Notas para um debate sobre o princípio da eficiência

Paulo Modesto

Texto base da exposição feita no Painel sobre o tema “O Princípio da Eficiência: desafios concretos” no XXIII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, realizado em 30/09/1999, na cidade de Florianópolis, Santa Catarina. Pensado inicialmente para abertura do painel, em forma de provocação para o debate subsequente, o texto foi ampliado na exposição oral em razão da modificação da composição da mesa, tendo o autor deixado a presidência do painel para integrá-lo na condição de painelista. O painel foi ainda composto pelos eminentes Professores Diogo de Figueiredo Moreira Neto (RJ) e Paulo Roberto Ferreira Motta (PR).

1. Princípio da Eficiência e Estado Social Democrático
Na sociedade contemporânea, a Administração Pública permanece cumprindo um papel central e estratégico na conformação social. Afirmar isto é recusar a ilusão das aparências. Embora submetido a uma dieta orgânica, o Estado contemporâneo não interrompeu o seu crescimento enquanto instituição social, ampliando continuamente a sua intervenção nos domínios do “mundo-da-vida” (HABERMAS). Nas sociedades dos nossos dias, o crescimento do papel do Estado convive com a diminuição do aparelho do Estado decorrente dos sucessivos processos de privatização.
O Estado concretizado em estruturas burocráticas (Estado-aparato) é atualmente muito menos significativo do que o Estado percebido em sua dimensão normativa e econômica. Esse é um dado importante do nosso tempo histórico. O Estado hoje manipula uma parte expressiva do produto interno bruto nacional. Fomenta e tributa, executa e delega serviços, regula a atividade econômica e cultural em dimensões nunca vistas, controla, reprime e estimula, produzindo e reproduzindo tanto a riqueza quanto a exclusão social. Numa expressão de síntese: é a organização nacional central na transferência de recursos entre os diversos grupos sociais. O Estado não foi reduzido ao mínimo, nem é uma instituição em processo adiantado de decomposição, como alguns sugerem. Ao contrário, amplia seus tentáculos continuamente, penetrando em quase todas as dimensões da vida privada, tornando-nos cada vez mais dependentes de suas regulações e controles; amplia persistentemente a sua participação no produto bruto nacional, numa sanha incansável por novos recursos; endivida-se de forma incontida, sem entretando demonstrar capacidade para tratar adequadamente problemas sociais de vulto.
É o crescimento do Estado, não a sua diminuição, a causa imediata dos graves problemas de legitimação que atormentam o Estado contemporâneo. Mas, ao mesmo tempo, é importante frisar, o Estado é indispensável, pois é a única organização, operando em larga escala, capaz de conter os interesses privados em limites socialmente razoáveis e apta a intervir intensivamente sobre a coletividade associando eficiência e equidade.
Reclama-se do Estado, cada vez com maior impaciência, para que otimize o seu agir e conduza em termos adequados a realização dos fins prezados pela comunidade. Questiona-se a omissão no agir, a aptidão do agir e a qualidade do agir estatal. Essas exigências não são dirigidas a um Estado liberal, mas a um Estado Democrático e Social, executor e fomentador da prestação de serviços coletivos essenciais. É o Estado Social que não pode descuidar de agir com eficiência, justificando os recursos que extrai da sociedade com resultados socialmente relevantes. Essas exigências hoje não são mais percebidas em termos meramente políticos ou econômicos. Foram positivadas, forma entronizadas no sistema jurídico, juridicizaram-se como exigências do ordenamento nacional.
Mas não são exigências apenas negativas, úteis para censurar, ou recusar a validade de comportamentos que contravenham aos valores por ela expressados, pois também são válidas positivamente, para impor ao administrador a observância de cautelas e procedimentos que permitam a otimização possível na obtenção dos bens jurídicos prometidos pelo ordenamento. Exige-se do Estado celeridade e simplicidade, efetividade e eficiência na obtenção de utilidades para o cidadão, na regulação da conduta pública e privada, na vigilância ao abuso de mercado, no manejo dos recursos públicos. Hoje essas são pautas de comportamento exigíveis do administrador para a validade e legitimidade da ação estatal. São imposições normativas, com caráter principiológico, condensadas sob o rótulo de princípio da eficiência, referido expressamente na cabeça do art. 37 da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 19, de 1998. Trata-se de tema ainda carente de maior exploração entre nós, mas cuja consideração parece urgente.
