Carlos Gilberto Menezello Romani
Esta questão é tormentosa para inúmeras administrações municipais e nenhum caso concreto ainda chegou aos Tribunais, bem como nada se escreveu sobre o tema na doutrina. As administrações se defrontam com um grande volume de dinheiro advindo da aplicação das multas de trânsito e, carentes em outras áreas de recursos orçamentários e financeiros para fazer frente aos mesmos, acabam utilizando do numerário em desacordo com a norma do artigo 320 do Código de Trânsito Brasileiro em questões que entendem afins ao trânsito de uma forma geral.
A conduta do agente público incorreria em ato de improbidade administrativa? Esta será a tônica deste trabalho.
Se o ordenador da despesa utilizando o dinheiro das multas de trânsito em iluminação pública, conservação de praças, parques, recapeamento de vias públicas, operações tapa buracos, etc., o que poderia gerar esta conduta, haja vista que o artigo 320 do CBT fala que deverão ser utilizados os recursos exclusivamente nas hipóteses que ele menciona?
A primeira coisa que devemos observar é se os recursos públicos foram aplicados e direcionados em benefício da própria administração pública, portanto, se não foram desviados para atividades ilícitas, diante da grande dúvida existente em quase todas as administrações públicas do País sobre a aplicação das verbas advindas de multas e consolidadas no artigo 320 do CTB, pois foram usadas em áreas que guardavam, na sua grande maioria, afinidades com o trânsito de uma maneira genérica.
As dúvidas sofre a fiel aplicabilidade dos recursos arrecadados era tão grande e difundida nas administrações públicas que o Conselho Nacional de Trânsito, em sua Deliberação nº 33, de 03 de abril de 2002, fez uma disposição expressa sobre a aplicação da receita oriunda da cobrança de multas de trânsito, conforme o artigo 320 do CTB.
Tal Deliberação disse que “… considerando a necessidade de dirimir dúvidas suscitadas em todo o território nacional quanto à interpretação das disposições contidas na Lei” …, acabou por explicitar as formas de aplicação da receita arrecadada com a cobrança das multas e desta forma, possibilitou um instrumento que pudesse ensejar uma orientação concreta e oficial de sua aplicabilidade, de forma a que se evitassem os fatos que estavam ocorrendo em todo o País.
Registro que, se não houvesse dúvida desta natureza em quase todos os municípios, seria desnecessária a edição da Deliberação acima mencionada, pois o artigo 320 do CTB possibilitou, primeiro, um grande filão de receitas aos municípios e, em segundo lugar, não demonstrando uma clareza impar de aplicabilidade dos recursos, dizendo que seria usado exclusivamente no que direcionou, tratou-se de uma norma em branco, dando-se margem as mais várias interpretações, em especial aquelas que estando mais distante da vontade do Legislador, pudesse dar condições do administrador utilizar dos recursos das cobranças de multas em áreas afins, com várias interpretações de caráter subjetivo do que seria a sinalização, a engenharia de tráfego e de campo, etc.
Muitos hão de justificar que utilizaram dos recursos pela premente necessidade da própria administração pública em solucionar pendências urgentes e necessárias pela falta de recursos orçamentários próprios, no afã de atender a própria coletividade, sem pretender praticar qualquer ato ilícito ou contrariar frontalmente a legislação.
Necessitavam, em determinado momento, atender aspectos pontuais que se defrontavam perante fatos concretos mas encontravam-se sem os recursos para fazer frente a eles e utilizaram do numerário depositado em conta especial imaginando que estivessem atendendo, como finalidade última, a questão do trânsito de forma genérica.
Ora, punir estes administradores seria, salvo melhor juízo, um contrasenso, haja vista que não prejudicaram o erário público pois os recursos foram destinados ao pagamento de outros encargos que a própria administração se defrontava e, demais disso, a transferência destes recursos para outras áreas não devem afetar o sistema de trânsito como um todo, sendo que não deve faltar dinheiro para atendimento desta necessidade prevista no artigo 320 do CTB.
As sanções da Lei de Improbidade Administrativa(artigo 11, inciso I) que alguns possam a vir defender seria aplicada aos referidos administradores municipais questiona a existência de ato que vise finalidade ilícita e não se vislumbra que, em sua grande maioria, tenha sido esta a conduta dos agentes políticos que fizeram uso dos recursos oriundos de multas de trânsito para áreas que entenderam afins e guardavam similitude com as áreas mencionadas pelo artigo em análise.
