O SISTEMA INTERNACIONAL DE SEGURANÇA COLETIVA: NECESSIDADES DE REFORMA NA PÓS-INTERVENCIONISMO NO IRAQUE
Na luta, encontrarás o teu direito.”
Rudolf von Ihering
Como se tivesse sido originária de uma lei natural ulterior (lex naturalis), as palavras do jusfilósofo alemão Rudolf von Ihering, autor de A Luta Pelo Direito, constituem presságio do funcionamento hodierno do sistema de segurança internacional à luz dos paradigmas do Direito Internacional Público. Cenário internacional este que, após o intervencionismo anglo-americano no Iraque à revelia da Organização das Nações Unidas (ONU), criada pela Conferência de São Francisco de 1945, se encontra marcado pelo sensível desprestígio e enfraquecimento deslegitimante. Com a negação e o desrespeito das instâncias multilaterais de resolução de conflitos, notadamente por meio do Conselho de Segurança desta Organização (1), com seus quinze Países-Membros, surge a tese de ascensão do realismo e de um estado da natureza hobbesiano de segurança coletiva internacional, quase institucionalizando um multilateralismo belicoso e de exceção. A anarquia internacional toma lugar do funcionamento lúcido e necessário da Comunidade Internacional pelo DIP e pela legitimação da ONU. (2)
Debatendo sobre a relação direito-força, balança e espada, Rudolf von Ihering, em sua já citada magnun opus, dá à insegurança da conjuntura mundial uma expressiva lição: “A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito”. (3) Inspirada no pensamento do eminente jurista, o presente artigo enseja analisar, genericamente, dentro de uma perspectiva de alusão metafórica e imagético-simbolista, a dinâmica decisória e de funcionamento do Sistema de Segurança Internacional estruturado do Conselho de Segurança da ONU e demais legislações produzidas pelo Sistema da ONU.
O sistema de segurança coletivo consubstanciado nos Capítulos VI e VII da Carta da ONU (1945) (4), apresentou-se ao ambiente internacional, devastado por duas grandes guerras, como a possibilidade do estabelecimento da paz global duradoura, orientada pela solução pacífica de controvérsias, salvaguardada a utilização da força apenas nos casos de legítima defesa individual ou coletiva. Como instancia interna do Organismo, responsável pela resolução das desavenças, criava-se o Conselho de Segurança e como instrumentos garantidores da aplicação das decisões desse órgão previa-se a imposição de sanções econômicas, político-diplomáticas e, em casos extremos e ameaçadores da paz coletiva, de ações militares. Convém ressaltar, que a força aqui referida é a força legítima, defensora da supremacia do Direito Internacional – é a espada a que se referia Ihering.
Seriamente abalado durante o período da chamada “guerra fria”, em que o mundo dividido entre o bloco socialista e o capitalista assistia a uma corrida armamentista sem precedente histórico, responsável pela proliferação de armas de destruição em massa que, ainda hoje, põem em risco a existência humana, o sistema de segurança coletivo, parecia ganhar nova força quando da derrocada do bloco soviético no começo dos anos de 1990. John Lewis Gaddis propõe analisar o contexto imediatamente após o rompimento da rigidez bipolar como sendo o de “substitucionismo ambivalente”. As forças comunismo-democracia cederam lugar para as forças integração-fragmentação, de acordo com o internacionalista. (5)
O mundo pós-guerra fria, em um primeiro momento, digamos até a primeira metade da década de noventa, sugeria a emergência de uma ordem internacional multipolarizada, unida por um grande mercado globalizado em que a distinção entre os atores internacionais é manifestada por suas singularidades civilizacionais em detrimento das divisões político-econômicas que marcaram o momento histórico anterior. Dentro dessa perspectiva, o fim da “paz fria” significaria uma revalorização das relações multilaterais e o conseqüente fortalecimento da ONU como principal reguladora dos conflitos entre as nações do mundo re-unificado.