2. Temário Possível para um Debate sobre o Princípio da Eficiência
Pode-se polemizar sobre se o princípio da eficiência é “novo” ou antigo; se é uma exigência inerente ao Estado de Direito Social ou se foi entronizado artificialmente no ordenamento constitucional brasileiro pela Emenda Constitucional n.º 19/98; se esse princípio podia ser reconhecido no diploma constitucional de 1988 ou se foi o resultado do avanço de alguma ideologia liberal no direito constitucional brasileiro. Pode-se discutir se essa exigência de eficiência produzirá ou não efeitos concretos imediatos ou ainda se sua compreensão deve ser diferenciada em relação aos conteúdos que lhe são dados por outras disciplinas no rol das ciências humanas. Pode-se indagar se as referências a este princípio no ordenamento jurídico de outros países, revelado pelo direito comparado, ao apelar para signos semelhantes, auxilia ou não na compreensão do alcance do princípio da eficiência no direito brasileiro. Mas não se pode, em qualquer caso, recusar a positividade, a operatividade e a validade jurídica do princípio da eficiência sob o argumento de que o seu conceito foi tradicionalmente desenvolvido pela sociologia e pelas ciências econômicas. Todos sabemos que os princípios jurídicos são normas, prescrições, dirigem-se a incidir sobre a realidade, referindo sempre algum conteúdo impositivo.
O termo eficiência não é privativo de nenhuma ciência; é um termo da língua natural, apropriado pelo legislador em sua acepção comum ou com sentido técnico próprio. São os juristas, como agentes ativos no processo de construção do sentido dos signos jurídicos, os responsáveis diretos pela exploração do conteúdo jurídico desse princípio no contexto do ordenamento normativo nacional.
No plano do direito comparado, como se sabe, fala-se em exigência de boa administração (ou bom andamento da administração), em princípio da eficácia, em princípio da racionalização administrativa, em princípio da não burocratização e em economicidade. Não vou focar as diferenças e as semelhanças entre estes signos normativos do direito comparado. Outros já o fizeram com grande proveito, como EGON BOCKMAN MOREIRA, querido amigo e jurista de olhar analítico, em recente estudo sobre o princípio da eficiência e sua repercussão no processo administrativo (Processo Administrativo, Princípios Constitucionais e a Lei 9784/99. No prelo). Neste campo, vale à pena ordenar os conceitos, desconfiando das nomenclaturas, porque nem sempre as semelhanças nominais traduzem semelhanças de conteúdo. Essa pode ser uma das vias do debate que se inicia na doutrina nacional, mas não será realizada aqui, dado o caráter necessariamente sumário dessa exposição.
3. O Princípio da Eficiência como Princípio Constitucional Positivo
É comum dizer-se que o princípio da eficiência ingressou na ordem constitucional brasileira, como princípio geral da administração pública, com a Emenda Constitucional n. 19/98, que o introduziu expressamente na cabeça do art. 37.
Essa afirmação pode ser contestada sob diferentes perspectivas. Em primeiro lugar, admite uma desconfirmação formal, literal, ao nível do texto constitucional, pois a própria redação original da lei fundamental de 1988 contemplava de forma expressa a exigência de eficiência na administração pública em diferentes disposições. Em outro plano, menos superficial, no plano estruturante dos princípios constitucionais, a afirmação também merece reparos.
3.1. Base Constitucional do Princípio da Eficiência na Constituição de 1988
O texto original da Constituição Federal de 1988, ora de forma explícita, ora de forma implícita, refere a exigência de eficiência como uma obrigação constitucional da administração pública em diversas normas. Ressaltarei as que me parecem mais evidentes.
No art. 74, II, por exemplo, desde 1988, reza a lei maior que “os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: (…) II- comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado”. Porém, mais do que isso, constatada alguma irregularidade nos aspectos controlados, devem os responsáveis comunicá-la imediatamente o Tribunal de Contas da União, “sob pena de responsabilidade solidária” (art. 74, § 1º). Ora, se a eficácia e a eficiência são qualidades do agir administrativo avaliadas obrigatoriamente no controle jurídico da atividade de todo órgão da administração direta e das entidades da administração indireta, em qualquer dos poderes e, em caso de irregularidade, sujeitam os responsáveis a sanções jurídicas, são obrigações jurídicas, imposições constitucionais, exigências gerais vinculantes para o administrador público. Numa palavra, são princípios jurídicos de prossecução obrigatória, pois os princípios, na boa definição de ROBERT ALEXY, são “exigências de otimização”: “normas que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro do contexto jurídico e real existentes” (ROBERT ALEXY, Teoria de los Derechos Fundamentales, Madrid, Ed. Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 86).
