Marcelo Teixeira de Aleluia
Advogado Civilista
pós-graduando em Direito Civil na Escola Superior de Advocacia do Rio de Janeiro
Articulista da Revista Panorama da Justiça.
I – INTRODUÇÃO
Apesar da legislação pátria tocar, há tempos, nas questões sociais que envolvem o direito de propriedade, o Código Civil Brasileiro de 1916 não tratava do Princípio da Função Social da propriedade, sendo, nesse aspecto, vetusta a filosofia absolutista adotada pelo antigo diploma.
A exemplo do que acontecia com a redação do Código anterior (artigo 524 do revogado Código Civil de 1916), o caput do artigo 1.228 do novo Código Civil (Lei 10.406 de 10/01/2002) não define o que é o direito de propriedade, mas sim, dá suas características, iniciando sua redação trazendo as já consagradas faculdades que o proprietário tem de usar, gozar e dispor da coisa, consequentemente, revelando também o direito de seqüela, que se materializa no poder que o proprietário tem de reaver a coisa de quem injustamente a possua ou detenha, como assim expressa a própria letra do citado dispositivo.
Não obstante, o §1º do artigo 1228 do novo Código Civil Brasileiro, este que não tem correspondência com nenhum dispositivo do Código Civil de 1916, nos traz mais do que uma nova regra, na realidade, introduz expressamente na esfera do direito privado o princípio da Socialidade, quando em trecho de sua redação diz que:
“…… o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais…..” (Destaque e grifo nosso)
Entendemos com isso que, hodiernamente, o próprio direito positivo se encarrega de firmar as bases principiológicas para uma nova exegese do direito de propriedade, excluindo o exagerado apego ao patrimonialismo em prol de uma maior valorização do ser, o que acontece não só especificamente com o direito de propriedade, mas em toda sistemática do novo Diploma.
Como nos revela o professor Miguel Reale, o novo Código Civil vem fulcrado em três princípios fundamentais: eticidade; operabilidade e socialidade. Este último pode-se verificar preponderante no título relativo aos contratos e nos direitos reais. A socialidade veio no sentido de superar o caráter individualista da Lei 3.071/16.
Nessa esteira corre toda hermenêutica do novo Código Civil, e é através de um estudo sistêmico que chegaremos a algumas considerações acerca da aplicabilidade desses princípios de ordem pública no direito privado.
II – DESENVOLVIMENTO
Hoje podemos ressaltar na doutrina pátria, um novo olhar rumo a uma outra dimensão do Direito Civil como, v.g., verificamos nas ilustres penas de Gustavo Tepedino e André Osório Gondinho, estes que gozam de conhecimento privilegiado no que toca a novel necessidade do estudo do Direito Civil, qual seja, a de integração num sistema maior de normas, quer tenham ou não cunho de direito privado.
Evidentemente, que o pacificado ensinamento de Kelsen, tangente a supremacia da Constituição sobre as demais normas, ainda é incontestável, o que deixa claro a importância de se guardar consonância com tal diploma, sujeição imposta até mesmo a um diploma legal da magnitude de um Código Civil.
Por esse caminho, podemos verificar que a CRFB/88, assim dispõe acerca do tema que ora tratamos, em seu artigo 5º, XXIII:
“a propriedade atenderá a sua função social” (Grifo nosso)
O artigo 5º, em todos os seus incisos, trata de direitos fundamentais, ou seja, num sopesar com outras normas, mesmo que constitucionais, tem peso maior posto que só podem colidir com outro direito fundamental.
Até por ser um direito elevado em nível constitucional e situado no topo da pirâmide da própria Carta, o ângulo social tem que ser observado com preponderância. E é nesse diapasão que o professor André Osório, com extrema sensibilidade nos remete a visualização prática da necessidade de socialização de um direito que em sua estrutura é privado, com linhas transcritas in verbis:
“O bem não utilizado ou mal utilizado é constante motivo de inquietação social. A má utilização da terra e do espaço urbano são os principais causadores da violência social.
Por tais razões, vislumbra-se na função social da propriedade uma garantia de maior solidariedade na utilização da coisa.”
O aspecto estrutural do direito de propriedade já foi visto é revisto pela doutrina, apesar da pouca preocupação legislativa com sua definição, os cientistas jurídicos identificaram através dos tempos seu caráter de núcleo dos direitos reais, sendo o mais extenso e completo de todos.
Por essas características, que o tornam absoluto, formam-se algumas idéias confusas, quais sejam, da possibilidade de abusar do direito de propriedade, e da impossibilidade de normas que funcionalizem sua utilização, até por ser tal funcionalização confundida, mesmo pela doutrina, com limitação, o que seria, na opinião de alguns, uma agressão à natureza do direito de propriedade.
