Alex Sandro Ribeiro
Advogado em São Paulo
Membro da 4ª Turma Disciplinar – TED-IV da OAB/SP
Pós Graduado em Direito Civil pelo uniFMU
SUMÁRIO
1. Dissolução da união estável e seus efeitos; 2. Alimentos entre os companheiros; 3. Da culpa na dissolução como pressuposto para o dever alimentar; 4. Tempo do dever da prestação alimentícia; 5. Pressupostos legais para os alimentos; 6. Rito da ação de alimentos; 7. Alimentos provisórios e tutela antecipada; 8. Execução das prestações alimentícias; 9. Renúncia e dispensa dos alimentos; 10. Considerações finais.
I. DISSOLUÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL E SEUS EFEITOS
Constitui-se união estável a associação de pessoas de sexo oposto, que convivam duradoura, pública e continuamente, com o objetivo de constituir familiar e como se casados fossem, sem sê-lo, contudo, de modo a emanarem, iguais e mutuamente, direitos e deveres de respeito e consideração, assistência moral e material, guarda, sustento e educação dos filhos comuns. Fundamentalmente, deve-se levar em consideração o convívio em aparência de casamento, excluindo deste instituto, portanto todos os relacionamentos de enamorados, sem compromisso, ainda que extremamente duradouro, ininterrupto e público ou ainda que tenham prole comum. Extinguir-se-á, segundo a lei, pela morte de um dos conviventes ou pela dissolução.
Neste breve estudo, observaremos problemáticas e lacunas havidas na legislação que regia o direito a alimentos entre os companheiros, que nem mesmo o novel Código Civil logrará suprir.
De proêmio, cumpre observar qual o supedâneo jurídico a dar azo à pretensão. Para tanto, valem aqui nossas observações quando escrevemos sobre A sucessão na união estável face ao novo Código Civil, quando sustentamos que “a disposição do Código Civil absorverá o disposto na Lei n. 8.971/94, dada a maior amplitude e ulterioridade daquele. E, com supedâneo no art. 2º, § 1º, última parte, da Lei de Introdução ao Código Civil, haverá ab-rogação da Lei de 1994, pois o Código Civil regulou inteiramente toda a matéria.[1] Toda a matéria substantiva anterior foi revogada pelo Código Civil, podendo ser colhido apenas algum fundamento processual das leis anteriores.
O Código Civil não foi exauriente, mas dispôs o suficiente acerca da matéria, preenchendo algumas lacunas e sanando alguns defeitos.
Basta ver que a Lei n. 9.278/96, quando falava do fim da união estável, fazia-o como se tratasse de vínculo eminentemente contratual. É o que nos permitia defluir singela leitura do artigo 7º, quando dispunha: “dissolvida a união estável por rescisão”. Ora, rescisão é instituto de rompimento de contrato. Mas, desde á época entendíamos que a união estável não tinha natureza jurídica eminentemente contratual. Ademais, tentou-se usar o termo rescisão como sinônimo de ruptura amigável (ou judicial) da união estável, quando em verdade não foi esta a extensão dada, pois falava-se de alimentos entre os conviventes, e tais dependem do elemento culpa (como adiante veremos). O termo rescisão, entretanto, deve ser reservado “para os casos de dissolução judicial do vínculo contratual em que houve lesão para uma das partes”, lembra-o Fortunato Azulay[2].
É mesmo caso de dissolução do contrato, operando-se a sua resilição[3]. Tratava-se de contrato avençado por tempo indeterminado, pois assim o são as instituições que tais, tendo por reforço ao pensamento a vetada disposição legal acerca da denúncia do contrato por um dos conviventes (Lei n. 9.278/96, artigo 6º), cuja ruptura abrupta e injustificada redunda em dever indenizatório (com o que pode-se equiparar o dever de prestar alimentos). Ademais, o reconhecimento da união estável e a sua extinção só produziria efeitos depois da declaração judicial. Ou, conforme o caso, havia resolução, de modo que o contrato se dissolveria em razão da sua inexecução, ou de seu inadimplemento, por uma das partes.
