendo gracejos, divertindo-se. Estará rompido o compromisso, devendo a autoridade apenas fundamentar a circunstância e lavrar o auto de flagrante.
b) Fase do leão — nesta fase o indivíduo fica valentão e agressivo, e embora a embriaguez não seja completa, alguns poderãonão ter consciência de seus atos. Outros terão esta consciência, nas mesmas condições, o que certamente tornará difícil vislumbrar a linha tênua que o separará da lucidez. Daí que a jurisprudência se divide no que tange ao crime de desacato praticado nesta fase da embriaguez. Enquanto uns admitem em tese, outros não o admitem. Do mesmo modo, a autoridade policial deverá usar de argúcia para auferir se é possível e viável um compromisso frutífero. Será necessário ao menos que o indivíduo se recomponha em algum momento. Caso contrário só restará o flagrante delito, seja pelo fato de menor potencial ofensivo, seja pelo desacato se houver, ou tão-só pela contravenção de embriaguez.
c) Fase do porco — nesta fase o indivíduo perde o controle até em relação às suas funções fisiológicas. Certamente não saberá o que diz ou o que faz. Não poderá assumir compromissos.
d) Fase comatosa — o indivíduo está à beira da morte, sendo necessário socorro médico urgente. Também não poderá assumir compromissos mas está mais para caso médico do que policial.

II – Maus tratos

Já tivemos a oportunidade de fundamentar um flagrante de maus tratos em face da embriaguez do acusado. No caso concreto tínhamos três hipóteses:
a) Autuação em flagrante por tortura, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (o dispositivo ainda estava em vigor), o que não seria o caso, primeiro porque o excesso não era tão grave e depois porque o único sustentáculo de uma família, com sete filhos, não poderia recolher uma fiança, agravando um problema social. A norma penal, ao reprimir uma conduta, visa à recomposição das relações sociais, não sua desestabilização.
b) Termo circunstanciado, que não cumpriria seu papel de repressão penal naquele momento e naquele caso, primeiro porque o autor estava beberraz, e depois porque procurava maliciosamente intimar a vítima com o modo de olhar e falar. Situava-se entre a primeira e a segunda fase da embriaguez.
c) Autuação em flagrante por maus tratos, já que sua embriaguez e seu comportamento prejudicavam a seriedade de um compromisso. Ademais, embora preso, poderia refletir sobre sua conduta, possibilitando ainda a retomada do equilíbrio social pela repressão penal em fase pré-processual e pela satisfação de segurança dada à vítima e à sociedade. O autor exibiu fiança no dia seguinte, garantindo o Juízo penal, e voltou à vida social e ao trabalho, respondendo o processo em liberdade. Esta foi a solução.

III – Embriaguez como infração penal

A embriaguez é contravenção de perigo, não exigindo dano efetivo, senão por exaurimento, ou havendo concurso aparente de normas, a ser solucionado por um dos princípios que o informam. Não requer dolo nem culpa, como elemento subjetivo do tipo, uma vez norteada pela vala comum que assiste aos crimes anões: a voluntariedade. O tipo contravencional é misto alternativo, de múltipla ação ou de conduta variável ou fungível, com previsão de mais de uma figura (escândalo ou perigo à segurança própria ou alheia), as quais realizadas em conjunto ou isoladamente, infringem o preceito primário incriminador, que aciona a engrenagem da sanção penal retributiva.
Vê-se que a natureza desta infração penal pode gerar um choque irremediável com a necessidade de um compromisso de responsabilidade do autor. Afinal, será sempre possível exigir-se um compromisso sério de um ébrio ou beberraz?
Muitos alcoolizados, após a “ressaca”, lembram-se muito bem das coisas erradas que fizeram. Outros lembram-se vagamente. Outros de nada se recordam. Por tais razões a autoridade policial deverá avaliar as circunstâncias do fato e sua gravidade, bem como as condições gerais do autor, para deferir-lhe ou não o compromisso. Se negar deverá fundamentar, da mesma forma que o faz quando nega uma fiança.

IV – Classificação de lesões

Só para exemplificar e fortalecer nossa argumentação, vale lembrar artigo da lavra do delegadoJoão Carlos de Souza, publicado na Revista da ADPESP nº 15, de junho de 1988, pp. 38-40, onde o autor defende, com muita propriedade, a tese de que primeiramente cabe ao delegado de Polícia, no inquérito, e depois ao juiz de Direito, no processo, avaliar a gravidade jurídico-penal de uma lesão corporal, classificando-a como leve, grave ou gravíssima. E afirma: “Aos médicos-legistas compete efetuar as afirmações médicas; aos juristas, as conclusões jurídicas, baseadas nas afirmações médicas, estas cotejadas com o elencado no Código Penal”.
A comparação é útil porque também em matéria de embriaguez, e aí é nossa tese, é a autoridade policial, inicialmente, e a judicial, conclusivamente, quem poderão definir a extensão e conseqüências jurídico-penais da embriaguez, por si mesma, enquanto contravenção penal, ou seus reflexos sobre outros delitos de menor potencial ofensivo, e eventuais mudanças procedimentais, quais sejam: termo circunstanciado, B.O. para inquérito, ou auto de prisão em flagrante delito.

V – Lesões corporais e outros delitos

Em casos de lesões dolosas ou culposas, direção perigosa, ameaça, etc., poderá ser utilizado o mesmo raciocínio jurídico, pela lógica e pela técnica. Bastará fundamentar quanto à impossibilidade de creditar ao autor um compromisso sério que poderá descumprir. Caso a caso, procurando separar o joio do trigo, a autoridade só admitirá compromissos quando sentir consciência e responsabilidade do autor, embora a embriaguez.

VI – Ato infracional

Para que melhor se possa compreender a extensão do nosso postulado, e ainda por argumento, temos comparação de hipótese que se ajusta com correção ao problema. No Estatuto da Criança e do Adolescente, existe a previsão legal de entrega do adolescente infrator, em determinados casos, ao seu responsável legal. Mas e se este “responsável” comparece embriagado ou drogado à repartição policial ou adota comportamento inadequado? Fundamentando, é possível não lhe auferir compromisso de apresentar o adolescente ao Juizado, fazendo então o encaminhamento, salvo se houver a presença de algum outro responsável legal.

VII – Fuga e omissão de socorro

Além da embriaguez, a fuga ou omissão de socorro podem comprometer seriamente a credibilidade de um compromisso, mesmo que o autor se proponha a esse fim. Alguns poderão alegar que se trata de direito público subjetivo do autor do fato, imposição indeclinável da norma legal. Discordaremos, porque o legislador quis deferir compromisso às pessoas responsáveis, capazes de assumir e depois cumprir. Não quis beneficiar o autor de má-fé, que foge para não assumir responsabilidade. Tanto é verdade que previu as hipóteses de retomada do procedimento comum (inquérito policial) se o autor do fato não for encontrado para ser citado (parágrafo único do art. 66, da Lei nº 9.099/95). Quem garante que o autor que no início se evadiu ou tentou se evadir, ou não prestou socorro, se deixará encontrar posteriormente?

VIII – Conclusão

São algumas hipóteses em que, s.m.j., o autor do fato não poderá assumir o compromisso a que alude o parágrafo único, do art. 69, da Lei nº 9.099/95. Tal é nosso entendimento, para fomentar uma discussão que pode levar a uma aplicação mais justa da lei nova, para autores de fatos puníveis, mas também para a sociedade.

Wagner Adilson Tonini
O autor é delegado de Polícia em São Paulo.

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