Francisco Ramos Mangieri
Foi apresentado recentemente no Congresso Nacional projeto de lei complementar, de iniciativa do senador Jorge Bornhausen, presidente do PFL, dispondo acerca dos direitos, garantias e deveres dos contribuintes.
O projeto estabelece normas gerais de direito tributário, com fulcro no art. 146, II e III, da CF, aplicáveis, assim, aos Poderes Públicos da União, Estados Membros, Distrito federal e Municípios.
Dado o caráter meramente declaratório das normas gerais de direito tributário, a presente regulamentação tem como objetivo apenas e tão somente explicitar os comandos constitucionais, aclarando os princípios e normas que se acham implícitos na Carta Magna Brasileira.
Consolida-se, com o regramento infraconstitucional da matéria, o chamado estatuto do contribuinte, diploma imaginário a tempos reconhecido pela boa doutrina. O que vem a ser estatuto do contribuinte di-lo, à maravilha, o publicista Paulo de Barros Carvalho: “Define-se o estatuto do contribuinte, ao pé de nossa realidade jurídico-positiva, como a somatória, harmônica e organizada, dos mandamentos constitucionais sobre a matéria tributária, que positiva ou negativamente, estipulam direitos, obrigações e deveres do sujeito passivo, diante das pretensões do Estado. E quaisquer desses direitos, deveres e obrigações, porventura encontrados em outros níveis da escala jurídico-normativa, terão de achar respaldo de validade naqueles imperativos supremos, sob pena de flagrante injuridicidade.”
O “estatuto do contribuinte” exige, pois, que a tributação, livre de qualquer arbitrariedade, realize a idéia de Estado de Direito. Às várias possibilidades de atuação da Fazenda Pública há de corresponder à garantia dos direitos de cada contribuinte. Quanto mais gravosa a intervenção tributária, tanto mais cuidadosamente deverá ser protegida a esfera de interesses dos indivíduos. É a segurança jurídica que deve prevalecer num Estado Libertário.
Portanto, visa-se com a futura aprovação do projeto que ora se trata, declarar, de forma expressa e detalhada, o conjunto de preceitos constitucionais que norteiam as relações jurídico-tributárias entre Fisco e contribuintes.
Examinando o conteúdo do projeto, podemos concluir que o legislador complementar direcionou o seu trabalho, não só procurando extrair os consectários dos direitos e garantias fundamentais plasmados na Constituição, mas também, e em passo seguinte, uniformizar e condicionar a interpretação de normas que se consubstanciam em infindáveis discussões doutrinárias e divergências jurisprudenciais, harmonizando a aplicação do direito com o intuito de conferir previsibilidade e estabilidade à relação jurídica do cidadão-contribuinte com o Fisco.
Destaque-se, de início, fazendo um apanhado geral, algumas disposições que mais afetam a relação Fisco-contribuinte e demandam uma imediata revisão de práticas costumeiras dentro da Administração Pública.
A recusa de requerimentos ou comunicações apresentados para protocolo na repartição pública, sob as mais diversas alegações, como o descumprimento de deveres instrumentais tributários, a improcedência do que se pede, ou ainda, de estar o contribuinte em débito para com a Administração Fazendária, práticas rotineiras e reiteradas nos quadros do Poder Público, deverá ceder passo às regras constantes nos arts. 10 e 38 do projeto de lei complementar. É a consagração efetiva do direito de petição, insculpido no art. 5º, XXXIV, da Lei das leis.
Da mesma forma, a existência de procedimentos administrativos tributários em trâmite não será motivo para recusa de certidões (art. 26), devendo, neste caso, ser aplicado o art. 206, c/c art. 151, III, ambos do CTN, sendo emitida ao contribuinte certidão positiva com efeitos de negativa.
Verifica-se também, muito usualmente, condicionamentos de certos atos à previa quitação de débitos tributários pendentes. É o caso de se exigir o recolhimento do tributo como ato-condição para a autorização de emissão de documentos fiscais, prática que fica expressamente proibida pelo art. 37, I, do projeto em foco.