No mais, sendo resolução o verbete correto para o caso sub studio, então se deve comprovar culpa? Para Fortunato Azulay, “é irrelevante para a resolução contratual que haja culpa ou não do devedor.”[4] Entretanto, culpa é elemento indissociável da resolução contratual, porque aqui se fala em inadimplemento e este só se verificará se houver culpa de um dos contratantes[5], temos que, ao menos no tocante aos alimentos após a extinção da união estável, o elemento culpa era imprescindível. O §3º do artigo 6º da Lei de União Estável cuidaria da rescisão por violação dos deveres constantes dessa lei e do contrato escrito, se existente esse.
E tal pensamento não foi modificado com o advento do Código Civil. Neste Codex, possibilitou-se o direito aos alimentos mesmo em caso de culpa; mas, fê-lo apenas para os cônjuges. Em momento algum o artigo 1.704, ou seu parágrafo único, tratou da união estável, utilizando invariavelmente as expressões “cônjuges separados judicialmente” e “cônjuge declarado culpado”. E a união estável ou os companheiros? Nada disse, embora tenha previsto no caput do artigo 1.694 o direito a alimentos entre companheiros.
II. ALIMENTOS ENTRE OS COMPANHEIROS
Para o instituto da união estável, paralelamente ao instituto da indenização por serviços domésticos, travou-se celeuma doutrinária e jurisprudencial no sentido de se conceder alimentos ao companheiro, quando findada a relação concubinária. Porém, não florescia pretensão neste sentido, havendo falta de interesse processual e impossibilidade jurídica do pedido. Arredava-se da esfera do artigo 226, § 3º, da Constituição da República, a obrigação alimentar entre concubinos, pois tal dispositivo cria função de assistência para o Estado e não para o companheiro frente à companheira e vice-versa.
Ventilou-se muito no Tribunal de São Paulo que, na conjuntura retratada pelo direito normativo à época (antes da lei de 1994), aflorava-se juridicamente inviável pretensão desfraldada por ex-concubina a fim de obter pensão alimentícia com fundamento na ruptura da livre união concubinária acertada durante certo tempo. Isso em São Paulo, não obstante as razões espelhadas em copioso Aresto do E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[6], sendo que a primeira concessão de alimentos – que se noticia – foi proferida pelo E. Tribunal de Justiça fluminense[7].
Como bem lembrado por Luiz Augusto Gomes Varjão, discutia-se também a obrigação de prestar alimentos assumida contratualmente pelos concubinos, sem homologação judicial, quando então poderia ser exigida em ação de cobrança sem o caráter de dívida alimentar.[8]
Enfim, doutrina e jurisprudência, particularmente da Corte de São Paulo, não vacilaram em arredar da esfera do citado artigo 226, § 3º, da Carta Magna a obrigação alimentar entre concubinos. De fato, “o dispositivo cria função de assistência para o Estado, não para o companheiro frente à companheira e vice-versa”.[9]
Muito caminhou o nosso Direito até os dias que correm, desde a tênue defesa do concubinato, nos primórdios, pretendendo alçar a mulher como mera vítima na irregular união, a proteger tão-só os interesses do parceiro. Ulteriormente, por normas recentes, variaram-se os direitos de aquinhoamento da mulher. Aparando as arestas, teve-se que o fundamento central se cifrava na falta de texto expresso em lei para amparar-se o intento alimentício.
Surrado o uso da condensação jurídica, a apregoar que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, no campo dos alimentos, imprescindível era mesmo tal existência, precisamente[10]. Era a posição majoritária e de quase unanimidade nacional. E com razão. A obrigação alimentar resulta da lei, da vontade das partes e do delito. Pondera Paulo Lúcio Nogueira relembra: “A dívida de alimentos provém de várias fontes, a saber: a) do parentesco (CC, art. 396); do casamento (CC, art. 233, IV); c) de ato ilícito, em que o causador do dano fica obrigado a pensionar a vítima (CC, art. 1.537, II); d) da união estável (art. 7º, caput, da Lei n. 9.276, de 10-5-96); e) de contrato entre concubinos com obrigação alimentar em escritura pública (RJTJESP, 51:30)”.[11]
Resultantes da lei são os alimentos devidos em razão de parentesco ou do casamento; voluntários são os decorrentes de declaração de vontade inter vivos ou mortis causa; como forma de ressarcimento do dano ex delicto são os alimentos previstos no Código Civil quanto à responsabilização civil. A obrigação reclamada, antes da lei regente, não se enquadrava em nenhuma destas três hipóteses. Não eram casados, nem tinham grau de parentesco; comumente nada havia de estipulação em seu favor (se tivesse lícito e possível seria o pleito) e não se tratava de vítima de delito praticado pelo ex-concubino. Em suma, direito algum havia.