Ademais, como entender, sem pressupor implícita a obrigação constitucional geral de assegurar a eficiência na gestão pública, a autorização constitucional dada ao Tribunal de Contas para avaliar a “legitimidade e economicidade” da atuação administrativa em geral, ao lado do controle de “legalidade”, na cabeça do art. 70 da Constituição Federal? Reflita-se que os Tribunais de Contas estão constitucionalmente autorizados a realizar “auditorias operacionais”, distintas das auditorias contábil, financeira e patrimonial, pelo art. 71, inciso VII, da Constituição, perante os órgãos e entidades da administração pública, o que não teria sentido se o administrador fosse livre para ser eficiente e ineficiente, sem que a ineficiência importasse em violação do direito.
Por fim, de forma explícita, o texto original da Constituição de 1988, no §7º do art. 144, reza que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”. É razoável entender que apenas os serviços de segurança pública sujeitam-se a obrigação constitucional de organização adequada e atuação eficiente? Não vale aqui o que se disse do princípio da motivação, não referido na cabeça do art. 37 da Constituição Federal, mas considerado princípio geral implícito em decorrência do regime republicano e de encontrar-se previsto, como exigência explícita, no art. 93, X, da Constituição, para todas as decisões administrativas dos tribunais? De outra parte, a obrigação de prestar serviço adequado, exigido no art. 175 da Constituição, porventura deve ser interpretada como dirigida apenas aos concessionários e permissionários de serviço público privados? São provocações que suscito como estímulo para a reflexão dos mais doutos e para fundamentar uma avaliação mais serena do que se tem dito sobre essa modificação formal no rol de princípios constitucionais gerais referente à administração pública.
Ressalto ainda que, também na doutrina jurídica, bem antes da Emenda Constitucional n. 19, o princípio da eficiência não era desconhecido. HELY LOPES MEIRELLLES já apontava entre os “poderes e deveres do administrador público” o chamado “dever de eficiência”, o qual chegou a denominar “o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros”. Segundo o mesmo autor, o princípio da eficiência impõe que todo agende público deve realizar as suas atribuições com presteza, precisão, perfeição e rendimento funcional. Para HELY LOPES MEIRELLES, o dever de eficiência corresponde ao “dever de boa administração” da doutrina italiana (Cf. Direito Administrativo Brasileiro, 20ª ed., São Paulo, Malheiros, 1995, p.90 )
A jurisprudência dos tribunais, antes da Emenda Constitucional n.º 19/98, igualmente prestou homenagens ao princípio da eficiência em matéria administrativa. São referências ainda tímidas constantes de decisões do Supremo Tribunal Federal (1) e do Superior Tribunal de Justiça (2).
Mas o princípio da eficiência, além disso, pode ser percebido também como uma exigência inerente a toda atividade pública. Se entendemos a atividade de gestão pública como atividade necessariamente racional e instrumental, voltada a servir ao público, na justa proporção das necessidade coletivas, temos de admitir como inadmissível juridicamente o comportamento administrativo negligente, contra-produtivo, ineficiente. Não se trata de uma extravagância retórica. Raciocínio semelhante vem sendo adotado há anos pela doutrina alemã, que chega a afirmar ser o princípio da eficiência um “princípio constitucional estrutural pré-dado” ou, como parece melhor, uma “decorrência necessária da cláusula do Estado Social”. Para alguns, como para o professor JOÃO CARLOS GONÇALVES LOUREIRO, o princípio da eficiência é percebido inclusive como uma decorrência da idéia de Justiça. No seu dizer: “um mínimo de eficiência é uma exigência que integra a idéia de Justiça” (cf. O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares: algumas considerações, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 147).
Em verdade, ao contrário de contrastar com o princípio da legalidade, ou legitimar sua atenuação, penso que o princípio da eficiência pode ser percebido como componente da própria legalidade, percebida sob um ângulo material e não apenas formal. Refiro-me à legalidade material explorada excelentemente entre nós, há anos, pelo Prof. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, nomeadamente quando trata do dever de atuação ótima ou excelente do administrador nas hipóteses de discricionariedade (Cf.Discricionariedade e Controle Judicial, São Paulo, Malheiros, 1992, pp. 33-36).