Entrando mais especificamente no terreno do procedimento administrativo tributário, relevantes inovações foram trazidas pelo regramento em questão, que obrigatoriamente deverão ser observadas pelas legislações ordinárias de cada entidade tributante.
A primeira inovação importante é reverter o velho entendimento de que o contribuinte é presumidamente devedor. Pelo novo estatuto, presume-se a boa fé do contribuinte até que a Administração Fazendária comprove o contrário (art. 17), regra que combinada com o art. 43 do mesmo diploma, impede a representação penal contra o contribuinte, antes de confirmada em última instância administrativa a existência de dolo.
Pela mesma razão, o preceito do inc. VI do art. 37 vem corroborar a proibição já veiculada no art. 198 do CTN, de divulgar, em órgão de comunicação social, o nome de contribuintes em débito.
Outras disposições relevantes homenageiam o princípio de que ninguém será privado de seus bens e direitos sem o devido processo legal (art. 5º, LIV e LV, da CF).
Dentro dessa concepção, é reafirmado o direito do contribuinte de ser notificado da cobrança de tributo ou multa (art. 22), devendo lhe ser informado os meios de impugnação, bem como os correspondentes prazos, órgão competente para julgamento, o quantum cobrado e a forma de cálculo do tributo, destacando-se, ainda, o não condicionamento da defesa a qualquer garantia prévia (art. 22, § único).
Inovação também se verifica quanto à impossibilidade de fiscalizações de surpresa, exigindo a lei prévia intimação com antecedência mínima de 5 (cinco) dias úteis quanto à data de comparecimento (art. 23, § 2º).
Ainda no tocante às ações fiscalizatórias, veda-se à Administração o uso de força policial nas diligências a estabelecimentos de contribuintes, salvo se com autorização judicial fundada no justo receio de resistência (art. 37, V).
Restringe-se o direito de examinar documentos comerciais e/ou fiscais dos contribuintes, apenas e tão somente aos tributos de competência da pessoa política que realizar a fiscalização (art. 37, § único), o que, segundo pensamos, prejudica em muito o trabalho da fiscalização, eis que limita o seu campo de análise.
Outra norma que interfere diretamente no setor de Auditoria Fiscal, é a que diz respeito ao prazo máximo para a ultimação das diligências, determinando que não poderá ultrapassar a 90 (noventa) dias contados do termo de início de fiscalização (art. 46 e parágrafo único).
Ainda, dentro do processo administrativo fiscal, determina o § 1º do art. 27, a obrigatória instituição do conselho de contribuintes para o julgamento de causas tributárias e fiscais em última instância administrativa. Acredito que tal medida seja absolutamente justa e imprescindível, uma vez que dará à jurisdição administrativa a imparcialidade necessária para a condução de seus julgados, aumentando, inclusive, a sua credibilidade junto aos administrados.
De absoluta relevância a mudança ocorrida com relação ao processo de consulta. As questões formuladas à Administração deverão ser respondidas no prazo máximo de 30 dias, sob pena de responsabilidade funcional (art. 31, I), acarretando ainda, no caso de descumprimento do prazo, em aceitação pela Fazenda, da interpretação e do tratamento normativo dado pelo contribuinte à hipótese objeto da consulta (art. 31, III). Tal regra traduz-se em inegável penalidade à Administração Pública, nos casos em que falte com a exigida eficiência, princípio constitucional básico estatuído no art. 37 da CF.
Não menos importante a disposição do art. 45, que obriga a inscrição do crédito tributário na dívida ativa, no prazo de até 30 (trinta) dias contados de sua constituição definitiva, sob pena de responsabilidade funcional. Esta regra, conforme entendemos, vem acabar com as inúmeras divergências doutrinárias quanto ao momento em que se considera constituído o crédito tributário. Ora, pelo que reza o artigo, a única interpretação que restará possível é que a constituição final somente se dará após terem se esgotado as vias administrativas de impugnação do ato administrativo emitido.