Porém, atento à evolução histórica, veio a lume a Lei n. 8.971, de 1994, dispondo, em seu artigo 1º, in verbis: “a companheira de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ela viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei n. 5.478, de 25.7.68, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade. Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao companheiro de mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva”. Seguiu-se depois a Lei n. 9.278/96, tratando da matéria no artigo 7º, porém, diversamente da lei anterior, referendava mais o direito substantivo que o adjetivo. Atualmente, a matéria encontra-se totalmente encampada no Código Civil.
Não obstante, a mesma discussão acirrada depois de 1994, ainda perdura, no sentido de aduzir se qualquer concubino poderia valer-se do direito a alimentos. Assim como antes ventilou-se que o texto legal protegia apenas o concubinato puro, ou simples, o mesmo pode-se dizer agora. O texto do Código Civil, porém, parece resolver a peleja.
Está excluído o chamado concubinato adulterino, ou impuro, ou ao menos que de alguma forma esteja vinculado ao dever de fidelidade pelo casamento, uma vez que as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato (artigo 1.727), escapando dos demais artigos e direitos próprios dos companheiros, da união estável pura.
Talvez por falha legislativa houvesse mesmo sido sugerido tais idéias, como também que para a companheira não se exigia que fosse solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva; mas sim, que o companheiro de quem se pretendia pleitear alimentos fosse solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo (fundava-se no art. 1º e seu parágrafo único, da Lei 8.971/94). Quanto à natureza do concubinato, certamente deve ser puro. Não pode ser adulterino ou incestuoso, pois do contrário se estaria premiando situações verificadas ao arrepio do primado da legalidade.
Igual direito, porém, tem a situação intermediária, aquela que não é união estável mas não chega a ser concubinato, isto é, pessoa casada separada de fato ou judicialmente. Neste tocante, preenchidos os demais requisitos, pode-se conceder os alimentos ao requerente.
De todo modo, não obstante a inexistência de equiparação do casamento à união estável para fim de direito alimentar, porque o artigo 226, § 3º, da Constituição Federal não possui esse alcance, tal direito aos companheiros ressoa indisputável, porque além de a Lei 8.971/94 ter introduzido o direito aos alimentos entre os companheiros, agora o Código Civil o fez expressamente (artigo 1.694), direito este que não se funda no jus sanguinis, nem decorre de parentesco; mas, resulta do dever de assistência material recíproca.
III. DA CULPA NA DISSOLUÇÃO COMO PRESSUPOSTO PARA O DEVER ALIMENTAR
Conquanto ecoaram algumas vozes sobre a desnecessidade de culpa pela dissolução da união estável, como requisito do dever de prestar alimentos, temos que não vinga esta proposição. Não basta apenas a necessidade de um e a possibilidade do outro. A hipótese aventada como fim da união estável refere-se à dissolução, por resolução ou resilição do vínculo. Em casos que tais, mormente a resolução, haverá necessidade de comprovar inadimplemento e, via oblíqua, busca do elemento culpa. Só há inadimplemento se houver culpa.
Como já dissemos, o novo Código Civil, no artigo 1.702, insculpiu que na separação judicial litigiosa, sendo um dos cônjuges inocente e desprovido de recursos, prestar-lhe-á o outro a pensão alimentícia que o juiz fixar, obedecidos aos critérios estabelecidos no artigo 1.694. E observou no caput do artigo 1.704 que se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado culpado na ação de separação judicial. E o parágrafo único, ressalvou que se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência.
Fê-lo, como se vê, em relação aos cônjuges, nada dispondo quanto aos conviventes. Se nunca pôde equipara-los, também não poderá agora. É dispositivo especial, ditado apenas para o cônjuge. Se pretendesse falar sobre o companheiro, o teria feito, pois o Capítulo está disciplinando alimentos, inclusive entre os companheiros (v. art. 1.694). Daí porque não vinga estender direito a quem não tem.