Ser predicado da legalidade material, entretanto, não é um privilégio do princípio da eficiência. O princípio da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, entre outros, podem ser também encartados na abordagem ampliada do principio da legalidade. O princípio da eficiência compõe uma das faces materiais do princípio da legalidade da administração pública, destacado pela Constituição por razões pragmáticas e políticas.
A literatura jurídica e administrativa mais recente, no entanto, tem sobrecarregado o princípio da eficiência de expectativas e anátemas, atribuindo-lhe aptidões revolucionárias, muitas delas incompatíveis com os demais princípios indicados, como se a introdução desse signo na cabeça do art. 37 da Constituição Federal modificasse intensamente o núcleo do regime jurídico administrativo. Para alguns, entusiastas da “novidade” do princípio, este marca um novo momento da administração pública, caracterizado pela ruptura com o modelo de “organização auto-referida”, pois permitiria que a administração pública cuidasse menos dos meios e processos e mais dos resultados externos do seu labor. Para outros, a consagração do princípio da eficiência significa uma vitória da ideologia neoliberal, traduzindo um perigoso retrocesso na ordem constitucional inaugurada em 1988, capaz de provocar um grave abalo de suas estruturas e contribuir para o rompimento do Estado de Direito. Exageros à parte, com pleno respeito aos que pensam em contrário, entendo que essas duas leituras da lei maior esquecem o essencial. Nunca houve autorização constitucional para uma administração pública ineficiente. A boa gestão da coisa pública é obrigação inerente a qualquer exercício da função administrativa e deve ser buscada nos limites estabelecidos pela lei. A função administrativa é sempre atividade finalista, exercida em nome e em favor de terceiros, razão pela qual exige legalidade, impessoalidade, moralidade, responsabilidade, publicidade e eficiência dos seus exercentes. O exercício regular da função administrativa, numa democracia representativa, repele não apenas o capricho e o arbítrio, mas também a negligência e a ineficiência, pois ambos violam os interesses tutelados na lei. A atividade de administração, doutrina há décadas GIANINNI, obriga a prossecução da “miglor cura degli interesi alieni” (apud PAULO MODESTO, “Função Administrativa”, In: Revista do Serviço Público, n. 2/3, vol. 119, 1995, p. 110; Revista Trimestral de Direito Público (RTDP) n. 2, p. 211-224,1993).
Por entender assim, combati desde o primeiro momento a introdução dessa alteração na cabeça do art. 37 durante o processo de discussão da proposta de emenda constitucional n. 173 no Congresso Nacional, sustentando entre outros argumentos que a proposta do relator na Câmara dos Deputados era desnecessária e redundante. No entanto, pragmaticamente, quando a sua adoção era inevitável, pela dinâmica do processo político, propugnei no Senado Federal para que a redação final não registrasse a expressão imprópria “qualidade dos serviços prestados” e sim o enunciado “eficiência”, argüindo então a impropriedade de incluir a primeira redação entre os princípios gerais da administração, por ela referir diretamente apenas um setor da administração pública (a esfera da prestação de serviços públicos), quando todos os demais princípios ostentavam um alcance geral. Por outro lado, anotava que o texto proposto pelo relator contemplava uma clara redundância com o art. 175 da Constituição da República, já ocupado com a exigência de qualidade na prestação dos serviços públicos. Pesou em favor da segunda redação, também, a sua referência explícita em diversos dispositivos constitucionais e a terminologia que acompanha o tema no direito comparado. Esses fatos são desmistificadores e apenas por essa razão merecem ser referidos. Mas demonstram também, aliados aos argumentos anteriores, que é preciso analisar o princípio da eficiência em articulação com o sistema constitucional estabelecido desde a promulgação da Constituição de 1988. Somente assim parece possível explorar, com olhar mais atento, o conteúdo específico do princípio da eficiência.
O tema obriga a uma nova reflexão, ainda que sucinta sobre o conteúdo a extrair da enunciação do princípio.
