Por: Margareth Rago
Poucos duvidam de que ter amigos é um dos bens mais preciosos em nossos tempos, marcados por muita descrença e insegurança. Ao mesmo tempo, quase todos entendem que os amigos são poucos, defendendo-se para com os demais uma relação de distância e desconfiança. Mal nos damos conta do modelo de amizade que praticamos, modelo cristão pautado na família e confinado ao privado, mesmo quando bradamos contra a destruição da esfera pública, a privatização da vida social, ou a atomização do indivíduo.
Ainda recentes, as discussões sobre a difusão do modelo privatizado da amizade, que associa o amigo ao irmão vêm, contudo, revelando que outros modos de relação consigo e com os outros, fundados na solidariedade e no respeito à diferença são possíveis. Mais que isso, são necessários para a tão desejada reinvenção das formas da sociabilidade e da subjetividade.
É na direção dessas problematizações que o livro de Edson Passetti aponta, aprofundando uma importante discussão ética da atualidade: as possibilidades da amizade entendida como vida em expansão, ou como afirmação de existências livres.
Professor de Ciências Políticas da PUC-SP, Passetti tem-se destacado pela crítica ousada e pelo corajoso enfrentamento de temas políticos da mais alta pertinência. Seu trabalho gira em torno da busca de um fundamento ético para a reinvenção das relações intersubjetivas e associativas, assim como uma reatualização do anarquismo, de modo a escapar da herança humanista do passado.
Coordenador do Núcleo da Sociabilidade Libertária, do pós em Ciências Sociais dessa Universidade, Passetti publica atualmente a revista Verve, dedicada a temas libertários e é autor de vários livros e artigos referentes à violência contra as crianças e ao abolicionismo penal.
Éticas dos Amigos pergunta pelas “invenções libertárias da vida”, propondo uma genealogia da amizade no pensamento ocidental, especialmente quando formulada em relação às práticas da liberdade. Embora realize uma ampla e erudita historicização dos múltiplos sentidos atribuídos à amizade desde a Antigüidade clássica, seu principal alvo de investimento dirige-se à busca comprometida das experiências outras das práticas da amizade, para além dos conhecidos parâmetros do presente.
A amizade que Passetti elege não se refere, portanto, à relação confortante, especular e íntima estabelecida entre iguais, através da qual reforçam a própria identidade e excluem os diferentes. Nem tampouco à aliança garantidora da paz perpétua promovida pelos Estados contra o inimigo comum. Antes, trata-se da busca inquieta pelos vínculos intensos que viabilizam associações libertárias, no presente, geradoras de estilos de vida não-hierárquicos, como querem os amigos La Boétie, Nietzsche, Stirner, Foucault e Deleuze.
DESASSOSSEGO – Ao questionar a frase canônica de Aristóteles — “ah, amigos, não há amigos” —, Passetti afirma: “A mim tocou a frase de Nietzsche ‘ah, inimigos, não há inimigos’, pelo desassossego que traz e pela bravura em reconhecer no amigo o melhor inimigo, o guerreiro que desestabiliza mas não destrói, em oposição à amizade como bem superior, pacificação do conflito interno e exterior à cidade”.
Acompanhado por esses filósofos, o autor visita epicuristas e estóicos, diferencia La Boétie de Montaigne, chega a Nietzsche e aos anarquistas clássicos, em especial a Max Stirner, evidenciando os elos que os aproximam, ou diferenciam na reflexão sobre a amizade.
Com Foucault, encontra nos modos de subjetivação dos gregos e dos romanos experiências radicalmente diferentes da sujeição contemporânea: longe de visar a produção dos “corpos dóceis” submetidos a um código moral autoritário, eles cultivavam livremente os usos dos prazeres e os cuidados de si. Relações de amizade se constituíam, pois, em experiências éticas que almejavam a estetização da existência, em práticas da liberdade que permitiam fazer do indivíduo um ser livre, capaz de se auto-governar, antes mesmo de poder governar os outros e a pólis.
Vários capítulos compõem este ensaio lúcido e apaixonado, que discute historicamente modos de coexistência, estilos de vida e formas da amizade, convergindo para as possibilidades da criação de inúmeras “associações” libertárias no presente.
É neste momento que o livro atinge seu ponto alto, ao fazer vibrar, ao lado dos anarquistas clássicos, o pensamento de Stirner, incompreendido em função de sua defesa radical do individualismo. Novamente, a leitura irreverente de Passetti subverte as imagens cristalizadas: ao contrário do egoísmo narcisista que lhe é freqüentemente atribuído, a defesa stirneana do Um aparece como condição de possibilidade da afirmação libertária da amizade entre iguais, mas diferentes.
A ética proposta por Passetti supõe que “amigos libertários inventam existências, abalam o indivíduo, a sociedade e o Estado.” Em suas palavras, “A ética dos amigos não é a ética da amizade, um procedimento privado da moral. Ela é presente, é agora. Não é a ética da vida boa, hedonista e feliz. Ela se instrui na convivência amistosa com os outros que partilham deste estilo de vida como arte de viver. Não busca o universal, o idêntico ou afinidades. Mas vitalidades, vontades de potência, combates e embriaguez possíveis para fazer emergir subjetividades constituintes.”
A esse trabalho se entrega também o autor, convidando-nos a estabelecer laços libertários e horizontalizados de amizade, como inimigos e guerreiros desestabilizadores, desejosos de criar e de se reapossar do mundo, aqui e agora.
Margareth Rago é professora livre-docente do departamento de História da Unicamp; tem diversos livros publicados, sendo o último Entre a história e a liberdade – Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo (Unesp, 2001).