Marino Pazzaglini Filho, em sua obra Improbidade Administrativa – 4ª edição – Editora Atlas, ao tecer comentários sobre o inciso I do artigo 11 da Lei de Improbidade faz menção de que … “para que se configure o disposto no inciso, basta que o ato inquinado vise a fim ilícito(grifo nosso) ou extrapole a esfera de competência do agente público”…
Poder-se-ia questionar que a conduta deveria configurar uma imoralidade tendo-se em vista que a punição imposta ao motorista infrator destina-se a educá-lo e não a arrecadar dinheiro para custear obras, por exemplo; entretanto, isto agora está mais claro e perceptível após a edição da Deliberação nº 33 do Conselho Nacional de Trânsito, que impedirá, com certeza, que as administrações possam utilizar dos recursos para outras finalidades que não estão enumeradas no mencionado ato deliberativo, inclusive, a nível da administração pública municipal, isto não mais poderia ocorrer.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em sua obra “Direito Administrativo”, 13ª edição, Atlas, ao discorrer a fls. 675/676 sobre o elemento subjetivo do ato de improbidade, diz que:
“O enquadramento na lei de improbidade exige culpa ou dolo por parte do sujeito ativo. Mesmo quando algum ato ilegal seja praticado, é preciso verificar se houve culpa ou dolo, se houve um mínimo de má-fé que revele realmente a presença de um comportamento desonesto. A quantidade de leis, decretos, medidas provisórias, regulamentos, portarias torna praticamente impossível a aplicação do velho princípio de todos conhecem a lei. Alem disso, algumas normas admitem diferentes interpretações e são aplicadas por servidores públicos estranhos à área jurídica. Por isso mesmo, a aplicação da lei de improbidade exige bom-senso, pesquisa da intenção do agente, sob pena de sobrecarregar-se inutilmente o Judiciário com questões irrelevantes, que podem ser adequadamente resolvidas na própria esfera administrativa… A aplicação das medidas previstas na lei exige observância do princípio da razoabilidade, sob o seu aspecto de proporcionalidade entre meios e fins”…
Demais disso, a própria Lei de Improbidade afirma que o parágrafo único do art. 12 da Lei n.º 8.429/92 estabelece que “na fixação das penas previstas nesta Lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente”, de modo que as sanções impostas em razão da prática de atos de improbidade administrativa por parte do Chefe do Executivo devem guardar proporcionalidade com a extensão do dano e o eventual proveito por ele obtido, posto que a individualização da penas, seja aflitiva, seja pecuniária, não é privilégio do Direito Penal, impondo-se, também, no campo do Direito Civil, Administrativo e Tributário.
Muitos administradores podem justificar, de forma subjetiva, que para atender o artigo 24 do CTB que autorizaria essa aplicação dos recursos das multas nas obras de campo para a segurança do trânsito, como por exemplo, o recape do asfalto; que inclusive as calçadas destinadas aos pedestres, fazem parte do conceito de trânsito, e sua manutenção será revertida em benefício da segurança da população; que o pagamento da iluminação de uma avenida faz parte da segurança do trânsito, que é obrigação do Município.
Outros dirão que foram aplicados exclusivamente objetivando melhorar a sinalização e a segurança do trânsito, sendo certo que para essa finalidade foram necessárias alterações pontuais no pavimento das ruas, enormemente prejudicados por fortes chuvas e não importaram em desvirtuamento de aplicação dos recursos, posto aplicados dentro da conceituação genérica da Lei Federal, que até então não teria merecido regulamentação por parte do CONTRAN, sendo que agora isto já não se justifica pois a questão foi regulamentada pela Deliberação nº 33.
Concluímos, então, que inexistiria prejuízo ao erário público, haja vista que o numerário utilizado da arrecadação das multas se destinou a outras áreas afins da administração, bem próximas daquela que a Deliberação nº 33 do CONTRAN agora regulamenta; outrossim, a interpretação das administrações mesmo que questionáveis do ponto de vista do desvio de finalidade na utilização dos recursos das multas de trânsito, voltou-se para o benefício da própria coletividade e, num critério mais aprofundado, na segurança dos próprios munícipes.
Em recentíssimo julgamento, o STJ firmou que, em relação a improbidade administrativa, inexistindo prejuízo concreto, não se aplicam as suas sanções:
AG 400079
Ministro(a) Min. VICENTE LEAL
Fonte DJ DATA:28/06/2002
Órgão Julgador 6T – Sexta Turma