Não foi, contudo, o que aconteceu, de acordo com os postulados paradigmáticos do DIP e das Relações Internacionais. Com o esfacelamento de sua antiga rival socialista, os EUA emergem como única superpotência mundial, detentora de um poder bélico e econômico-financeiro impar. Não somente poderio bélico e econômico-financeiro, mas também cultural e geodemográfico. Tal supremacia começaria a deixar suas marcas no campo político-diplomático, em especial na redefinição do papel da ONU e do conceito de segurança coletiva. Em artigo anterior (6), proponho a analisar mais cautelosamente essas rubricas do poder internacional, onde formulei, de forma abrangente, um índice de poder internacional (PI) que forneço abaixo:
PI = ??PPD + PEF + PC + PM + PG
A fórmula do poder internacional acima mostra o caráter multidimensional do poder como elemento regulatório do funcionamento do sistema de segurança internacional durante boa parte da décado de noventa. A década de 1990, sem dúvida alguma, foi de grandes transformações no âmbito do poder internacional. Do fim do bipolarismo ascendeu o sistema unimultipolar, a que se refere Samuel Huntington, marcado pela existência de uma só superpotência, a norte-americana, e uma série de outras potencias secundárias, de influência eminentemente regional. O peso do poder dos EUA, mais do que nunca principal contribuinte financeiro e militar para a estrutura da ONU e agora livre de qualquer contraponto, afirmar-se-ia com maior intensidade no Conselho de Segurança da ONU a partir de 1991, quando da Guerra do Golfo. Entre os anos de 1991 e o corrente ano de 2003, o cenário internacional assistiu ao desenvolvimento de uma política externa norte-americana cada vez menos crente na prática do multilateralismo e cada vez mais voltada para a atuação unilateral, principalmente no plano da segurança mundial.
Tal evolução torna-se mais intensa quando dos ataques terroristas a alvos norte-americanos, em 11 de setembro de 2001, transformando a tendência ao isolacionismo e descrédito nas instâncias internacionais de resolução de conflitos, fenômeno que vinha se consolidado ao longo da última década, em postura oficial do Estado.
A raison d’état, doutrina formulada pelo Cardeal Richilieu durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), a qual subordina todos os demais valores à necessidade de segurança externa do país perante um conflito de interesses, passa a ser a tônica da atuação externa dos EUA. A criação do conceito de guerra preventiva, usado para justificar a intervença anglo-norte-americana ao Iraque em 2003, é um claro exemplo da aplicação das idéias do citado Cardeal francês.
A invasão ao Iraque liderada pelos EUA em março do corrente ano, à revelia do CS da ONU e tendo apoio (discreto, tácito ou mesmo expresso, porém não insignificante) de países como Espanha, Austrália, Portugal inter alia, mostra que as palavras idealistas de Jean-Jacques Rousseau que a “força não faz o Direito” podem ser deturpadas para a conveniência da dependência geoeconômica dos recursos naturais não-renivávies (leia-se combustíveis fósseis) de países hegemônicos. Essa conjuntura de unilateralismo truculento e arbitrário vem tornando clara a necessidade de se rediscutir e redefinir seu papel como guardião da paz e da segurança coletiva.
Ecoam mais fortes as aclamações por um Conselho de Segurança mais amplo, democrático e legitimamente representativo em que o poder decisório possa ser estendido a um número maior que os cinco atuais membros permanentes, congregando nações que por sua liderança regional possam representar as posições das diversas localidades e culturas do mundo, democratizando, legitimando e fortalecendo, dessa forma, a resolução dos conflitos na esfera global. (7)
Além dessa ampliação do poder decisório em seu Conselho de Segurança, o grave episódio de 2003 mostrou a necessidade do incremento da autonomia da ONU, no que tange seu efetivo militar e seus recursos financeiros. Para que possa autuar de forma isonômica e efetivar suas decisões na proteção da segurança coletiva é preciso refletir acerca da importância de um exército próprio e permanente do organismo e de uma contribuição econômica mais bem distribuída entre os Estados-Membros da ONU, de modo a evitar a hegemonia e interferência de algum na atuação do mesmo.