Mesmo, ao nosso sentir, não sendo o caso do direito brasileiro, a limitação em prol de um todo harmônico não traduz uma afronta ao bom direito, v.g., a guisa de comparação, o que diz a legislação material civil portuguesa acerca do tema, no art. 1305 do D.L 47344 de 25/11/66 (Código Civil Português):
“O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.”
A comparação com a legislação portuguesa nos faz observar que mesmo com certas limitações o proprietário não perde o gozo pleno do bem, apenas terá que estar atento aos ditames legais, que gravitam, em geral, em torno do social. Além disso, pelo que se pode extrair da doutrina esposada pelos autores supracitados, a inserção do princípio da Socialidade relativo ao direito de propriedade, não retira seu caráter absoluto, posto que no Brasil o proprietário não sofre restrições diretamente quanto a sua utilização, mas somente encontra paredes quanto a sua destinação.
Tepedino assim expressa sua opinião sobre a nova visão do direito de propriedade, prisma trazido pela boa hermenêutica Constitucional:
“A propriedade constitucional, ao contrário, não se traduz numa redução quantitativa dos poderes do proprietário, que a transformasse em uma “minipropriedade”, como alguém, com fina ironia, a cunhou, mas, ao reverso, revela uma determinação conceitual qualitativamente diversa, na medida em que a relação jurídica da propriedade, compreendendo interesses não-proprietários (igualmente ou predominantemente) merecedores de tutela, não pode ser examinada “se non construendo in una endiadi le situazioni del propritario e dei terzi”. Assim considerada, a propriedade (deixa de ser uma ameaça e) transforma-se em instrumento para realização do projeto constitucional.”
O novo Código Civil nos trouxe essa linha de raciocínio, contudo, o diploma também nos traz curiosidades que, aparentemente, são dissonantes com o que o sistema apresenta, destarte, perfaz-se um desafio à interpretação de regras como, v.g., as dispostas nos parágrafos 4º e 5º do artigo 1228 do novo Código Civil Brasileiro, que ora transcrevemos para uma melhor visualização do assunto:
“§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de 5 (cinco) anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico.”
“§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.”
O instituto desenhado pelos dispositivos nos parece um artifício para evitar a usucapião, posto que, apesar de prever a forçosa privação da propriedade, a mesma será feita mediante indenização, o que, na prática, revela uma venda forçada. Ora, a usucapião é um clássico instituto que serve de amparo social, a fim de evitar conflitos diretos e, não nos parece açodada a opinião de que, na prática, restaria o enfraquecimento da aplicação do instituo em inúmeros casos.
O STJ, através do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, aprovou os seguintes enunciados acerca dos supracitados dispositivos:
“82. é constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4º e 5º do artigo 1228 do novo Código Civil.
83. a defesa fundada no direito da aquisição com base no interesse social (artigo 1228, §§ 4º e 5º do novo Código Civil) deve ser argüida pelos réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelos pagamentos da indenização.”
Notamos que no enunciado 82, o STJ posiciona-se pela constitucionalidade do dispositivo, inclusive consignando expressamente que é constitucional a modalidade aquisitiva, porém, não encontramos base de sustentação constitucional para tal modalidade aquisitiva, tendo em vista que a análise do STJ tem como fundamento o artigo 191da CRFB/88, que trata de usucapião pró-labore e, com vistas ao §5º do artigo 1.228 do novo Código Civil, observamos que o dispositivo fala em indenização, o que descaracteriza completamente a natureza da usucapião e, na realidade, não encontra nenhum amparo constitucional. Nessa linha, podemos dizer que, no que toca ao § 4º, estamos diante de uma nova hipótese de perda da propriedade.
O professor Juarez Costa de Andrade comenta sobre o novo instituto com as seguintes palavras:
“Poucos comentários foram feitos em relação à nova figura, se fala que houve a criação de “usucapião coletivo”, “desapropriação social” ou ainda “desapossamento social” todavia, na verdade há o nascimento de um novo instituto, sui generis, incomum, um misto de usucapião e desapropriação, já que é o Poder Público quem se responsabiliza pelo pagamento de um valor ao proprietário, a título de boa-fé, por no mínimo 5 anos.”
O artigo 10 do Estatuto da Cidade prevê a modalidade de usucapião coletivo, assim descrito:
“A áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupados por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são suscetíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.”
Observemos que já há doutrina de peso discorrendo comparações entre o instituo descrito no Estatuto da Cidade e o constante no § 4º do artigo 1228 do novo Código Civil, tal como Venosa, com lição transcrita in verbis:
“Cumpre notar que esse dispositivo apresenta-se sob a mesma filosofia e em paralelo ao art. 1.228, § 4º do novo Código civil, que admite que o proprietário pode ser privado do imóvel que reivindica, quando este consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico. Aqui não se menciona que o dispositivo dirigi-se a pessoas de baixa renda.”
