Sérgio Torres Teixeira*
SUMÁRIO: I – INTRODUÇÃO. II – APLICAÇÃO DO DIREITO PELO MAGISTRADO. III – PRÁTICA JUDICANTE E CIÊNCIA EMPÍRICA. IV – VISÃO SÓCIO-JURÍDICA DA ATIVIDADE JUDICANTE: CONCLUSÕES
I. INTRODUÇÃO
O magistrado é, sem sombra de dúvida, o agente político menos compreendido no contexto do Estado moderno.
Exerce uma função quase divina, a de julgador, mas é, antes de tudo, um ser humano, falível como todo homem. Exigem dele, no exercício do seu munus, uma neutralidade absoluta, esquecendo que, como homem, jamais poderá se neutralizar ao ponto de ignorar por completo os valores que formam o seu ser. Mesmo quando julga em desacordo com a sua vontade particular, mas em consonância com a Lei, o juiz está refletindo valores pessoais, como aquele que coloca acima do seu próprio sentimento o dever de julgar em harmonia com a legislação vigente.
Para alguns críticos, o juiz deve se restringir a ser um simples aplicador das leis, um autômato, mantendo-se absolutamente neutro no exercício da sua atividade judicante. A jurisdição, na sua versão contenciosa1 , se resumiria a ser a função pela qual o Estado-Juiz realiza o direito objetivo existente, efetivando-o diante de um caso concreto envolvendo um conflito de interesses submetido a sua apreciação. O juiz, nesse sentido, seria um autômato.
Para outros, deve participar ativamente na realização do direito, imprimindo nas suas sentenças o sentimento de justiça consagrado pela sociedade a que serve, mesmo que não refletido de forma explícita no direito positivo consagrado pelo Estado.
Duas visões, uma só realidade.
O presente estudo se destina a discutir, de forma direta e objetiva, a atuação do magistrado dentro de uma perspectiva sócio-jurídica, analisando a atividade judicante na aplicação do direito e nas suas relações com a ciência empírica, culminando com considerações conclusivas oriundos de uma visão crítica do exercício da função jurisdicional. A matéria é de difícil trato, pois envolve questões usualmente deixadas à margem das principais discussões acerca da dimensão da magistratura. A importância da respectiva temática, especialmente nessa época de reformas institucionais e de mudanças externas, torna a sua discussão recomendável, senão imprescindível, tanto para os integrantes do Poder Judiciário, como para aqueles que deles dependem para tornar a vida em sociedade menos conflituosa e mais tolerável.
À missão.
II. APLICAÇÃO DO DIREITO PELO MAGISTRADO
É comum encontrar na literatura jurídica o conceito de juiz como a pessoa que, representando o Estado, é encarregada de aplicar o direito. Esta atividade, contudo, não é privativa do magistrado.
Na realidade, incumbe a todos os agentes sociais a aplicação do direito. A ordem jurídica, compreendida como um complexo de normas que tem por objeto assegurar que os comportamentos sociais se ajustem às expectativas socialmente estabelecidas, existe para ser observada. O Direito, assim, existe para ser obedecido, ou seja, para ser aplicado. Todos os agentes, ao agirem no meio social, seguem regras de conduta previamente estipuladas, e, por conseguinte, aplicam o direito.
A expressão aplicação do direito, no entanto, revela um sentido específico quando analisada à luz da atividade jurisdicional.
Ao magistrado, enquanto membro do Poder Judiciário encarregado do exercício da função jurisdicional, está reservada a grande responsabilidade de aplicar o direito ao caso concreto para compor os litígios submetidos à sua apreciação. Para o juiz, como órgão judicante, a aplicação do direito não corresponde a um ato praticado por um homem comum, mas sim a uma imposição de uma diretriz como decorrência de competência legal2 .
Leciona o mestre Carlos Maximiliano3 , que a aplicação do direito consiste no enquadrar um caso concreto em uma norma jurídica adequada, submetendo às prescrições do ordenamento normativo uma relação da vida real, tendo por objeto o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano.
