por José Levi Mello do Amaral Júnior
É máxima corrente: presume-se constitucional toda lei. Em verdade, a doutrina clássica vai mais além: a lei não se presume válida; a lei é válida até que algum órgão competente decida o contrário (BITTENCOURT, Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, 2a edição, Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 95-96). Esta forma de colocar as coisas tem uma virtude: enfatiza a autoridade da lei.
A lição parece esquecida – ou superada – no Direito brasileiro. Vive-se um império da inconstitucionalidade. O princípio foi invertido: presume-se a inconstitucionalidade das leis, o que não é, necessariamente, ruim.
Desde a Lei 7.676, de 6 de outubro de 1988 (primeira lei posterior à Constituição de 1988) até a Lei 11.111, de 5 de maio de 2005, foram editadas 3.436 leis ordinárias federais. No mesmo período, foram ajuizadas no STF 3.487 ações diretas de inconstitucionalidade. Em outras palavras: para cada lei promulgada, houve uma ação direta ajuizada…
O dado é somente uma aproximação ilustrativa porque:
(1) diversas leis não admitem ação direta (são “atos de efeitos concretos”);
(2) muitas das ações diretas são relativas a emendas constitucionais, leis complementares, medidas provisórias e leis estaduais;
(3) há leis que são impugnadas por mais de uma ação direta; etc.
De toda sorte, o dado mostra o furor de impugnação contra atos normativos, bem assim o espaço que há para discussão quanto à constitucionalidade ou não desses. Ora, neste contexto, parece incoerente cogitar de uma presunção de constitucionalidade…
Diversos fatores explicam o fenômeno:
(1) a inflação legislativa (proliferação excessiva de leis);
(2) o casuísmo e o atropelo com que muitos atos normativos são concebidos (já ironizava Otto von Bismarck: “se o povo soubesse como são feitas as salsichas e as leis…”);
(3) a constitucionalização de diversos temas (esgaçarmento da “matéria constitucional”);
(4) a ampla abertura que a Constituição de 1988 permitiu ao controle concentrado da constitucionalidade (art. 103 da Constituição de 1988).
Hans Kelsen, ao descrever o controle concentrado de constitucionalidade, recomenda sejam legitimados diversos entes, órgãos, grupos e autoridades para a deflagração do controle. Discute, também, a conveniência ou não de uma “ação direta popular”, confiada a qualquer cidadão. Conclui pela sua não recomendação, para que não haja comprometimento da segurança jurídica em função, precisamente, de um número desmedido de impugnações em juízo (KELSEN, Hans. La garanzia giurisdizionale della costituzione. in La giustizia costituzionale, Milão: Giuffrè, 1981, p. 194).
Por outro lado, Kelsen insiste, com reforçada ênfase, no papel da jurisdição constitucional enquanto instância de proteção das minorias parlamentares (qualificadas por um número mínimo de parlamentares) contra eventuais abusos — inconstitucionalidades — perpetrados pela maioria parlamentar do dia (KELSEN, op. cit., p. 196 e 201-203).
A Constituição de 1988 radicalizou a legitimação das minorias parlamentares. Qualquer partido político que tenha representação em uma das casas do Congresso Nacional pode ajuizar ação direta, ainda que a respectiva representação seja por meio de um único parlamentar, a chamada “unoria” (MACIEL, Marco Antônio de Oliveira. Entrevista à Revista IstoÉ do dia 21de outubro de 1998).
Na prática brasileira, os grandes partidos políticos, quando na oposição, fazem amplo uso da ação direta contra o Governo do dia. O PSDB e o PFL, por exemplo, já ajuizaram no STF 35 ações diretas contra atos normativos do Governo Lula. Outro dado curioso: das 225 ações diretas intentadas pelo PT no STF (aí incluídas as que atacam atos normativos federais e estaduais), 223 são anteriores às eleições de outubro de 2002. Na transição (que, registre-se, foi exemplar), não houve mais inconstitucionalidades…
Há questões relativas ao embate político que chegam por vias outras ao Poder Judiciário. É o caso, por exemplo, dos mandados de segurança relativos à instalação da CPI dos Bingos e aos hospitais cariocas.
A judicialização da política, com a respectiva e crescente politização do Poder Judiciário, em especial do STF, é fenômeno cada vez mais evidente (a propósito, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Poder Judiciário na Constituição de 1988. Judicialização da política e politização da Justiça in Aspectos do direito constitucional contemporâneo, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 214).
Vejam-se, por exemplo, as discussões que os critérios de relevância e urgência das medidas provisórias geram no STF (AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Medida provisória e a sua conversão em lei, São Paulo: RT, 2004, p. 163).
Tanta discussão, é verdade, fragiliza – ou, até mesmo, inverte – a presunção de constitucionalidade das leis. Ainda assim, o debate é muito bom e saudável para a sociedade e para o próprio Governo do dia. A decisão do STF – seja ela pela constitucionalidade, seja ela pela inconstitucionalidade – espanca dúvidas acerca do acerto jurídico da matéria posta em juízo, o que vem ao encontro da segurança jurídica.
Ademais, levar uma discussão que até então era travada no Congresso Nacional para o Poder Judiciário em geral e para o STF em particular (o que implica verdadeira “prorrogação” ou “terceiro tempo” do jogo democrático), confere ainda mais legitimidade ao debate e à decisão impugnada.
Há, nisto tudo, demonstração de maturidade democrática. O que não pode ocorrer é a partidarização (o que é muito diferente de “politização”) do Poder Judiciário.
Fonte: Revista Consultor Jurídico