Os companheiros devem alimentos recíprocos por força do dever familiar. A hermenêutica autoriza defluir que os conviventes podem pôr fim à união estável sem que se discuta culpa, sem cogitar de causa. Em casos que tais, acordarão quanto aos alimentos e, em acordo, certamente não se discute culpabilidade; não será imposição judicial. Nos alimentos fixados judicialmente, porém, não basta a necessidade para que a obrigação se ponha. O dever daí decorrente é totalmente compatível com a idéia de culpa; e, se ambos os conviventes forem culpados pela dissolução, excluído fica, para ambos, o direito à percepção de alimentos.
É de Luiz Augusto Gomes Varjão a perfeita síntese da necessidade de culpa, a qual peço vênia para trazer à baila: “A obrigação entre os conviventes decorre do dever de assistência, que é obrigação de fazer. Esse dever, após a dissolução da união estável, transforma-se, em razão dos vínculos de socorro que é obrigação de dar. Não pode exigir assistência material quem não foi solidário, isto é, na teve responsabilidade mútua ou interesse recíproco.”
E arremata: “Dessa forma, somente o convivente não culpado pela dissolução da união estável pode, em princípio, reclamar do outro pensão alimentícia.”[12]
Poderíamos até mesmo emprestar a tese da natureza indenizatória dos alimentos entre os cônjuges para reforçar a necessidade de perquirição da culpa pela dissolução. Isso porque, a tendência perpétua dos vínculos matrimoniais e convivenciais causam surpresa ao companheiro que, de inopino, vê obstada a assistência material recíproca; vê-se sozinho, no mundo, tendo senão manter o mesmo padrão de vida até então mantida, ao menos se adequar às suas possibilidades, como aliás foi a proposição do artigo 1.694 do Código Civil, que inovou o seu correspondente (art. 396 do Código revogado) ao acrescer também alimentos para que se possa viver de modo compatível com a condição social.
Com a extinção antecipada do dever de socorro, mister a sua substituição (e não prolongamento, como disseram alhures), porque o que antes era dever recíproco doravante passará a ser exclusivo, como cominação imposta ao responsável pela dissolução que, em razão de sua atitude, presume-se tenha programado a sua vida de molde suficiente a não navegar à deriva pelas vicissitudes da Terra, o que não se pode dizer em relação ao companheiro surpreendido.
Não fosse isso o bastante, se houve culpa pela dissolução, certamente houve infringência de um dever legal. Afrontando ao dever legal, nasce a responsabilidade civil, desembocando em dever indenizatório. Daí porque, além de ser necessária a comprovação da culpa do devedor, também deve ser demonstrada a ausência de culpa do credor.
IV. TEMPO DO DEVER DA PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA
Uma idéia era defendida pela doutrina: a de que os alimentos devem ser fixados por um período de tempo razoável para que o credor possa obter os meios para se manter; findo esse tempo, os alimentos deixarão de ser devidos. Trataram da predeterminação do termo final da obrigação alimentar. Outra corrente entende que, se o concubinato da ex-mulher cessar, deve-se estabelecer a pensão alimentícia anteriormente devida[13]. Ambas, contudo, sem razão.
O que se pode fazer, e o fez o legislador, é condicionar o direito à percepção dos alimentos ao período em que deles necessitar e enquanto não constituir nova união (Código Civil, art. 1.708).
Outrossim, cessada a nova união que deu causa ao perdimento do direito alimentício decorrente da extinção da primeira união, não se restaura tal direito[14]. Não se trata aqui da antiga discussão de renúncia ou dispensa dos alimentos, porque não foi a vontade do credor-beneficiário que se operou, mas sim o império da lei. Pensar em restabelecimento de direito feriria não apenas a ética, a moral e os bons costumes, mas também preceitos jurídicos de inarredável aplicabilidade. Injurídico, pois a lei fala que, com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos (CC, art. 1.708).
Logo, o direito a percepção dos alimentos perdurará enquanto deles necessitar, puder honrá-los o devedor e até que não haja o credor constituído nova união, seja matrimonial ou extramatrimonial, quando então cessará automática e definitivamente o direito à prestação alimentícia.