Texto doDespacho AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 400.079 – SP (2001/0089502-7)RELATOR : MINISTRO VICENTE LEALAGRAVANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULOAGRAVADO : JOÃO ANTONIO ÁLVARES MARTINESADVOGADO : SÉRGIO VAZ E OUTRODECISÃOVistos etc.Trata-se de agravo de instrumento interposto contra decisão obstativa de trânsito a recurso especial no qual se ataca acórdão da eg. Sétima Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, em sede de apelação, julgou improcedente a ação civil pública ajuizada contra João Antônio Alvarez Martines ao qual fora imputado a prática de ato de improbidade administrativa, consubstanciado na acumulação ilegal de cargos públicos, vez que não restou demonstrada a ocorrência de danos ao patrimônio público. O julgamento em tela foi consolidado em ementa do seguinte teor: “CUMULAÇÃO DE VENCIMENTOS – Ausência de demonstração do alegado prejuízo, que se pretende ressarcimento, pela denominada ação civil pública. Ato de improbidade administrativo sujeito às penas de suspensão dos direitos políticos; pagamento de multa civil; proibição de contratar; e, ainda, receber benefícios ou incentivosfiscais, do Poder Público (arts. 11 e 12, inc. III, da Lei nº 8.529/92). Limites do pedido que, entretanto, não se pode ultrapassar. Recurso provido” (fl. 368). No recurso especial, interposto com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, alega o Parquet paulista que o acórdão recorrido, ao desprover a ação, sob o argumento da ausência de demonstração da lesividade do ato de improbidade, violou as disposições contidas nos arts. 9º e 11, da Lei 8.429/92. Alega, ainda, ofensa aos arts. 1º, inc. I e III, 5o, caput, I e II, §§ 3º, 4º, 7º, 17, 18, 19 e 21 da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), ao art. 87 do Código de Defesa do Consumidor, bem como ao art. 27 do Código de Processo Civil, na medida em que condenou o MP ao pagamento dos encargos da sucumbência, mesmo com a ressalva de que essa deveria ser suportada pela Fazenda Estadual. Aduz, ainda, dissídio jurisprudencial. Tenho que o presente agravo de instrumento, tempestivo e devidamente instruído, merece parcial acolhimento. Com efeito, o Tribunal de origem, ao apreciar o mérito da apelação, deixou consignado que, apesar da incontroversa acumulação ilegal de cargos, não restou demonstrado, de forma cabal, o alegado prejuízo de que se pretende ressarcimento, conforme podemos observar da leitura do excerto que abaixo transcrevemos: “Com a devida vênia, a simples acumulação de cargos, inobstante a ilegalidade, não gera a presunção de danos ao patrimônio público; bem jurídico tutelado pela denominada “ação civil pública de responsabilidade de danos” (art. 129, inc. III, da Const. da Rep. E art. 1º da Lei nº 7.347/85). Lembre-se que a obrigação de indenizar decorre do nexo de causalidade entre o ato ilícito e o dano concreto, dele resultante (art, 159, do Cód. Civil). O que inexistiu, no caso, ou não se comprovou (art. 333, inc. I do Cód. de Proc. Civil). À evidência, independentemente do prejuízo material, que não se demonstrou, constitui ato de improbidade administrativa, qualquer ação ou omissão, que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições; achando-se o responsável sujeito às penas de suspensão dos direitos políticos; pagamento de multa civil; proibição de contratar; e ainda, receber benefícios ou incentivos fiscais, do Poder Público (arts. 11 e 12, inc. III, da Lei nº 8.529/92). Os limites do pedido, entretanto, não se podem ultrapassar, em razão do princípio da adstrição.” (fl. 370). Ora, a leitura do texto supra transcrito demonstra que fora reconhecida, na instância a quo, a ilegalidade da acumulação dos cargos de Assessor Jurídico das Prefeituras Municipais de Oscar Bressane e Lutécia, reconhecendo, entretanto, inexistir dano ao erário apto a ensejar a procedência da presente ação civil pública. Merece relevo destacar que esta Corte Superior, em reiterados julgados, já deixou consignado que a ação civil pública, para recuperar dano ao erário, há de enfrentar ato ilegal lesivo ao patrimônio Público.(grifo nosso) Restou reconhecida apenas a ilegalidade. A propósito, cite-se a seguinte ementa afirmativa de presente tese, verbis: “AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ATO LESIVO AO ERÁRIO. A ação civil pública, para recuperar dano ao erário, há de enfrentar ato ilegal ao patrimônio público. Os bens adquiridos e pagos sem empenho prévio foram incorporados ao patrimônio municipal, não havendo prejuízo. (grifo nosso) Recurso improvido.” (Resp 147.260/MG, Rel. Min. Garcia Vieira, DJ de11/05/198). No mesmo sentido os Recursos Especiais nºs 15.463-0/RS, Rel. Min.Hélio Mosimann, DJ de 25.04.94; 111.527/DF, Rel. Min. Garcia Vieira; 12.406-0/SP, Rel. Min. Pádua Ribeiro, DJ de 10.10.94. Ademais, é de se reconhecer que, se a instância a quo, soberana para apreciar as questões de fato, proclamou a inexistência de dano causado ao erário, modificar essa situação implicaria o necessário revolvimento do quadro fático probatório delineado nas instâncias ordinárias, providência essa incabível, na estreita via do recurso especial, sob o óbice contido na Súmula 07 desta Corte. Isto posto, nego provimento ao agravo.Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 14 de maio de 2002. MINISTRO VICENTE LEAL Relator
Em conclusão do exposto, não se pretende consignar uma impunidade aos administradores que se viram compelidos, por mais variadas que forem as interpretações diante da lacuna criada pelo próprio legislador, de deixá-los de levar às barras dos Tribunais em face da possibilidade da prática de ato de improbidade administrativa; contudo, com a recente regulamentação por parte do CONTRAN com o advento da Deliberação nº 33, de abril de 2002, foi dado um instrumento que norteia a conduta do administrador que, dela se afastando por interpretações de caráter meramente subjetivo, poderá sofrer as sanções que a Lei lhe impõe.
São José do Rio Preto, 30 de julho de 2.002
CARLOS GILBERTO MENEZELLO ROMANI
5º Promotor de Justiça de S.J.Rio Preto