Lucas Tadeu Ferreira*
Os defensores mais aguerridos da obrigatoriedade do diploma de jornalismo vêm relutando em aceitar a aplicação dos direitos e garantias fundamentais de liberdade de expressão e de imprensa conquistados pela sociedade brasileira, e que estão consagrados na Constituição Federal. Esses direitos estendem a todos os cidadãos, indistintamente, a prerrogativa de se comunicarem através de qualquer veículo e linguagem de comunicação, seja ele escrito, verbal, televisado etc.
O inciso IX, do artigo 5º, da Constituição, estabelece que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. O artigo 220, que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição. O parágrafo 1º que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social. E o parágrafo 6º, que a publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade. Portanto, a Constituição brasileira é auto-aplicável em relação aos direitos e garantias fundamentais de liberdade de expressão e imprensa.
Vários dispositivos de Tratados Internacionais celebrados pelo governo brasileiro que, de forma contundente e insofismável, estendem também a qualquer cidadão os direitos inalienáveis de se comunicarem de forma ampla, através dos diferentes veículos e linguagens de comunicação, o que inclui, obviamente, qualquer forma de comunicação impressa e expressa, também vêm tendo dificuldade de aceitação por esses aguerridos corporativistas.
Tal relutância tem como ponto focal o decreto-lei 972/69, que regulamenta a profissão de jornalista e institui a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão, que foi baixado com base em Atos Institucionais, no conjunto das medidas de força e repressão do regime ditatorial que prevaleceu no brasil por mais de 20 anos, a partir de 1964, objetivando controlar os diversos segmentos representativos da sociedade brasileira, e, no caso, os veículos de comunicação e seus respectivos profissionais, já que são tradicionalmente formadores naturais de opinião.
Esse decreto foi editado pela Junta Militar que governou o Brasil, ao suceder o presidente Arthur da Costa e Silva, em pleno auge da repressão política e supressão dos direitos e garantias fundamentais de cidadania. Tal Junta era composta por três oficiais das forças armadas, a saber: Aurélio de Lyra Tavares, ministro do exército (presidente da junta), Augusto Rademaker, ministro da marinha, e Marcio De Mello e Souza, ministro da aeronáutica.
O decreto-lei 972/69 foi baixado no dia 17 de outubro de 1969, e traz no seu caput os seguintes dizeres: “Os ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das atribuições que lhes confere o artigo 3º, do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1º, do artigo 2º, do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, decretam…” (desnecessário se faz transcrever na íntegra o decreto-lei). Interessante notar é que a mídia, deliberadamente, sempre omitiu que este decreto regulamentador da profissão de jornalista foi baixado com base no Ato Institucional nº 5.
Contudo, não é difícil contextualizar as razões políticas e ideológicas que motivaram a Junta Militar a editar o citado decreto. Em primeiro lugar, seria um meio fácil de identificar todos os veículos e profissionais de comunicação existentes no País e exercer sobre eles a censura e o patrulhamento ideológico. Em cada veículo de comunicação foram colocados censores para aprovar o que poderia ser divulgado, ou não, para manter o status quo e os interesses vigentes à época da chamada “Ideologia de Segurança Nacional”. Nesse ambiente repressor, muitos jornalistas foram presos, exilados e alguns até mortos pelo regime militar. O caso que teve maior repercussão, por exemplo, no governo do General Ernesto Geisel, foi a morte do jornalista Wladimir Herzog.
Outro grande objetivo, sem dúvida, era o de tentar afastar das redações e constranger os jornalistas que não tinham diploma, e que, em sua imensa maioria, eram opositores ao regime. Como contrapartida, o decreto tornou-se um grande atrativo para uma parte expressiva dos profissionais da imprensa com medidas de natureza corporativista, já que foram criadas uma série de melhorias trabalhistas, como aposentadorias precoces e vantajosas, jornada de trabalho de cinco horas diárias e, por último, uma reserva de mercado até então inexistente no Brasil.