Extinguir-se-á o dever alimentar, enfim, pela morte do alimentante ou do alimentário. Da pessoalidade da obrigação alimentícia decorre a sua intransmissibilidade, o que a faz cessar com o passamento do devedor. Do mesmo modo, o caráter personalíssimo do direito impõe seja extinta a obrigação com a verificação do evento morte do credor. Veja-se a não transmissibilidade da obrigação de prestar alimentos não se confunde com a disposição legal de obrigatoriedade subsidiária, dos demais parentes que são chamados a prestar alimentos, na falta ou impossibilidade dos mais próximos. De outra banda, uma vez fixada a prestação alimentícia, esta (o crédito alimentar) poderá ser transmitida, por sucessão, quando do passamento da pessoa que foi judicialmente obrigada ao pagamento.
Neste sentido o artigo 1.700 do Código Civil, ao dispor que a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor. Possibilidade que não se verificava na vetusta Lei Substantiva; antes, vedava-a expressamente no artigo 402, o que já vinha sendo tido como revogado face ao artigo 23 da Lei n. 6.515, de 1977 (Lei de Divórcio), que determinava a responsabilidade do espólio pelo pagamento das dívidas do falecido. Donde se conclui que, uma vez fixado o valor devido a título de alimentos e, não tendo o devedor honrado tempestivamente com sua obrigação, sobrevindo então o seu falecimento, os débitos eventualmente deixados são transmitidos ao espólio. Não é a obrigação alimentar que se transmite, porque esta se finda junto com a existência do devedor; o que se transmite é dívida já constituída, as prestações alimentícias atrasadas.
V. PRESSUPOSTOS LEGAIS PARA OS ALIMENTOS
Como se podia inferir do arcabouço jurídico, contenta-se a norma com a existência da união estável e necessidade do credor. Mas não é só isso. Irrelevante se mostrará a atual e indisputável necessidade do credor, se do outro lado não houver relativa possibilidade do devedor. A lei, de hoje e de todos os tempos, não quer o perecimento do credor de alimentos, certamente. Por outro lado, também não deseja que o obrigado ao pagamento desfalque sua própria subsistência, sofra e padeça por inanição. Exige-se equilíbrio, entre necessidades e as possibilidades.
Para o Código Civil, não se indaga do elemento temporal (os 5 anos de existência da união estável), pois tal não foi objeto de disposição do artigo 1.694 que facultou aos parentes, cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação. Não se deslembre que, relativamente à existência de prole comum, esse só fato não é o bastante para qualificar o relacionamento como união estável para efeito alimentar, posto imprescindível a comprovação dos demais requisitos.
Outros tantos requisitos foram abordados no decorrer do presente trabalho, como a ausência de culpa e a situação de pureza da união estável, o que torna despiciendo trazer-lhes à baila novamente, sob pena de se deixar repetitivo e enfadonho o estudo.
VI. RITO DA AÇÃO DE ALIMENTOS
Em regra, seguirá o rito ordinário. Neste particular, vigora a Lei n. 8.971/94, que só sentiu a revogação quanto ao direito material, permanecendo incólume o direito processual. E esta Lei, logo no artigo 1º, assegura a adoção do rito sumário da Lei 5.478/68. Mas, dificilmente será possível a sua aplicação. E a razão é muito simples: é preciso da inicial constar ao menos pedido de reconhecimento de união estável para, ao depois, proceder ao de alimentos. São ações cumuladas de modo sucessivo[15] e, a cumulação de pedidos aqui é daquelas que, só se conhecerá do subseqüente, se proceder o antecedente. Ou seja, só poderá se valer do procedimento sumário especial se houver prova da obrigação, que decorre do reconhecimento e da dissolução da união estável. Impedem-no ainda a necessidade de discussão acerca da culpa, o que não cabe nas estreitas vias do procedimento adotado pela Lei de Alimentos.