3.2. Conteúdo do Princípio da Eficiência
É certo que o princípio da eficiência ressente-se ainda de uma limitada consideração na doutrina especializada. No entanto, parece urgente delimitá-lo para que o seu conteúdo prescritivo não seja invocado de modo espúrio. A exploração do seu conteúdo pode ser útil também para que certos abusos administrativos fiquem melhor evidenciados e possam ser banidos da vida brasileira. Exemplos não faltam: compras de remédios específicos em excesso, com subsequente vencimento do prazo de validade; construções iniciadas ao lado de obras inacabadas de mesma finalidade; compras superfaturadas; construções nababescas; subsídios injustificáveis a setores econômicos específicos, sem contrapartidas sociais; compras de produtos tecnologicamente defasados. Os exemplos poderiam ser multiplicados até a exaustão.
3.2.1. Instrumentalidade
O princípio constitucional da eficiência é um princípio instrumental, como todos os princípios da administração pública. Nenhum princípio de direito administrativo tem valor substancial auto-suficiente. Integra-se com os demais princípios, não podendo sobrepor-se a eles ou infirmar-lhes a validade. Não há nisso maior novidade. Os princípios são normas que exigem ponderação, concordância prática, aplicação tópica, complementação, como há anos nos ensinou CANARIS. Por isso, o princípio da eficiência, como todo princípio, não possui caráter absoluto, mas irradia efeitos em quatro dimensões: cumpre uma função ordenadora, uma função hermenêutica, uma função limitativa e função diretiva. Estudá-lo em todas essas dimensões permitirá melhor determinar os seus contornos, tarefa que incumbe à doutrina jurídica, mas exige um esforço que obviamente excederá os limites de tempo estabelecidos para esta sessão.
3.2.2. Pluridimensionalidade
Trata-se também de “princípio pluridimensional”, segundo alguns autores, de um princípio que não deve ser reduzido à mera economicidade no uso dos recursos públicos, vale dizer, a uma relação quantitativa entre o uso dos meios e o atingimento dos fins estabelecidos, consoante o emprego tradicional das ciências econômicas.
Penso que, no sistema jurídico brasileiro, em face das normas referidas, o princípio da eficiência diz mais do que a simples exigência de economicidade ou mesmo de eficácia no comportamento administrativo. Entendo eficácia como a aptidão do comportamento administrativo para desencadear os resultados pretendidos. A eficácia relaciona, de uma parte, resultados possíveis ou reais da atividade e, de outro, os objetivos pretendidos. A eficiência pressupõe a eficácia do agir administrativo, mas não se limita a isto. A eficácia é, juridicamente, um prius da eficiência.
A imposição de atuação eficiente, do ponto de vista jurídico, refere a duas dimensões da atividade administrativa indissociáveis:
a) a dimensão da racionalidade e otimização no uso dos meios;
b) a dimensão da satisfatoriedade dos resultados da atividade administrativa pública.
Não é apenas uma ou outra exigência, mas as duas idéias conjugadas. Eficiência, para fins jurídicos, não é apenas o razoável ou correto aproveitamento dos recursos e meios disponíveis em função dos fins prezados, como é corrente entre os economistas e os administradores. A eficiência, para os administradores, é um simples problema de otimização de meios; para o jurista, diz respeito tanto a otimização dos meios quanto a qualidade do agir final. Recorde-se que o administrador público esta obrigado a agir tendo como parâmetro o melhor resultado, consultando-se o princípio da proporcionalidade (Cf. JUAREZ FREITAS, O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais, 2 ª ed., São Paulo, Malheiros, 1999, p. 85-6).
Na primeira dimensão do princípio da eficiência insere-se a exigência de economicidade, igualmente positivada entre nós, sendo o desperdício a idéia oposta imediata. Trata-se aqui da eficiência como qualidade da ação administrativa que maximiza recursos na obtenção de resultados previstos. Na segunda dimensão, cuida-se da eficiência como qualidade da ação administrativa que obtém resultados satisfatórios ou excelentes, constituindo a obtenção de resultados inúteis ou insatisfatório uma das formas de contravenção mais comuns ao princípio.
A primeira face ou dimensão do princípio é enfatizada por diversas disposições constitucionais (em especial, os Arts. 39, §7º, e Art 74, II, da Constituição Federal). Enfatizam o segundo aspecto as disposições sobre “avaliação de resultado”, em especial o referido no art. 37, §3º “avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços” e a necessidade de lei para disciplinar a “representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública”. Vale, neste ponto, conferir também o prescrito nos art.s 41, §3º e 41, §1º, III e 247.
