Bastante festejada e recebida como excelente alternativa para uma justiça célere, a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1.995, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, ainda provoca polêmicas e cria situações aflitivas, no mínimo, para os cidadãos jurisdicionados e para os operadores do Direito. Este nosso modesto e rápido trabalho tem a finalidade única de levantar novas discussões acerca de tão importante instituição, grande conquista da sociedade, sem dúvida, na medida em que oferece justiça rápida e quase sempre gratuita. Algumas questões precisam ser discutidas para que se possa propor alterações na lei, de modo a corrigir as imperfeições verificadas com sua aplicação no dia-a-dia. Vamos nos ater, nesta ocasião, ao Juizado Especial Criminal.
O processo perante este Juizado Especial Criminal segue os “critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade” (artigo 62). Conforme muitos doutrinadores salientam, critério não é princípio. Princípio é mandamento nuclear de um sistema, uma disposição que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo (Celso Antonio Bandeira de Mello, Elementos de Direito Administrativo, p. 320). Princípio é categoria constitucional, havendo diversos deles referente ao processo. Critério, ao invés, é apenas e tão somente uma referência básica para comparação, uma regra ordinária. Por tais motivos, as expressões não podem ser tomadas como sinônimos na interpretação desta lei, mormente em face do alcance potencialmente limitativo da ampla defesa que podem alcançar e por constituir, também potencialmente, redução da garantia do devido processo legal.
E aqui reside o ponto chave deste nosso trabalho. Não é admissível que o cidadão se veja processar pelo Estado mediante simples alegações do seu desafeto perante a autoridade policial, acusando-o de praticar um crime, sem qualquer indício de prova. Hoje é simples assim: o suposto ofendido dirige-se ao Juizado Especial e lá, perante a autoridade policial, alega o que quer, resultando desta acusação um Termo Circunstanciado (artigo 69). O passo seguinte do processo é uma audiência preliminar, na qual haverá tentativa de conciliação, devendo o autor do alegado fato decidir pela composição dos danos e pela aceitação ou não da pena não privativa de liberdade (artigo 72). Negando o fato, não aceitando a proposta de conciliação, o processo é enviado para o Ministério Público, que oferece a denúncia com base nas alegações constantes do Termo Circunstanciado (artigos 77 e 78).
É de se destacar que o suposto ofensor, tido como autor de um tipo penal, é processado pelo Estado com base tão somente nas alegações do seu desafeto! O que se discute aqui é o fato, na hipótese, de estar o cidadão sendo processado sem qualquer indício de ter cometido efetivamente um crime, ou seja, sem justa causa. A situação que se cria com o processo correndo deste modo é de enorme constrangimento e de pressão sobre o apontado autor do
crime, levando-o a aceitar a pena para não continuar se aborrecendo e para não correr riscos de ser condenado sem culpa. Entendemos que o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público, em tais condições, ofende as garantias individuais do cidadão e cria clima de insegurança na população, se não vejamos.
De acordo com o artigo 5º, LV, da Constituição Federal, “… aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, o que não ocorre no Juizado Especial, na hipótese aventada, pois a denúncia é oferecida com base apenas nas alegações constantes do Termo Circunstanciado. Fica o cidadão ameaçado de sofrer violência em sua liberdade de locomoção, processado sem causa.
Segundo os princípios básicos do Direito Processual Penal, “para que se proponha a ação penal, entretanto, é necessário que o Estado disponha de um mínimo de elementos probatórios que indiquem a ocorrência de uma infração penal” (Julio Fabbrini Mirabete, in “Processo Penal”, 1.991, Editora Atlas, p. 72.)
Não é possível admitir o processo penal calcado tão somente na palavra das supostas vítimas, fazendo acusações infundadas, com objetivo de vingança, por exemplo, acolhida sem qualquer averiguação maior, deixando os acusados constrangidos ilegalmente.
Também ensina Mirabete que “… o magistrado e o membro do Ministério Público, se não tiverem elementos para o oferecimento da denúncia, deverão encaminhá-la à autoridade policial, requisitando a instauração do procedimento inquisitorial. Constitui-se a representação numa declaração escrita ou oral, que não exige fórmula sacramental, mas que deve conter as informações que possam servir à apuração do fato e da autoria.”(In obra citada, p. 82).
Mesmo em face dos critérios que regem o Juizado Especial, os princípios constitucionais e as garantias individuais devem ser respeitadas, além das condições da ação penal, entre elas o interesse de agir do Estado, que somente existe quando houver condição exigida pela lei para o exercício desta mesma ação.
Sempre que faltar a justa causa, elemento sério de convicção quanto ao crime, haverá coação ilegal.
Sobre isso, leciona Mirabete que “dispondo o artigo 648, I, que há coação ilegal (inclusive ação penal) quando ‘não houver justa causa’, conclui José Frederico Marques que só há legitimação para agir (interesse de agir) no processo penal condenatório quando existir o fumus boni iuris que ampare a imputação. Assim, só há interesse de agir no pedido idôneo, amparado em elementos que convençam o juiz de que há elementos para a acusação.”(Obra referida, p.103).
Deve haver justa causa, caso contrário a ação penal ofende a dignidade da pessoa e suas garantias constitucionais, pois “a justa causa, ou seja, um suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado.” (Julio F. Mirabete, obra citada, p. 103. Grifamos).
Assim sendo, é preciso corrigir tal injustiça. Pode-se, por exemplo, instituir audiência de instrução prévia, para assim formar o convencimento do Ministério Público quanto à existência de justa causa, na hipótese de não aceitação da conciliação. Qualquer que seja a forma, é preciso investigar se há justa causa para o oferecimento da denúncia, aplicando-se inclusive o disposto na parte final do artigo 77 (… se não houver necessidade de diligências imprescindíveis).
Londrina, 23 de Setembro de 1999
Robert Pontedura
Advogado