Entrementes, a impossibilidade da adoção do rito sumário não é absoluta. Se houver provas bastantes e pré-constituídas da obrigação alimentar, pode-se valer do procedimento sumário, inclusive pedindo os alimentos provisórios. Tem de ser prova documental, como certidão de casamento religioso, certidão de casamento de brasileiro celebrado no exterior, adoção do patronímico do companheiro, contrato escrito de concubinato, acordo extrajudicial de pensão alimentícia, contrato de locação, contrato de sociedade, nota fiscal com o endereço do casal, requerimentos formulados em juízo ou em repartições públicas, documentos expedidos pelos Poderes Públicos.[16] No mais, volta-se ao rito ordinário.
VII. ALIMENTOS PROVISÓRIOS E TUTELA ANTECIPADA
Quem pleitear alimentos no início da lide e sem audiência da parte contrária, deve apresentar prova pré?constituída da obrigação alimentar. Se a união estável não estiver comprovada, ou a culpa do eleito devedor, deve o Juízo promover a instrução para caracterização do fato e não indeferir a inicial e remeter o requerente para as vias ordinárias.[17]
Isso porque, sem embargo do que preceitua a Lei nº 5.478/68, impondo a fixação desde logo dos provisórios, salvo se deles expressamente dizer que não precisa o requerente, há pressuposição de que exista a obrigação alimentar. Não havendo, porém, impossível é o pleito. Podemos até entender possível a complementação, por audiência de justificação prévia em que se ouvirá testemunhas, da prova produzida pelo companheiro, reservando nosso entendimento da prova documental forte neste sentido instruindo já a inicial como único meio hábil a possibilitar a concessão dos provisórios.
São assegurados os alimentos provisórios, portanto, exatamente porque a Lei n. 8.971/94 referendou expressamente a aplicação da Lei n. 5.478/68. Ademais, constituem forma de proteção aos integrantes da entidade familiar que a Lei Maior manda proteger. E tais alimentos são devidos a partir da citação, segundo copiosa jurisprudência, e não a partir da decisão que os concedeu.
Cumpre observar apenas que, a impossibilidade do pedido de alimentos provisórios não confere ao autor a alternativa de recebê-los em sede de tutela antecipada. Dois fortes e singelos motivos impendem-na: é essência dos alimentos a sua irrepetibilidade, o que já encontra óbice no § 2º do artigo 273 da Lei de ritos, ao preceituar que não se deferirá tutela antecipada se houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado (a impossibilidade de reversão ao “status quo” é jurídica, e não de fato), no caso não é só risco, mas certeza, não obstante, o princípio consagrado que alimentos pagos a mais são irrepetíveis, não impede que tais valores sejam computados nas prestações vincendas[18].
Outro, também de clareza mediana, diz com a prova inequívoca e verossimilhança do direito alegado; se o autor não tem tais provas, que devem ser documentais, para se valer do pleito de alimentos provisórios e do rito especial da Lei n. 5.478/68, também não tem para a tutela antecipada. Impossível mesmo, portanto, tutela antecipatória em comento.
VIII. EXECUÇÃO DAS PRESTAÇÕES ALIMENTÍCIAS
Duas são as principais medidas executórias das prestações alimentícias, ambas, em última análise, buscando a mesma finalidade, qual seja, a satisfação da obrigação. É o que se infere dos artigos 732 e 733 da Lei Instrumental Civil. Ambas aplicáveis à união estável, quando se busca a percepção de alimentos devidos entre os companheiros.
Com efeito, com a ameaça de prisão civil o que o legislador visa é quebrantar uma resistência injusta, constranger o devedor de alimentos ao cumprimento da obrigação decorrente de lei, reconhecida na sentença (no caso na decisão) como dentro de suas possibilidades. O seu caráter é meramente compulsivo. E é o que ocorre na execução.
Ademais, “não é correto o enunciado de que a prisão civil deve ser precedida do exaurimento dos meios compulsivos. A Lei de Alimentos, no artigo 16, com a adaptação introduzida pela Lei nº 6.014, de 1973, estabelece que na execução da sentença ou do acordo nas ações de alimentos será observado o disposto no artigo 734 e seu parágrafo único do CPC. O citado artigo 734 e o artigo 17 da Lei nº 5.478, de 1968, prevêem vias para o recebimento das prestações, que, pela sua rapidez, tem preferência absoluta. Se no caso ausentes os seus pressupostos, manifesta?se a inviabilidade. A hipótese, então, passa a ter regência do artigo 18 desse diploma legal, segundo o qual não sendo possível a satisfação do débito, pelas modalidades precedentes, o credor poderá requerer a execução da sentença (no caso da decisão)” na forma dos artigos 732, 733 e 735 do CPC.