Percebido em suas duas dimensões básicas, o princípio da eficiência, como referia HELY LOPES MEIRELLES, pode ser equiparado ao princípio tradicional da boa administração. Na administração prestadora, constitutiva, não basta ao administrador atuar de forma legal e neutra, é fundamental que atue com eficiência, com rendimento, maximizando recursos e produzindo resultados satisfatórios. Compras de material hospital para 30 anos sem sentido útil, em razão de perda do prazo de válidade; construções de obras faraônicas, sem a correspondente reserva de recursos; contratações em excesso, etc. são provas de que o princípio é útil e poderá ser invocado em diversas situações para responsabilizar autoridades irresponsáveis e levianas na gestão da coisa pública.
A obrigação de atuação eficiente, portanto, em termos simplificados, impõe:
a) ação idônea (eficaz);
b) ação econômica (otimizada) e
c) ação satisfatória (dotada de qualidade).
É certo que o princípio da eficiência fortalece o chamado controle a posteriori de resultados. Não há também aqui uma inovação absoluta, pois já o Decreto-lei 200/67 submetia toda atividade do Poder Executivo ao controle de resultados (arts 13 e 25, V), fortalecia o sistema de mérito (art. 25, VIII), sujeitava a Administração indireta à supervisão ministerial quanto à eficiência administrativa (art. 26,III) e recomendava a demissão ou dispensa do servidor comprovadamente ineficiente ou desidioso (art. 100). Mas esse dado não infirma, não nega, o controle de legalidade estrita que deve e pode conviver com o controle de resultados. Sobre o histórico do tema, confira-se o trabalho de JAYME BALEEIRO e RENAN BALEEIRO (“O Princípio da Eficiência e os Tribunais de Contas”, In: Os Tribunais de Contas e as Reformas Constitucionais, quatro estudos, livro editado pelo Tribunal de Contas do Estado da Bahia, 1999, p. 62).
3.3.3. Conceito
Diante do que vem de ser dito, pode-se definir o princípio da eficiência como a exigência jurídica, imposta à administração pública e àqueles que lhe fazem as vezes ou simplesmente recebem recursos públicos vinculados de subvenção ou fomento, de atuação idônea, econômica e satisfatória na realização das finalidades públicas que lhe forem confiadas por lei ou por ato ou contrato de direito público.
4. Conclusão
O princípio da eficiência, embora não seja novo em nosso sistema jurídico, merece ser revigorado. Sobre uma adequada consideração desse princípio podem ser renovados diversos institutos do direito público. Ele permite oferecer nova legitimação à aplicação abrangente e geral do direito público na disciplina da administração pública e permitir um controle mais efetivo da competência discricionária de agentes públicos. Desconsiderar a sua importância no contexto dos demais princípios do Estado Social, apenas pode satisfazer os que advogam a chamada “fuga para o direito privado”, que RAMÓN PARADA, com bom humor, diz que mais parece uma “debandada para o direito privado”. (Derecho Administrativo, Vol. I, Parte General, 10ª ed, Madrid, Marcial Pons, 1998, p. 30)
É equivocado pensar que apenas o direito privado e os entes privados possam assegurar e impor padrões de eficiência nos serviços oferecidos ao cidadão e que a exigência de atuação eficiente não tenha sentido jurídico. No direito público, muda a natureza dos resultados pretendidos e a forma de realização da atividade, mas a necessidade de otimização ou obtenção da excelência no desempenho da atividade continua a ser um valor fundamental e um requisito da validade jurídica da atuação administrativa.
Pode ser esse o papel do princípio da eficiência: revigorar o movimento de atualização do direito público, para mantê-lo dominante no Estado Democrático e Social, exigindo que este último cumpra efetivamente a tarefa de oferecer utilidades concretas ao cidadão conjugando equidade e eficiência. Não é uma síntese fácil, mas é uma síntese possível também para o direito administrativo, que vem traduzindo essas aspirações na utilização crescente de formas de agir “consertadas”, “não autoritárias”, “fomentadoras”, “negociadas”, distantes do padrão de agir da administração do estado liberal, policialesco, centrado na limitação e disciplina dos interesse privados sob formas imperativas, sancionadoras, hierarquizadas, soberanas. Encontrar um novo equilíbrio entre os interesses fundamentais tutelados pelo direito administrativo, evitando tanto a prepotência quanto a impotência do Estado, é o desafio posto à doutrina do nosso tempo e o resultado possível de um debate ainda muito longe de ser concluído.