Contudo, com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, o decreto-lei 972/69 passou a ser inconstitucional, por não ter sido recepcionado por ela, conforme exaustivamente demonstrado no livro “Jornalistas sem diploma – as inconstitucionalidades no decreto-lei nº 972, de 17-10-69, e de seu regulamento”, de autoria do jurista e professor do estado Pará, José Wilson Malheiros da Fonseca (editora Cejup, Belém-PA, 1995). Referido jurista prolatou dezenas de Sentenças, naquele estado, considerando inconstitucional a obrigatoriedade do diploma de jornalista.
O ministro Orlando Teixeira da Costa, que, na condição de presidente do Tribunal Superior do Trabalho – TST, assina o prefácio deste livro e manifesta-se contra a obrigatoriedade do diploma, com o seguinte argumento: “a linguagem é o elemento mais eficaz de comunicação entre os homens. Sendo a escrita uma modalidade de representação da linguagem, que expressa mensagens, idéias, juízos, conceitos, doutrinas, princípios e opiniões, não seria perigoso exercer sobre ela um controle rígido, mediante o monopólio?”. E conclui seu arrazoado jurídico pela inconstitucionalidade da obrigatoriedade do diploma.
A Constituição de 1988 introduziu ainda importantes inovações relativamente à integração à nossa legislação de Tratados Internacionais firmados pelo governo brasileiro. Ela estabeleceu, no artigo 5º, em uma extensa sucessão de setenta e sete incisos, um rol de direitos fundamentais e garantias; e, especificamente, no parágrafo 2º, do mesmo artigo, fixou que os direitos e garantias expressos na Carta não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos Tratados Internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. De mérito indiscutível, a parte final desse mandamento constitucional recolocou na ordem do dia a inserção dos tratados no Direito interno brasileiro.
O Supremo Tribunal Federal – STF, em decisão adotada no ano de 1977 (RTJ 83/809), declarou taxativamente que um Tratado Internacional, em que o Brasil é parte, tem aplicação imediata e direta no Direito interno após a sua ratificação regular pelo Congresso, não dependendo, portanto, de lei que lhe reproduza o conteúdo. O STF adotou ainda posição no sentido de que Tratado Internacional tem hierarquia equivalente à de lei e, por analogia, revoga lei anterior que o contraria.
Muitos Tratados Internacionais firmados pelo governo brasileiro já fazem parte hoje do nosso conjunto de leis. Alguns preconizam direta e objetivamente os amplos e irrestritos direitos de liberdade de expressão e de imprensa e, portanto, colidem frontalmente com o corporativismo da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo, os quais serão brevemente comentados adiante.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, em seu artigo XIX estabelece que “Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras”. No final do ano de 1998, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 50 anos e foi amplamente comemorada pela mídia, em quase todos os países civilizados do mundo. Mais ainda: o artigo 9, letra “e”, do Código de Ética dos Jornalistas, determina que os jornalistas são obrigados a cumprir e a defender a Declaração Universal do Direitos Humanos.
A Declaração Internacional de Chapultepec firmada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996, em conjunto com vários presidentes latino-americanos, estabelece, em seus (Dez) Princípios, que: “Não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão e de imprensa. O exercício desta não é uma concessão das autoridades; é um direito inalienável do povo. Toda pessoa tem o direito de buscar e receber informação, expressar opiniões e divulgá-las livremente”.
A Declaração Americana Sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República (Decreto 678/92, de 6-11-92; Diário Oficial da União de 9-11-92; páginas 15.562-15.567) tem força de Lei Ordinária no Brasil. Em seu artigo XIII – Liberdade de pensamento e de expressão -, preconiza que: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões”.
Enfim, tanto os dispositivos da Constituição Federal, como dos Tratados Internacionais mencionados, estabelecem ampla, geral e irrestrita liberdade de expressão e de imprensa no Brasil, e que, conforme foi demonstrado, dispensam a obrigatoriedade de qualquer forma de registro, licença ou diploma de jornalista para o exercício sagrado da liberdade de expressão e de imprensa.
Falta apenas cumpri-los na íntegra e, com isso, banir definitivamente os Atos Institucionais e seus resquícios remanescentes do período da Ditadura Militar que, infelizmente, ainda têm seguidores no Brasil e, no caso específico, por questões meramente mercadológicas. Afinal, o mercado de trabalho é pródigo e saberá contratar os bons profissionais da imprensa, com ou sem diploma.
Lucas Tadeu Ferreira é mestre em comunicação pela Universidade de Brasília.