Denomina-se subsunção o enquadramento das situações fáticas nos conceitos normativos. A norma jurídica, por ser de índole genérica, procede por abstração, referindo-se a uma série de situações hipotéticas e não a casos concretos, fixando tipos. Devido a tal abstração, ocorre o afastamento da norma da realidade empírica, gerando uma distância entre normas e fatos. Mas tal distância não é absoluta, pois a nota de tipicidade que caracteriza a norma genérica permite o enquadramento dos fatos nos conceitos normativos. Incumbe ao Juiz, assim, realizar esse procedimento de subsunção.4
A tarefa do magistrado, no entanto, não se limita a uma mera pesquisa da relação entre o caso concreto e o texto normativo abstrato. A atividade judicante não corresponde a um simples silogismo envolvendo a norma genérica e o fato (conflito) social, no qual a norma jurídica geral e abstrata é a premissa maior, o caso (e seus fatos) a premissa menor, e a decisão judicial a conclusão.5
O juiz não é um mero autômato de decisões, como sustentava Montesquieu6 .
O professor João Baptista Herkenhoff, na sua monografia COMO APLICAR O DIREITO, defende a tese de que o Juiz, ao aplicar o Direito, deve agir simultaneamente sobre três perspectivas distintas: axiológica, fenomenológica e sociológica-política. Na perspectiva axiológica, o magistrado ajusta a norma a seus valores, a sua consciência, a seu mundo. Na perspectiva fenomenológica, ajusta a norma à percepção da pessoa submetida a julgamento. E na perspectiva sociológica-política, o juiz promove a abertura da lei ao fato social, deixando de perceber apenas o subsistema jurídico para apreender, de forma mais ampla, todo o sistema social e neste atuar, assumindo a sua decisão um caráter essencialmente político.
Existem inúmeros argumentos contrários à admissão da valoração da norma pelo magistrado, contestando a validade da vertente axiológica. Os juristas que se opõem a tal tese sustentam que o juiz não pode transcender a norma, encontrando-se sujeito ao seu império, subordinado às suas letras. Como indivíduo, poderia discordar da “justiça” da norma, mas como órgão jurisdicional estaria obrigado a aplicá-la ao caso concreto submetido ao seu julgamento, ainda que sob o peso de um drama íntimo7 . Admitir o contrário, reconhecer a validade da valoração fundada na consciência do magistrado, seria instaurar a arbitrariedade, assegurar a insegurança jurídica, e consagrar a pior das ditaduras, a do Judiciário.
Considerável parte dos juristas modernos, no entanto, defende a valoração fundada na pauta axiológica do juiz8 .
Herkenhoff apresenta cinco constatações justificadoras da pertinência da perspectiva axiológica. Primeiro, o juiz é um portador natural de valores, um ente trabalhando continuadamente com uma tabela axiológica, e, como consequência, sempre impregna as suas decisões de tais juízos. Segundo, os critérios axiológicos acompanham o ofício do magistrado, tanto nas hipóteses nas quais a lei defere a solução à discrição judicial, como nos casos nos quais, dentro de parâmetros normativos expressos, a margem de discrição é consideravelmente ampla. Terceiro, a sentença judicial, em toda e qualquer situação, revela um conteúdo axiológico, subjetivo e político. Quarto, ao procurar penetrar na inteligência da norma, como editada, o juiz não foge de uma apreciação subjetiva, pois esta fixação na norma igualmente corresponde a um posicionamento ideológico. E, por último, enquanto o magistrado aprisionado à lei atua como servo das forças conservadoras, o juiz que assume uma pauta axiológica e uma visão sócio-política de compromisso do Direito com o povo serve às forças do progresso e da renovação.
Para uma compreensão global da matéria em tela, revela-se imprescindível distinguir o extralegal do antijurídico. Torna-se oportuno, assim, transcrever algumas linhas do mestre Roberto Piragibe da Fonseca, lançadas na obra INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO (Editora Freitas Bastos, 1975, p.142):
“Uma solução extralegal pode ser antijurídica e pode não ser. Será, quando a lei vigente coincide com o bem comum, mas não será quando tal coincidência não se verifica. Ora, neste último caso, é ser realmente vítima do ‘fetichismo da lei’ supor que não existe nuança entre a submissão à lei, de um lado, e v.g., um despotismo aluidor de direitos, de outro lado, porque, na realidade, entre uma coisa e outra situa-se uma imperiosa ordem metajurídica, reclamando pelo bonum commune que por ser derrogadora da lei vigente, nem por isso pode ser tachada de despótica. Ordem jurídica é categoria, mas lei vigente é acidente. Assim, momento há, de fato, em que no apelo paradoxal a uma solução extralegal poderia residir a melhor e mais eficiente defesa da ordem jurídica, bem mais precioso, não cabe dúvida, que um ‘legalismo’ impotente e desmoralizador capaz de conduzir dada sociedade ao pior dos piores, isto é, à anarquia, a uma desordem não apenas destruidora da lei corrompida, em que tantos pensam, mas denegadora do próprio Direito, em que entretanto poucos parecem pensar.”
Não pode o juiz, portanto, ficar aprisionado a dispositivo legal vítima da imperfectibilidade humana.9
Dentro da perspectiva axiológica, assim, o magistrado realiza o direito mesmo quando julga contra a lei vigente, nas hipóteses nas quais esta vai ao encontro de princípios de justiça cognoscíveis. O juiz tem, pois, a missão de julgar de acordo com aquilo que acredita ser o justo, valorando a norma positiva e desvendando através de seu ofício os caminhos que levam ao julgamento do caso segundo o ideal de justiça, mesmo quando a sua decisão escapa ao rigor literal da lei. Sobre todos os deveres do magistrado, assim, tem precedência o dever de decidir conforme a justiça10 . E é a própria ordem jurídica que impõe ao magistrado a coerência axiológica, isto é, a harmonização de valorações para evitar a supremacia de regras colidentes com tal ideal. No sistema jurídico brasileiro, por exemplo, há dispositivo legal expresso que serve de respaldo à crítica valorativa da norma pelo magistrado, consagrando o elemento teleológico.
De acordo com o artigo 5º. da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n. 4.657 de 04.09.42), Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
Ao exercer a função jurisdicional e compor os litígios submetidos à sua apreciação, assim, o magistrado brasileiro deve sempre (na aplicação da lei) atender às exigências últimas e gerais do bem comum e às finalidades sociais almejadas pela norma, dever de ofício este que abre o caminho para a crítica valorativa das normas jurídicas pelo juiz, uma vez que a própria definição de bem comum e de fins sociais corresponde a uma percepção axiológica11 .
A perspectiva axiológica defendida pelos juristas e consagrada no dispositivo em análise, entretanto, não instaura um regime de arbitrariedade judicial. Não se nega que o magistrado deve manter-se dentro do sistema jurídico, pois desapareceria por completo qualquer espécie de segurança jurídica se cada juiz pudesse, a seu bel prazer, desprezar as diretrizes do ordenamento normativo. Afirmam os adeptos dessa corrente apenas que o magistrado tem uma considerável cota de arbítrio dentro do próprio sistema legal. A norma positiva seria apenas o núcleo central do ordenamento12 . Mesmo mantido tal paradigma, no entanto, amplíssimas são as possibilidades valorativas do juiz, havendo sempre recursos para o magistrado sentenciar em paz com a sua consciência, usando com criatividade sua cota de arbítrio em homenagem à primazia dos valores humanos que, em última análise, lhe incumbe preservar.13
A aplicação do Direito na perspectiva fenomenológica foi inicialmente analisada pelo jusfilósofo alemão Adolf Reinach14 . De acordo com a sua doutrina, o Direito, como as demais coisas, possui uma essência que permanece inata, não obstante as disposições do direito positivo, mesmo quando este se choca com aquela essência. Necessário seria, assim, através da intuição, apreender essa essência para conceber uma teoria apriorística do Direito.
Através da visão fenomenológica, o magistrado procura compreender o homem a partir de sua facticidade, da sua condição humana. Desce ao homem julgado, à pauta de valores deste, fugindo da violência de exigir que o homem julgado suba à pauta de valores para as quais a lei foi feita. A partir do momento no qual ingressa no mundo dos litigantes, examinando as circunstâncias geradoras do conflito entre as partes, apreciando as suas motivações, o julgador entra no campo fenomenal, um verdadeiro universo de elementos aguardando a apreciação do magistrado.
Ao analisar determinado caso e pesquisar os elementos peculiares à situação concreta (apreciando a vida dos litigantes, os seus anseios e as suas motivações), o magistrado entra no campo fenomenal, passando a apreender a questão como ela realmente é, e não apenas como a lei a descreve.
Esse campo fenomenal, por conseguinte, escapa aos comandos da lei, por ser aquele individual, peculiar a cada caso, ao contrário da norma legal, genérica e insensível. Incumbe ao juiz, assim, penetrar em tal esfera em cada caso concreto, indo além da letra fria da lei para alcançar uma visão fidedigna da realidade fática pertinente.
A aplicação do Direito numa perspectiva sociológica-política, por seu turno, pressupõe uma interpretação igualmente sociológica-política da norma que regerá a espécie concreta. E a base teórica para a assunção de uma postura de tal natureza é, essencialmente, a visão do direito como fato social.
O sistema jurídico não corresponde a um corpo fechado, mas sim aberto, penetrado pelo conjunto do sistema social. O legislador não detém o monopólio do Direito, nem a lei revela todo o Direito. A decisão judicial, portanto, não é um elemento isolado, vinculado apenas às normas positivas. É igualmente condicionada pelos inúmeros fenômenos sociais e produz efeitos além das fronteiras do sistema jurídico positivo.
O Direito, enquanto fato social, não se esgota nas definições dogmáticas do universo jurídico. Corresponde, isso sim, ao que realmente ocorre na sociedade. E, como consequência dessa percepção, evidencia-se na sociedade uma pluralidade de ordenamentos jurídicos.
Efetivamente, inúmeros são os pesquisadores que apontam a existência de sistemas jurídicos extra-estatais.15
O magistrado, destarte, ao decidir um caso concreto submetido à sua apreciação, não deve se restringir às fronteiras do direito oficial. Deve também acolher valores e costumes peculiares à situação sub judice, descobrindo e valorando o chamado Direito popular, prestigiando os valores consagrados pelo povo, privilegiando a realidade cultural local até mesmo contra a letra fria da lei.
Para desempenhar este mister, o juiz terá que ser simultaneamente um cientista e um artista. Cientista para, à luz dos dados oriundos dos diversos ramos das ciências sociais (Economia, Sociologia, Política, Psicologia etc.), compreender o Direito como um campo vinculado às demais áreas da estrutura social. Artista para, mediante um poder criador e uma sensibilidade humana ligada à alma popular, sentir e traduzir os anseios do povo.16
Dentro desse contexto, o fruto do seu labor, a sentença judicial, corresponde a um produto do contexto social global.
Diversos doutrinadores, no entanto, adotam posicionamento contrário à chamada aplicação sociológica-política do Direito. Para os adeptos dessa corrente negativista, o magistrado não tem o poder de afastar a incidência da lei ao caso concreto em nome do “Direito vivido pelo povo”. Incumbe unicamente ao legislador, através de reformas legislativas, a tarefa de compatibilizar o Direito com a realidade social. Os magistrados estatais, sequer escolhidos (eleitos) pelo povo, não podem invocar uma suposta capacidade para traduzir aspirações populares. É um erro erigir o subjetivismo do juiz como diretriz, em detrimento do princípio da segurança jurídica.
Tais objeções, por outro lado, revelam-se perfeitamente refutáveis.
Efetivamente, incumbe aos órgãos legiferantes a tarefa de elaboração das leis. Entretanto, devido a sua abstração, a regra legal estabelece apenas uma diretriz geral, jamais abrangendo por completo a imensurável pluralidade de situações sociais. Na edição da lei, termina a tarefa do legislador, e na generalidade do comando, encerra a regra legal a sua função. Por mais minucioso que seja, o legislador não esgotará de forma explícita as exceções que necessariamente devem ser admitidas na aplicação do Direito, mesmo porque a norma estática não pode acompanhar a mutabilidade social.
Incumbe ao juiz aplicador do Direito, como cientista (sociólogo, político, psicólogo etc.) e como artista (dotado de um poder criador), realizar a justiça na composição da lide, ultrapassando a insensibilidade da lei para solucionar situações inalcançadas pela previsão normativa e aperfeiçoar o sistema jurídico. Não cabe ao magistrado revogar a lei, mas apenas afastar a sua incidência diante de um caso concreto no qual a sua aplicação resultaria numa injustiça, atingindo o sentimento de “justo” do julgador e do povo. A função jurisdicional, assim, representa uma função de humanização da ordem jurídica, notadamente quando exercida pelo juiz de primeira instância, testemunha ocular dos sentimentos que os autos dos processos retratam apenas timidamente. Afastando-se desse papel, o magistrado abandona a sua função humana e social.
É verdade, ao menos no sistema judiciário brasileiro, que os juízes togados não são eleitos pelo povo17 . Mesmo não sendo oriundos diretamente da vontade popular, no entanto, os magistrados traduzem aspirações dos integrantes da sociedade, devido ao contato direto e contínuo com os dramas da população.
O juiz há de ser um homem aberto ao mundo, com múltiplos interesses. Não basta ser um estudioso da ciência jurídica. É preciso ser informado sobre todas as coisas, participar da vida da comunidade. A interpenetração dos campos das ciências sociais exige que os magistrados sejam homens do mundo, em interação constante com os agentes que compõem o meio no qual exerce o seu mister. E tal relacionamento com a população torna o juiz um legítimo representante do povo.18
A aplicação sociológica-política do Direito, por outro lado, não destina-se a elevar o subjetivismo como princípio, mas apenas reconhece como subjetivo todo e qualquer julgamento proferido por um magistrado.
A sentença judicial, em qualquer hipótese, revela um teor subjetivo e político. Inexiste uma “neutralidade ideológica ou política” no exercício da função judicante, pois mesmo o uso do rigor lógico na aplicação do Direito leva o aplicador “insensível” a ser considerado um fiel servo dos grupos sociais dominantes19 . Seja qual for o conteúdo da decisão, o julgador necessariamente adota um posicionamento ideológico que demonstra o cunho político do julgamento.
Na perspectiva sociológica-política, o subjetivismo não se torna preceito, pois não se busca impor na sentença os valores pessoais do juiz. Procura, isto sim, conscientizar o magistrado sobre a necessidade de traduzir através da sua função o sentimento de justiça da comunidade, levando-o a usar como fundamentos das suas decisões não apenas referências doutrinárias e jurisprudenciais, mas também a própria vida dos jurisdicionados sobre os quais atua.
A argumentação referente à “insegurança jurídica”, gerada pelo receio de um subjetivismo arbitrário, revela-se igualmente infundada.
Dois expedientes adotados pelos modernos sistemas judiciários previnem o domínio do arbítrio20 . Primeiro, o sistema do duplo grau de jurisdição. Através dos recursos judiciais, torna-se possível reformar na instância ad quem eventual deformação do Direito decorrente de uma visão excessivamente “pessoal”. Segundo, mediante a obrigatoriedade da motivação da sentença. Ao obrigar o juiz a explicitar a fundamentação do seu convencimento, o sistema judiciário previne eventual arbítrio e reforça as possibilidades de exercício eficaz de uma magistratura científica e criativa.
De qualquer modo, salientam os defensores da perspectiva sociológica-política, a segurança jamais poderia ser erigida ao status de valor supremo, em detrimento da Justiça, esta sim um valor maior. Uma das funções do Direito é preservar a segurança, mas o sentido do “justo” corresponde a um valor social superior àquele. De forma alguma, assim, poderia se admitir, em nome da segurança, a consagração da injustiça. A prevalência absoluta da segurança, mesmo nas hipóteses nas quais o acolhimento do Direito estatal vai ao encontro dos reclamos de Justiça do povo, interessa primordialmente às classes dominantes.21
Na realidade, pregam esses juristas, a aplicação sociológica-política assegura a segurança a todos os integrantes da sociedade, e não apenas àquelas classes que fizeram a lei. Por ao lado essa perspectiva seria ter uma visão míope da realidade social, desconsiderando-se a tensão natural existente entre a pluralidade de ordenamentos jurídicos e ignorando-se os conflitos entre a ordem estabelecida e a ordem almejada. Mediante a aplicação sociológica-política, estabelece-se uma maior aproximação entre o ordenamento positivo e a realidade social, minimizando a tensão entre o Direito estatal e o Direito extra-estatal, diminuindo o abismo que há entre as leis do legislador e os valores do povo.
Somente através dessa perspectiva, o magistrado poderá contemplar a multiplicidade de fatos sociais vinculados ao caso concreto submetido a seu julgamento, e, assim, realizar através da sua sentença o ideal de justiça que representa a essência da função jurisdicional.
III. PRÁTICA JUDICANTE E CIÊNCIA EMPÍRICA
Revela-se de fundamental importância, dentro de uma perspectiva sócio-jurídica da atividade jurisdicional do magistrado, a análise da prática judicante diante do moderno mundo científico e tecnológico.
A relevância da abertura mental do julgador a dados de ciência empírica é incontestável. Somente através de uma apreciação global, conforme exposto no capítulo anterior, poderá o juiz cumprir na íntegra o seu mister de realizar a justiça.
Segundo o professsor Cláudio Souto, no entanto, uma abertura significativa do magistrado ao mundo científico e tecnológico, ainda está por vir.22
O principal obstáculo à aplicação ampla de dados empíricos na prática judicial é o formalismo jurídico reinante nas faculdades de Direito e nos tribunais forenses. Na própria educação do aprendiz de Direito, registra-se um culto excessivo às codificações legislativas, valorizando quase que unicamente a Dogmática Jurídica, ao invés de incentivar estudos mais profundos acerca da Filosofia do Direito e, especialmente, da Sociologia Jurídica. Esta última, salienta-se, uma ciência essencialmente empírica23 .
A reduzida importância dada a essa disciplina de cunho empírico nos currículos educacionais, por seu turno, leva os novos magistrados a ingressarem na profissão (ou para alguns, verdadeiro sacerdócio) sem uma mentalidade científica substantiva capaz de levá-los a uma abertura sistemática aos dados científicos. Ou seja, sem a preparação indispensável ao uso adequado de métodos e técnicas de pesquisa empírica.
O acentuado formalismo da educação jurídica, por mais importante que seja o saber lógico-dogmático, dificulta o surgimento de um verdadeiro juiz-cientista, pois deixa ao lado uma das notas características da modernidade: a ênfase na ciência empírica e na sua tecnologia.24
Outro empecilho de igual grandeza é o formalismo jurídico registrado na prática dos tribunais conservadores. Os escalões superiores de diversas cortes de Justiça igualmente revelam um culto ao Direito formal, em prejuízo ao chamado Direito social. E a influência dessa praxis é considerável.25
Mesmo em face a esse purismo lógico-formal encontrado nas bancas universitárias e nos recintos forenses do país, no entanto, é possível encontrar a aplicação de dados de ciência empírica às decisões judiciais.
Toda sentença judicial apresenta alguma referência ao social. O grau dessa referência, no entanto, vincula-se ao grau de abertura do magistrado para o social. Assim, quanto mais aberto para o social for a sua formação jurídica, maior o grau de abertura de suas decisões para os dados científico-empíricos ao seu redor.
Essa abertura do juiz para o social, segundo o mestre Cláudio Souto, no entanto, não deve se limitar a uma mera “abertura para o fático-social visto apenas sob a ótica do senso comum e/ou sob a perspectiva de ideologias pouco críticas de si mesmas”. É imprescindível prosseguir e aprofundar tal abertura na aplicação de conhecimentos técnico-científicos. Conforme leciona Souto26 :
“A abertura do magistrado para o social terá de ser, portanto, ao mesmo tempo, abertura para o científico-substantivo em geral, e para o científico-social em particular. Na medida, naturalmente, em que haja dados científicos. Que a ideologia tenha seu indeclinável espaço onde não haja ciência empírica disponível. Mas que tenha seu espaço diminuído ao máximo possível no interior da construção efetivamente científico-substantiva, a qual o juiz moderno não pode desconsiderar, quando existente e pertinente ao caso, sob pena de irracionalidade substantiva da sua decisão.”
Salienta-se, no entanto, que abertura social do magistrado, ao contribuir para libertar o juiz do formalismo exacerbado e do “fetichismo legalista” (e, conseqüentemente, da identificação entre lei estatal e Direito), não submete os litigantes ao subjetivismo judicial. Na realidade, quanto maior a abertura do juiz ao científico-substantivo, menor será a influência do seu subjetivismo ideológico. Ao decidir de acordo com dados científico-empíricos, o magistrado apresenta uma base objetiva amplamente aferível. Mesmo um julgamento contra legem, mas formulado em respeito ao sentimento de Justiça e com lastro em informações de ciência empírica, revela-se aceitável pela parte sucumbente em virtude da testabilidade dos dados nos quais o magistrado fundamentou a sua decisão. É inquestionável que um fundamento testável por métodos e técnicas de pesquisa empírica tende a ter uma aceitação consideravelmente mais ampla que outros tipos de fundamentos que não guardam essa característica de testabilidade, como fundamentos meramente filosóficos ou ideológicos.
A aplicação de dados da ciência social empírica na solução de casos concretos, assim, reduz o arbítrio judicial por dotar o magistrado de um instrumento teórico-social objetivo que a lógica jurídica isoladamente não pode oferecer em face à sua índole formal.
Em que pese a força da modernidade, entretanto, o mundo da prática judicante ainda não apresenta avanços científico-tecnológicos significativos.
No Brasil, a abertura dos juízes a dados científicos substantivos para a fundamentação das suas sentenças ainda ocorre de uma forma limitada e eventual.
Mas há registro de evolução.
Anteriormente, a abertura do magistrado ocorria exclusivamente à medida em que o mesmo procurasse informar-se autodidaticamente sobre o uso de técnicas de pesquisa empírica. Mesmo com essa exigência, no entanto, os estudos desses métodos científicos floresceram. Junto com a difusão desses estudos informais de natureza sociológico-jurídica, algumas faculdades de Direito começaram a oferecer nos seus currículos a disciplina de Sociologia do Direito27 . Atualmente, mais de quatorze universidades a incluem nos seus cursos de graduação, e diversas outras nos currículos de cursos de pós-graduação.
Outro dado significativo é a inclusão da disciplina nos cursos das Escolas Superiores da Magistratura, instituições criadas para o fim específico de preparar os futuros magistrados para o exercício da função judicante.
A difusão de estudos de tal natureza ajudou a criar uma nova geração de juízes, formado por juristas menos apegados ao formalismo jurídico tradicional, com uma mentalidade científico-empírico que possibilita uma maior abertura à aplicação de dados científicos no exercício da função judicante. São magistrados que decidem de acordo com fundamentos lógico-formais e com fundamentos científico-empíricos, e não apenas com os primeiros. Julgam sob uma ótica social do Direito, buscando através de todos os caminhos disponíveis atingir o ideal de justiça consagrado por todo o povo28 .
O problema da aplicabilidade de tais métodos à praxis judicante, conclui Cláudio Souto29 , não é o de que essa aplicação não exista, mas sim o da extensão em que existe atualmente em comparação com a extensão que poderia racionalmente existir, pois apesar do surgimento dessa nova safra de juízes-cientistas, a maior parte da magistratura nacional continua envolta no pensamento essencialmente lógico-dogmático.
Atualmente, destarte, o problema de uma atividade jurisdicional aberta ao conhecimento substantivo técnico é menos de conhecimento que de mentalidade. Ou, como leciona Souto, “de um mínimo de mentalidade científica que implique a abertura aos dados científicos em geral, a serem fornecidos pelos respectivos especialistas, sem prejuízo da imprescindível e específica atividade lógico-normativa”.
Há ainda, sem sombra de dúvida, um longo caminho a percorrer até se completar uma abertura plena do magistrado ao social.
Mas ao menos os primeiros passos já foram dados.
IV. PERSPECTIVA SÓCIO-JURÍDICA DA ATIVIDADE JUDICANTE: CONCLUSÕES
No exercício de sua função judicante, incumbe ao magistrado compor os conflitos sociais submetidos à sua apreciação, aplicando o direito ao caso concreto para realizar a Justiça. Ao atuar, no entanto, o juiz não se restringe à atividade de subsunção. O seu mister não se resume a um simples processo de silogismo mecânico.
Para cumprir integralmente a sua função de consagrar o “justo”, o magistrado não pode se limitar à aplicação “cega e direta” da lei. Aplicar a lei nem sempre equivale a aplicar o direito, pois lei estatal e direito são elementos distintos que apenas em alguns momentos se confundem.
Aplicar o direito, numa visão sócio-jurídica30 , é aplicar um padrão de acordo com o conhecimento científico-empírico atual da realidade e de acordo com o sentimento de dever ser do homem.
Ao aplicar o direito no julgamento de casos concretos, o magistrado deve agir simultaneamente sob três perspectivas: axiológica, fenomenológica e sociológica-política. Deve o julgador ajustar a norma incidente sobre o caso aos seus valores e à sua consciência, bem como à percepção dos próprios litigantes, examinando a regra à luz do mundo dos oponentes.
E, mais importante ainda, deve o juiz promover a abertura da lei ao fato social, visualizando a norma em face à realidade sócio-jurídica e não apenas no plano lógico-dogmático.
A abertura do juiz para o social, portanto, revela-se um pressuposto essencial para a modernização da função jurisdicional.
Revela-se imprescindível, no atual mundo científico-tecnológico, compreender a atividade judicante não como uma técnica formal, meramente ideológica, mas como uma técnica científico-substantiva, exigindo a aplicação de conhecimentos empírico-científicos. Somente com o uso desses recursos de ciência empírica poderá o juiz visualizar o Direito em toda a sua dimensão social, ultrapassando o rigor do lógico-dogmático para vislumbrar o fenômeno jurídico como este se apresentar para toda a sociedade, ou seja, para focalizar com lentes científicas o sentimento de justiça consagrado pelo povo.
O moderno magistrado, merece ser salientado, há de ser, simultaneamente, um cientista e um artista.31
Para tanto, necessário se torna superar o formalismo tradicionalmente dominante nas faculdades e nas cortes, com o seu culto ao positivismo e ao “fetichismo legalista”, estimulando a difusão de estudos formais (acadêmicos) e informais (autodidáticos) de índole sociológica jurídica, valorizando a ciênca da Sociologia do Direito na preparação do futuro magistrado.
Através dessa nova visão, haverá a diminuição do conteúdo ideológico da sentença judiciária, com o consequente crescimento do seu teor empírico-científico, resultando numa maior racionalidade substantiva da decisão judicial. Julgando cientificamente, com base em dados empíricos das ciências sociais, os juízes de hoje conseguirão escapar do castelo lógico-formal ao qual se encontravam aprisionados.
Como leciona o professor Cláudio Souto32 :
“A magistratura brasileira já enveredou pelo caminho da sua abertura não só para o humano, como também para as ciências empíricas do homem. A abertura para o humano (que nenhum formalismo pode impedir no plano fático), de si só, se marca acentuadamente do sentimental. A abertura para as ciências do homem, e para o científico-empírico em geral, tem marca acentuada da razão, corrigindo polarizações afetivas de natureza romanticamente emocional. É preciso ligar sentimento – sentimento de agradabilidade em face ao que se acha que deve ser – com razão científico-empírica. Pois aí estará substantivamente o direito como fenômeno mental e como fenômeno social. Aí estará a informação substantivamente jurídica do legislador e do juiz modernos. Aí estará o máximo possível de diminuição do condicionamento ideológico (inclusive dogmático-formalista) do legislador e do juiz.”
Essa abertura pela via científico-empírica não corresponde apenas a uma necessidade de evolução da atividade judicante, como um dos diversos processos interativos sociais. Apresenta-se, primordialmente, como elemento essencial à própria existência do Poder Judiciário.
Inexistindo uma conscientização nesse sentido, prosseguindo a magistratura com uma timidez injustificável diante de uma época caracterizada pela ciência e tecnologia, mantendo os seus olhos vendados para o fenômeno social da ciência substantiva e para os dados disponíveis de ciência empírica, inevitável será o distanciamento do Judiciário em relação à realidade social, culminando com a sua alienação total.
Ou se terá uma sociedade mais justa através da atuação dos juízes, ou não se justificará a existência destes. Se o magistrado falhar sistematicamente no seu mister de promover o “justo”, de consagrar o sentimento de justiça do povo, nada restará de socialmente útil na sua presença. E incumbe ao próprio magistrado, antes de qualquer outro, compreender tal realidade.
O movimento (ainda que incipiente) dos juízes-cientistas, no entanto, acendem as esperanças de que a evolução não tardará.
É o que se espera.
retirado de: http://www.amatra6.com.br/rev61.html