Sendo assim, parece claro que o § 4º do art. 1.228 do NCC tem aplicação específica dentro de uma ação reivindicatória movida pelo proprietário, esta que, doravante, será de grande valia para o proprietário que queira evitar a usucapião pró-labore, posto que, com o advento do novo Código Civil, com base na regra do § 5º do artigo 1.228, em sede de reivindicatória, o proprietário deverá ser indenizado com todo o apoio no supracitado dispositivo da lei material civil, o que, na prática resultará, como já foi dito anteriormente, numa compra e venda, apenas com a atipicidade de ser compulsória.
O fato é que a natureza do instituto ainda não tem boa definição doutrinária, mas ousamos dizer que parece uma espécie nova de expropriação, posto que é realizada pelo judiciário, tem caráter privado e é necessariamente coletiva. Com máximo respeito à boa doutrina que entende o contrário, não há instituto que guarde parecença com essas características, posto que a expropriação é realizada pelo executivo, e a devida indenização também é paga pela Administração, mas com tudo isso, ainda é o instituto (expropriação) que melhor norteia a identificação do corpo do § 4º do 1.228 do NCC.
Destarte, observamos que, apesar da Constituição não outorgar poderes ao Judiciário para tal feito, parecendo assim duvidosa a constitucionalidade do dispositivo em questão, o instituto pode ser entendido como uma nova espécie de expropriação, pois o proprietário terá, compulsoriamente, que vender sua propriedade, venda esta que guardará as características de negócio jurídico na espécie de compra e venda, posto que cuidará de interesses entre as partes, e terá o proprietário, “expropriado” , que ser devidamente indenizado.
Esse tipo de instituto não converge com a filosofia do Código, causando ao interprete uma maior dificuldade de exercer uma análise sistêmica, posto que tem obrigatoriamente que procurar a melhor aplicação e utilidade do dispositivo, antes de verificar sua incompatibilidade no corpo do diploma normativo, ou mesmo dentro de todo o sistema.
III – CONCLUSÃO
O Direito, como ciência social e humana que é, não pode manter-se afastado de problemas que tem razões intimamente ligadas a vícios da conduta humana, esta que é o principal objeto do estudo das ciências jurídicas no sentido de buscar a justiça nas relações travadas em sociedade.
Nesse sentido, percebemos que o direito de propriedade, núcleo dos direitos reais, tem hoje um enfoque mais adequado, caminhando para socialização, posto que os novos princípios trazidos pelo Código Civil, nada mais são do que um profundo mergulho na realidade social traduzidos em comandos legislativos prontos para triturar a antiga concepção excessivamente patrimonialista que pairava pelo direito civil pátrio, em atenção ao comando Constitucional que põe a salvo e acima de qualquer questão patrimonial a dignidade da pessoa humana, com status de princípio fundamental, vide art. 1°, III da CRFB/88.
Como consignado em nossa exposição, não se trata de limitar o direito de propriedade, este que encarado pelo aspecto patrimonial, em sua estrutura, é absoluto, mas sim de funcionaliza-lo, como bem descrevem os autores que serviram de inspiração para o presente trabalho.
Como bem assentado nas bases da ciência jurídica, a norma que não prescreve sanção é vazia, portanto, o que por muitos pode ser encarado como limitação, ao nosso sentir é apenas a descrição de funções que têm que ser cumpridas, no sentido de uma composição social mais harmônica, verdadeiro escopo do Direito como ciência.
Reale, Miguel. Revista da Academia Paulista de Magistrados – dezembro de 2001, n.º. I – São Paulo.
Tepedino, Gustavo. Problemas de Direito Civil Constitucional – artigo sobre a Função social da propriedade. André Osório Gondinho. Rio de Janeiro. São Paulo. Renovar. 2000, páginas 402/403.
Porto de Barros, Ana Lúcia. O Novo Código Civil: Comentado. Rio de Janeiro. Freitas Bastos, 2003, pág. 1155.
Tepedino, Gustavo. Temas de direito civil. 2ª ed. Rio de Janeiro, Renovar – 2001, pág. 286.
Revista ABAMI – Direito Imobiliário – Jun/2003, pág. 4.
Porto de Barros, Ana Lúcia. O Novo Código Civil: Comentado. Rio de Janeiro. Freitas Bastos, 2003, pág. 1154.
Venosa, Silvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 3ª ed. São Paulo, Atlas, 2003, pág. 205.