As metáforas imagéticas aqui propostas no que concerne ao atual momento de debilidade sistêmica, à luz da citação de Ihering, são a de três termos gregos clássicos, os quais relaciono a seguir: “axiom”, do grego, significando princípio irredutível, muito também utilizado como valor não provado e aceito, surgindo então o termo “axiologia”; “crato”, do grego clássico, significando poder, derivando então o termo “cratologia”; e por fim, polemos, igualmente do grego, significando guerra, batalha, consequenciando o termo “polemologia”.
As metáforas imagéticas do atual sistema de segurança internacional que aludo no presente artigo dizem, conclusivamente, a respeito da substituição do axiom (valores pétreos) dos pressupostos jusnaturalistas pela cratologia, ou seja a força bruta e acrítica. A síntese dialética do axiom (valoração ausente e carente) com o crato (poder de obstrução e intervenção) surge, infelizmente, o polemos, isto é, a polemologia, ou o estudo científico das causas e conseqüência das guerras entre Estados.
A beligerância no Iraque cria sérios precedentes não somente no plano político-diplomático, mas também para o plano da geopolítica do Direito Internacional da Segurança Internacional pela ação deliberadamente motivada pela raison d’état de qualquer potência central ou potência média. Ademais, essa ação fragiliza a atuação da ONU como organismo internacional encarregado da manutenção da ordem, justiça, estabilidade internacionais nesses primeiros momentos do século XXI. (8) Faz-se necessário, dessa forma, rediscutir o papel, os atributos e o alcance da ONU e de seu Conselho de Segurança nessa nova e emaranhada (des)ordem mundial. A iniciativa recente do Presidente Lula além de emblemática é louvável e já encontra respaldo e apoio de demais líderes no sentido de se convocar uma ampla conferência de alto nível para, justamente, re-equacionar todas essas variáveis para um futuro mais mutuamente benéfico e menos sombrio para os países centrais e periféricos.
Nesse contexto, poder-se-ia, igualmente, recorrer à alusão da espada e da balança na magistral literatura de Ihering ou ainda da literatura clássica da teatrologia de Sófocles sobre as primeiras alusões do Direito Natural. A imagética permanece, malogradamente, de que a força bruta está prevalecendo e que os primados dos valores na koinonia (termo “comunidade” no grego) estão esquecidos propositalmente. Deve-se, na luta contínua, buscar preservar, ou melhor, resgatar os direitos inalienáveis dos Estados-Nações menos privilegiados e representados por justiça, imageticamente perpetuada nos olhos fechados com a balança dos valores à tolerância, ao respeito, à integridade e à obediência irrestrita a legitimidade da Organização das Nações Unidas.
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Notas
01. Carta das Nações Unidas e o Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Nova Iorque, Departamento de Informações Públicas, 1993.
02. Verificar a seminal contribuição do politólogo australiano sobre a matéria em: Bull, Hedley. A Sociedade Anárquica: Um Estudo da Ordem Política Mundial. São Paulo, Editora da UnB-IPRI-Imprensa Oficial do Estado, 2002.
03. Ihering, Rudolf von. A Luta Pelo Direito. São Paulo, Forense, 1992.
04. Carta das Nações Unidas e Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Opus Cit.
05. Goldstein, Joshua. International Relations. Nova Iorque, Harper Collins, 1994.
06. Consultar: Castro, Thales. “Hegemonia Estratificada: Análise do Poder Mundial à Luz da Gestão Política.” Scientia Una. Olinda, FOCCA, 2000.
07. Villa, Rafael Antonio Duarte. Da Crise do Realismo à Segurança Global Multidimensional. São Paulo, AnnaBlume – FAPESP, 1999.
08. Saraiva, José Flávio Sombra. Relações Internacionais: Dois Séculos de História. Brasília, IBRI-FUNAG, 2001.
Autor: Thales Castro Fonte: Infojus