Marco Aurélio resolveu sofrimento de mães de fetos sem cérebros

por Luís Roberto Barroso

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, acaba de proferir uma decisão histórica em tema delicado: a admissão da interrupção da gravidez nos casos de anencefalia. O pronunciamento se deu em uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) e o principal fundamento acolhido foi o da preservação da dignidade da pessoa humana. O episódio suscita um conjunto fascinante de discussões éticas, jurídicas e políticas envolvendo o próprio papel do tribunal como corte constitucional em um Estado democrático de direito.

Fetos anencefálicos são aqueles que se formam destituídos de cérebro e, conseqüentemente, sem nenhuma viabilidade de vida extra-uterina. Este quadro é irreversível, sendo normalmente detectado nos três primeiros meses de gravidez. A posição do STF, que tem caráter liminar e ainda depende de ratificação, é a de que a antecipação terapêutica do parto nessas situações não constitui crime de aborto, à vista da ausência de potencialidade de vida do nascituro. Embora tal entendimento se afigure natural e óbvio, ele enfrenta a resistência respeitável de instâncias religiosas de grande representatividade, que acorreram ao debate plural e democrático. É certo, no entanto, que em um Estado laico, a interpretação da Constituição e das leis não pode subordinar-se aos dogmas da fé.

A dignidade da pessoa humana foi alçada ao centro dos sistemas jurídicos contemporâneos. A Constituição de 1988 se integra ao movimento doutrinário pós-positivista, caracterizado pela reaproximação entre o direito e a ética, pelo resgate dos valores civilizatórios e pela primazia dos direitos fundamentais. Pois bem: obrigar uma mulher a conservar no ventre, por longos meses, o filho que não poderá ter impõe a ela sofrimento inútil e cruel. Adiar o parto, que não será uma celebração da vida, mas um ritual de morte, viola a integridade física e psicológica da gestante, em situação análoga à da tortura.

O meio utilizado pela CNTS para levar a matéria ao STF foi uma ação constitucional relativamente nova e pouco explorada: a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Por este instrumento, havendo violação de determinados princípios ou direitos constitucionais de especial significação, causada por ato do Poder Público, é possível alçar a discussão do tema diretamente à corte suprema, desde que preenchidos determinados requisitos. O mais sutil deles é a inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão causada. O STF tem tido uma posição de cautela na admissão dessa nova ação, por motivo compreensível: já não há mais condições de aumentar a carga de processos que chegam ao tribunal. Abre-se aqui espaço para uma última reflexão.

Em meio a suas múltiplas virtudes simbólicas e reais, inclusive a de dar um papel de destaque ao Judiciário, a Constituição de 1988 criou, por outro lado, uma imensa dificuldade operacional para o STF. De fato, congestionou a mais alta corte com um elenco inadministrável de competências, impondo-lhe o exame de dezenas de milhares de processos por ano, banalizando a jurisdição constitucional no varejo das miudezas. Em toda parte do mundo, cortes constitucionais apreciam algumas centenas de processos anualmente. Pronunciam-se acerca de poucas questões, apenas as verdadeiramente importantes, para que sejam ouvidas e para que o cidadão comum possa ter seu interesse despertado e acompanhá-las.

O drama dos fetos anencefálicos teve o melhor final possível, materializado na decisão aqui comentada. Foi a vitória redentora de um grupo de pessoas e organizações que trouxeram o problema para a luz do dia e investiram sua melhor energia para diminuir o sofrimento vão de milhares de mulheres. Mas a visibilidade, transcendência e repercussão desse debate podem ter representado muito mais: uma virada decisiva no próprio papel do Supremo Tribunal Federal no Brasil. É preciso transformá-lo com urgência em um tribunal de grandes causas – não as financeiras, mas as que definem os rumos da cidadania, da sociedade e dos direitos fundamentais. Também aqui, estamos atrasados e há pressa.

Revista Consultor Jurídico

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