“Daí resulta, às expressas, caber ao credor a opção entre a execução por quantia certa ou a citação do devedor inadimplente, para, em três dias, efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá?lo”.[19]
E no caso de dívida alimentar decorrente de união estável, seria a medida do artigo 733 da Lei de ritos o meio destinado à cobrança coercitiva? Sem dúvida alguma. A Lei não limitou a faculdade processual apenas aos credores menores, ou às obrigações decorrentes de pais para filhos. Se não o fez, não cabe ao intérprete fazê-lo. Neste compasso, tanto pode o companheiro credor pleitear a execução com fulcro no artigo 732, visando expropriar bens do devedor, como também no artigo 733 e nos demais.
A lei faculta-lhe a escolha, mas, deve-se distinguir duas espécies de execução de alimentos: uma, com ameaça de prisão, nos termos do art. 733 do CPC, apenas das seis últimas parcelas vencidas, porque não perderam o caráter alimentar e não ganharam ares de indenização; outra, sem aquela ameaça, como execução comum, de acordo com o art. 732 do mesmo estatuto processual, para as parcelas anteriores, as quais, pelo decurso do tempo, perderam esse caráter para assumir feição indenizatória. Ou seja, execução com pedido de prisão só se admite se fundada no inadimplemento das seis últimas prestações.
IX. RENÚNCIA E DISPENSA DOS ALIMENTOS
Repetindo disposição já constante do Código Civil de 1916, o novo preceitua no artigo 1.707 que pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora. Ou seja, pode-se dispensar, mas não renunciar. Segue-se, aparentemente, a dicção sumular do verbete 379 do Excelso Pretório, in verbis: “No acordo de desquite não se admite renúncia aos alimentos, que poderão ser pleiteados ulteriormente, verificados os pressupostos legais.”
Ocorre, agora, que estamos em nova ordem constitucional, que provocou profundas alterações no âmbito do Direito de Família. Depois de 1988, surgiu, inexoravelmente, a igualdade entre os sexos, não havendo entre cônjuges ou companheiros obrigação alimentar exclusiva a cargo de apenas um, em razão do sexo. Logo, a releitura do sistema jurídico à Luz da nova Constituição se impõe. Ademais, a própria Suprema Corte aprimorou seu entendimento, admitindo a renúncia se houve, para o renunciante, reserva de bens e meios suficientes para manter a própria subsistência.[20]
E o Superior Tribunal de Justiça, Corte não-eminentemente política, tem entendido eficaz a renúncia, como também o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Igual posição sustenta Luiz Augusto Gomes Varjão, acrescendo o incontestável argumento de que a renúncia vedada pela Lei refere-se apenas a alimentos devidos entre parentes, o que não ocorre entre os companheiros.[21]
Por tudo isso, entendemos válida e eficaz a cláusula de renúncia, seja pela em razão da nova ordem isonômica constitucional, seja pela ausência de parentesco entre os companheiros, seja, enfim, pela possibilidade de o renunciante ter reservas e meios suficientes para sua manutenção e sobrevivência.
X. CONSIDERAÇÕES FINAIS
E assim chegamos ao cabo. Provavelmente não alcançamos a solidez do pensamento dos mais célebres escritores, dos arautos da literatura jurídica e dos agraciados pelo dom da exteriorização ao papel, dos pensamentos filosóficos, jurídicos e científicos humanos, nem jamais sonharíamos com esplendor que tal. Mas, certamente, apresentamos a nossa posição e colaboração acerca da matéria, que tem campos férteis em dissidência doutrinária e desinteligência jurisprudencial. O que não se pacificará com o novel Código Civil, cujas lacunas ressoam evidentes.
Especificamente sobre o objeto do presente estudo, amplíssima ainda é a celeuma, graças à técnica legislativa que impera no Estado Democrático e de Direito brasileiro. Assim como duas eram as leis federais versando especificamente sobre união estável, sua extinção e os alimentos devidos entre os conviventes, temos ainda o novel Código Civil, lei geral, vigente desde 11 de janeiro de 2003. Estudar união estável, sobre sua dissolução e os alimentos entre os companheiros, exige perspicácia e argúcia singulares. A finura da observação será primeiro para se desvendar qual lei rege a matéria.
De um jeito ou de outro, por sistemática, axiologia e teleologia, tem-se que: dissolvida a união estável, por vontade das partes ou por decisão judicial, poderá o companheiro que estiver necessitando, pleitear contra o outro, na medida das possibilidades deste, valor suficiente para sua própria subsistência enquanto persistir a situação financeira de ambos e o beneficiário não constituir nova união. Terá o alimentário, entrementes, de comprovar a existência de algumas condições que são postas como exigência imprescindível para a consecução do seu objetivo, entre as quais a existência de convívio em união estável e do binômio necessidade-possibilidade, bem assim a ausência de sua culpa pela dissolução da entidade familiar e presença da culpa do requerido. Em regra, a ação seguirá o procedimento comum ordinário, não obstante o disposto no artigo 1º da Lei n. 8.971/94, porquanto requisito prévio e indispensável para a condenação no pagamento de alimentos, é o reconhecimento e a declaração da união estável e, ademais, não cabe antecipar a tutela para conceder aqueles.
Notas:
1. RIBEIRO, Alex Sandro. A sucessão na união estável face ao novo Código Civil. Revista do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação-Notícias do uniFMU; a. V, n. 36, junho/2002, p. 4; www.direito.com.br; www.jus.com.br, www.juridica.com.br, www.apoiolegal.com.br.
2. AZULAY, Fortunato. Do inadimplemento antecipado do contrato. RJ: Brasília/RIO. 1977, p. 39
3. No Novo dicionário jurídico brasileiro (7ª ed., São Paulo: Parma, 1984, p. 793, v. 3) de José Náufel, ao verbete resilição é dado o significado de ato ou efeito de resolver ou dissolver um contrato vigente, em virtude da manifestação de vontade concorde das partes, devido a cláusula contratual. E rescisão é tida como desconstituição do negócio jurídico, com a conseqüente perda da sua eficácia, em virtude de defeito no seu suporte fático (defeito no objeto da convergência nas declarações de vontade – p. 792)
4. Ob. cit., p. 42
5. Araken de Assis verbera que o direito à resolução consiste no desfazimento da relação contratual, por decorrência de evento superveniente, ou seja, do inadimplemento imputável (in: Resolução do contrato por inadimplemento. São Paulo: RT, 1991, p. 65), o que reforça a idéia da necessidade da culpa. No mesmo sentido a célebre doutrina de Agostinho Alvim, in Inexecução das obrigações e suas conseqüências. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1972, págs. 7 e 11.
6. AI 588048348-Alegrete, 3ª Câm. Cível, Rel. Dês. Flávio Pâncaro da Silva, j. 6.10.99, in. RJTJRGS 136/139
7. Apelação Cível n. 37.535-RJ, 4ª Câm. Rel. Dês. Antônio Assumpção, j. 26.11.85.
8. VARJÃO, Luiz Augusto Gomes. União Estável – requisitos e efeitos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 105.
9. Oitava Câmara Civil, Relator Desembargador Fonseca Tavares, in “RT”, vol. 653/105
10. JTJ 173/212.
11. NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Lei de alimentos comentada. 6ª ed. São Paulo: Saraiva. 1998, p. 4.
12. ob. cit., pp. 108/109
13. V. RT 531/236
14. RT 534/230.
15. ASSIS, Araken. Cumulação de ações. 2ª ed., São Paulo: RT, 1995, p. 233
16. exemplos todos de Luiz Augusto Gomes Varjão, ob. cit., p. 114
17. JTJ 188/9, rel. Des. Egas Galbiatti; j. 27.03.1996.
18. JB 171/198 e BAASP, 2030/22?m, de 24.11.1997, rel. Des. Ernani de Paiva; j. 28.09.1989.
19. 1ª Câmara, RJTJSP, 102/253
20. Cf. v.g., RT 85/208
21. ob. cit., p. 113.