Como já antes aludido, procurou ainda o projeto em estudo eliminar algumas dúvidas e controvérsias a tempos existentes no mundo jurídico tributário, contribuindo, com isso, para pacificar as relações entre Fisco e contribuintes. Quatro questões cruciais foram resolvidas pelo legislador complementar.
A primeira diz respeito à antiga discussão a respeito da expressão final do art. 150, VI, “c”, da CF (…“atendidos os requisitos da lei”). Parte da doutrina ensina tratar-se de lei ordinária, enquanto outra corrente, majoritária, inclina-se pela exigência de lei complementar. Com a aprovação do projeto, dúvida não mais restará, já que o art. 8º determina que somente lei complementar poderá estabelecer requisitos para o reconhecimento da imunidade tributária. O dispositivo nada mais faz do que prestigiar a interpretação sistemática acerca da matéria, resultante da combinação dos arts. 150, VI, “c” e 146, II, ambos da Carta Constitucional de 1988.
Outra disposição interessante é a que caracteriza o parcelamento de tributos como hipótese de novação (art. 36), figura não admitida no direito tributário, segundo a maioria da doutrina. Tal norma acaba por instituir nova modalidade de extinção do crédito tributário, ampliando o rol do art. 156 do CTN.
Isso faz com que o contribuinte retorne à estaca zero em relação à dívida tributária, inclusive para fins de obtenção de certidões negativas. É que, conforme ensina o professor Sílvio Rodrigues, “a novação é uma operação que, de um mesmo alento, extingue uma obrigação e a substitui por outra, que nasce naquele instante. ” Pois bem, extinta a obrigação tributária original e nascida outra, desde que os prazos do parcelamento estejam sendo cumpridos, não há que se falar em débitos, não podendo, por conseguinte, ser negada certidão negativa ao contribuinte. Não mais será lícito, portanto, a expedição de certidão positiva com efeitos de negativa em tais situações, só admissível enquanto se considerava o parcelamento de tributos como espécie de moratória.
Por fim, registre-se mais duas modificações introduzidas no ordenamento jurídico tributário. A primeira vem revogar o art. 174, § único, I, do CTN, tendo por escopo acabar com o conflito existente entre este diploma e o art. 8º, § 2º, da Lei 6.830/80.
Enquanto a Lei de Execuções Fiscais determina que o lapso prescricional se interrompe pelo despacho que ordena a citação, o CTN traça regra diversa, admitindo-se a interrupção da prescrição apenas a partir da citação pessoal feita ao devedor. Visando, pois, por fim à celeuma criada em torno de tal divergência, uns apontando a solução pelo lado da hierarquia das leis, outros pela especificidade das matérias, preceitua o art. 49 do projeto em debate que a fluência do prazo de prescrição será interrompida pela decisão interlocutória do Juiz que ordena a citação.
Também o art. 40 da Lei 6.830/80 sofreu considerável alteração, não mais subsistindo a absurda regra da imprescritibilidade da ação quando, no curso da execução, não era o devedor localizado ou não haviam bens a serem penhorados. O art. 51 do projeto estipula o prazo prescricional de 5 (cinco) anos, após o qual se findará o direito de ação da Fazenda Pública.
Aí estão, portanto, algumas das principais regras que formam o conteúdo do “Código de Defesa do Contribuinte”, projeto de lei complementar em análise no Congresso Nacional, que em caso de aprovação, provocará inúmeras inovações na área administrativo-tributária, diga-se de passagem, absolutamente importantes para o aperfeiçoamento do regime democrático de direito em que vivemos.
Francisco Ramos Mangieri é Diretor da Div. Rec. Mobiliárias da
Secretaria de Economia e Finanças da Prefeitura Municipal de Bauru.