Notas:

1. “O controle administrativo do ensino publico permite a interferência oficial na direção dos educandarios particulares, para afastar os diretores sem eficiência. Não constitui diminuição moral esse afastamento, pois nem todo cidadão ilibado tem competência para dirigir e administrar. (STF, RMS-2201 / DF, Relator Ministro ABNER DE VASCONCELOS – convocado, publicado no DJ DATA-22-07-54, p.*****. Julgamento 07/01/1954 – Tribunal Pleno).
2. “ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. 1. O Ministério Público está legitimado para propor ação civil pública para proteger interesses coletivos. 2. Impossibilidade do juiz substituir a Administração Pública determinando que obras de infra-estrutura sejam realizadas em conjunto habitacional. Do mesmo modo, que desfaça construções já realizadas para atender projetos de proteção ao parcelamento do solo urbano. 3. Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de realizar atos físicos de administração (construção de conjuntos habitacionais, etc.). O Judiciário não pode, sob o argumento de que está protegendo direitos coletivos, ordenar que tais realizações sejam consumadas. 4. As obrigações de fazer permitidas pela ação civil pública não têm força de quebrar a harmonia e independência dos Poderes. 5. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário está vinculado a perseguir a atuação do agente público em campo de obediência aos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade, da finalidade e, em algumas situações, o controle do mérito. 6. As atividades de realização dos fatos concretos pela administração depende de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades estabelecidos pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para proteger o meio ambiente. 7. Recurso provido. (STJ, RESP 169876/SP ; RECURSO ESPECIAL (98/0023955-3), Fonte DJ DATA:21/09/1998 PG:00070 Relator Ministro JOSÉ DELGADO (1105), Data da Decisão 16/06/1998,Orgão Julgador T1 – PRIMEIRA TURMA Decisão Por unanimidade, dar provimento ao recurso.)”.
“RMS – ADMINISTRATIVO – ADMINISTRAÇÃO PUBLICA – SERVIDOR PUBLICO – VENCIMENTOS – PROVENTOS – ACUMULAÇÃO – A administração publica é regida por vários princípios: legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade (const., Art. 37). Outros também se evidenciam na carta política. Dentre eles, o principio da eficiência. A atividade administrativa deve orientar-se para alcançar resultado de interesse publico. Dai, a proibição de acumulação de cargos. As exceções se justificam. O magistério enseja ao professor estudo teórico (teoria geral) de uma área do saber; quanto mais se aprofunda, no âmbito doutrinário, mais preparado se torna para o exercício de atividade técnica. Não ha dispersão. Ao contrario, concentração de atividades. Alem disso, notório, ha deficiência de professores e médicos, notadamente nos locais distantes dos grandes centros urbanos. O estado, outrossim, deve ensejar oportunidade de ingresso em seus quadros, atento aos requisitos de capacidade e comportamento do candidato, para acolher maior numero de pessoas e amenizar o seríssimo problema de carência de trabalho. Nenhuma norma jurídica pode ser interpretada sem correspondência a justiça distributiva. A constituição não proíbe o aposentado concorrer a outro cargo publico. Consulte-se, entretanto, a teleologia da norma. O direito não pode, contudo, contornar a proibição de acumular cargos, seja concomitante, ou sucessiva. A proibição de acumulação de vencimentos e proventos decorre do principio que veda acumulação de cargos. A eficiência não se esgota no exercício da atividade funcional. Alcança arco mais amplo para compreender também a eficiência para a carreira. (STJ, ROMS 5590/df ; recurso ordinário em mandado de segurança (95/0016776-0) fonte DJ data:10/06/1996, pg:20395 Relator Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, data da decisão 16/04/1996 órgão julgador – sexta turma decisão por unanimidade, negar provimento ao recurso).

O autor é Professor de Direito Administrativo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Salvador (UNIFACS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Público da UNIFACS. Membro do Ministério Público da Bahia, do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo e do Instituto dos Advogados da Bahia. Conselheiro Técnico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo da Bahia (IDAB). Ex-Assessor Especial do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. E-mail: paulomodesto@yahoo.com , Site: http://www.direitopublico.com.br

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento