Muito se tem discutido acerca do desenvolvimento do instituto da arbitragem no Brasil. Superado o obstáculo decorrente da questão relativa à constitucionalidade da Lei de Arbitragem pela decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, o instituto da arbitragem vem enfrentando dificuldades em sua utilização, seja em decorrência de decisões administrativas que inquinam de nulidade a cláusula compromissória em contratos envolvendo a Administração Pública, seja em razão de decisões judiciais nesse mesmo sentido que chegam a determinar a suspensão de procedimentos arbitrais já iniciados junto a órgãos especializados no exterior. Este é um aspecto da arbitragem que terá que ser resolvido pelos órgãos administrativos e judiciais, desde que haja uma maior compreensão do instituto.
No entanto, no campo privado, a arbitragem começa a ganhar corpo. Timidamente, é certo, se comparado com o desenvolvimento em outros países. No entanto, sobretudo em operações que envolvem partes mais afeitas à arbitragem, os números indicam uma tendência de crescimento, ainda que longe do que poderia ser a realidade nacional.
O pouco uso da arbitragem, no Brasil, não deve ser debitado ao desinteresse das partes. Somos de opinião que muito se deve ao desconhecimento do procedimento arbitral e do costume de se recorrer ao Poder Judiciário como o foro realmente habilitado para a solução de controvérsias. Sempre nos posicionamos contrariamente ao extraordinário poder da arbitragem de descongestionar as vias judiciais. Em nenhum país do mundo, tem a arbitragem esta função, nem o seu escopo legal de aplicação está a permitir que ela desempenhe tarefa dessa magnitude. Na verdade, o que a arbitragem tem de poderoso é ser um foro especializado para discussão de questões e cadeias contratuais específicas e complexas. A utilização de julgadores especializados na matéria objeto da controvérsia propicia uma melhor decisão; o sigilo na condução de procedimentos arbitrais protege o negócio e a continuidade das relações entre as partes. A arbitragem tem o poder de expurgar da controvérsia o seu aspecto contencioso.
No entanto, o sucesso da arbitragem depende do árbitro ou árbitros a quem se confia a solução da controvérsia. Ele é o centro de todo o procedimento e seu desempenho determina o resultado da solução da controvérsia. Em face desse relevante papel desempenhado, surgem, não raro, questões quanto à conduta do árbitro. Dessa forma, na medida em que entendemos que a conduta é fator primordial para o sucesso de qualquer arbitragem, não podemos nos esquivar, em nome da melhor compreensão do instituto, de abordar a importância da ética no procedimento.
A Lei de Arbitragem foi cuidadosa em estabelecer as regras aplicáveis à nomeação e ao desempenho dos árbitros. O conjunto das disposições legais contidas no Capítulo III da Lei é amplo e capaz de fornecer as diretrizes de conduta e de comportamento tidos como essenciais para a validade da arbitragem. Outra não é a razão de existência das hipóteses que acarretam a nulidade da sentença arbitral, contidas nos incisos (ii), (vi) e (viii) do art. 32. Vale ressaltar, ainda que possa parecer excessivo, que a conduta do árbitro que violar as regras e mandamentos legais poderá levar ao resultado extremo e indesejado que é a nulidade da sentença arbitral.
Assim sendo, para que se evite esse resultado danoso, seja do ponto de vista econômico, seja do aspecto de confiabilidade e perenidade do instituto, necessário se faz que sejam analisados cuidadosamente os dispositivos legais aplicáveis, assim como os princípios que os informam.
Dois conceitos são muitas vezes confundidos e utilizados, na prática, de forma intercambiável. Referimo-nos à independência do árbitro e à neutralidade deste. Estamos diante de uma situação onde não cabe avaliar qual dos dois seja o mais importante. São princípios que caminham lado a lado e interagem. Um deles – a independência – é atributo do árbitro escolhido e diz respeito aos impedimentos para atuar como tal. O outro – o da neutralidade ou imparcialidade – é princípio basilar do procedimento e que se comunica ao árbitro e é diretriz para seu comportamento e conduta durante todo o procedimento. Não necessariamente o segundo é conseqüência natural do primeiro. Por isso, a Lei os elenca em alíneas distintas ao definir os motivos de nulidade da sentença arbitral, além de os distinguir expressamente no art. 14 § 1º. Desrespeitado qualquer deles, a Lei vem em socorro da parte afetada
A independência do árbitro é elemento essencial para que este possa aceitar a sua indicação e nomeado para exercer as funções. Esse princípio é tão relevante para saúde e validade de todo o procedimento que a Lei impõe a ele a obrigação de se manifestar previamente à aceitação, outorga às partes o direito de impugnação, estando ele, ainda, obrigado a declarar a sua falta de independência, caso esta venha a ocorrer no curso da arbitragem. O caso mais evidente de falta de independência é a configuração de um impedimento ou suspeição previsto em lei e as hipóteses de conflito de interesses.
No entanto, casos há em que, embora ausente o conflito ou a suspeição, o árbitro, em face de determinadas circunstâncias, se vê diante do que denominamos de “desconforto ético”. Em nosso entender, o desconforto ético surgirá sempre que incidam, no caso específico, circunstâncias que, a juízo do árbitro, possam levantar dúvidas quanto à sua independência. Trata-se de uma área cinzenta que somente poderá ser dirimida de acordo com a convicção pessoal do árbitro. Nesse sentido, é muito importante que se distingam as duas situações previstas no caput do art. 14 e em seu § 1º. No caput do artigo mencionado, foca a Lei na questão de falta de independência em face da presença de um ou mais impedimentos ou suspeição. No § 1º do artigo, no entanto, a Lei cuida de situação distinta e que se alinha com o nosso conceito de desconforto ético. A Lei determina que o árbitro que, em face de qualquer fato ou circunstância que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência, deverá revelá-los antes de aceitar a sua indicação. Portanto, naquele parágrafo, vai-se além da independência, abrangendo-se fatos ou circunstâncias que possam gerar dúvidas, inclusive, quanto à imparcialidade do árbitro.
Na prática, no entanto, nem sempre é de fácil determinação fatos ou circunstâncias que se enquadrem na hipótese descrita. Nesse caso, nossa recomendação, em nome da preservação da validade da sentença arbitral, é que revele o árbitro, com base em sua consciência e convicção, quaisquer eventos que gerem para ele o denominado desconforto ético. Existindo aos olhos do árbitro receio fundado de que tal ou qual fato ou circunstância possa gerar dúvidas quanto à sua independência, melhor será que ele o revele de imediato, cabendo às partes aceita-lo ou rejeitá-lo com base nos mesmos.
Insistimos na importância do dever de revelar, às vezes esquecido e mal compreendido, mas sempre relevante para a validade de todo o procedimento arbitral.
O escopo do dever de revelar é tão amplo que não abrange ele somente circunstâncias de conflito ou impedimento e de dúvidas quanto à independência e imparcialidade. O dever de revelar se estende a outras áreas que dizem respeito ao perfil do árbitro e de suas obrigações inerentes à função. E estas vamos analisar brevemente.
O primeiro caso se refere à competência do árbitro. É um equívoco se imaginar que apenas advogados possam atuar como árbitros. Na realidade, um tribunal de composição multidisciplinar poderá ser extremamente útil para a solução da controvérsia. Quando das discussões que antecederam a conclusão do anteprojeto de lei, o papel a ser desempenhado pelos advogados no procedimento arbitral foi alvo de calorosos debates. Reconheceu-se, no entanto, que a multiplicidade de formações poderia reverter em benefício do resultado pretendido. Aliás, passados alguns anos, pode-se dizer que o grupo de profissionais envolvido nesses debates não estava equivocado. Na prática, sabe-se de experiências muito importantes da presença de profissionais, que não advogados, em tribunais arbitrais. Portanto, ainda que indicado por uma das partes, mas sentindo faltar-lhe a integralidade do conhecimento necessário à apreciação da controvérsia, deve o árbitro revelar sua convicção. Visto tratar-se de uma avaliação de caráter subjetivo, podem as partes entender, p. ex., que a experiência do árbitro e vivência profissionais serão suficientes para suprir o que ele considera falho. Do mesmo modo, nas arbitragens em língua estrangeira, embora detenha conhecimentos desta, poderá ele entender serem estes insuficientes para que possa se entender com seus pares e expressar suas opiniões com a mesma firmeza e convicção com que o faz na sua própria língua ou outras em que tenha proficiência.
A despeito do que venham as partes a decidir, o dever de revelar se refere ao foro íntimo do árbitro e o desconforto ético por que venha a ser tomado nessas situações será eliminado ou, pelo menos, aliviado pela revelação que vier a fazer às partes. Por ser um dever, a revelação deverá ser feita sem a preocupação com o resultado que possa dela advir.
Outra questão importante diz respeito à diligência do árbitro. Outorga-lhe a Lei a condição especial de juiz de fato e de direito, não sujeitando a sentença a recurso ou homologação pelo Poder Judiciário. Não se pode perder de vista a responsabilidade que a Lei outorga ao árbitro. Dota-o de poderes similares aos do Juiz, mas exige dele diligência. Diligência na condução do procedimento seja em relação à observância estrita de prazos, do contraditório, da igualdade das partes e das regras aplicáveis, sem mencionar aos limites da convenção de arbitragem. Vale lembrar que a inobservância das regras de diligência poderá levar à nulidade da sentença arbitral. Além disso, o dever de diligência do árbitro contempla, ainda, o de velar para que a sentença arbitral prolatada seja cumprida de forma a fazer com que a decisão se torne efetiva. Caso necessário, poderá o árbitro, no exercício desse dever, fixar, inclusive, prazo para cumprimento da sentença arbitral.
Se, por qualquer motivo, entender o árbitro que o volume das tarefas a ele impostas é incompatível com a disponibilidade de tempo, deverá ele revelar essa circunstância às partes, para que estas avaliem a conveniência de mantê-lo ou não como árbitro. De sua parte, terá ele cumprido o que eticamente se espera de alguém indicado para atuar nessa posição.
Finalmente, uma palavra quanto à discrição exigida do árbitro. Não nos resta dúvida, e o depoimento pessoal dos co-autores da Lei corrobora nossa convicção, de que a expressão discrição, contida no art. 13 § 6º, se refere ao sigilo. Estamos seguros de que, ainda que o procedimento arbitral específico, não se caracterize como confidencial, deve o árbitro, entretanto, manter sigilo do caso e do julgamento deste, durante e mesmo após a conclusão da arbitragem. A discrição, como prevista em Lei, se constitui num requisito imposto ao árbitro e independe de ser o procedimento sigiloso ou não, sendo de ressaltar que o processo decisório será sempre restrito aos árbitros, não sendo permitido às partes estar presentes a ele.
O intuito deste Artigo é sublinhar o papel da ética na arbitragem. Se entendermos o papel por ela desempenhado, certamente entenderemos melhor a segurança do procedimento em si. No entanto, caberá a cada um dos árbitros indicados exercer com firmeza todas as manifestações dele exigidas, seja de independência, de imparcialidade ou de desconforto ético. Caberá aos árbitros e às partes avaliarem os impedimentos e desconforto ético em face das situações concretas que vierem a surgir.
Em suma, o desenvolvimento da arbitragem no Brasil será maior e mais célere quanto mais se puder comprovar a correção da conduta ética dos árbitros, das partes e de seus assessores.
São Paulo, julho de 2003
Autor: José Emilio Nunes Pinto Fonte: Agência Brasil