por Edson Pereira
Há na comunidade jurídica uma interessante discussão a respeito da eliminação ou não do exame criminológico como condição para a concessão de progressão de regime, livramento condicional e indulto, após a reforma da Lei de Execuções Penais, introduzida pela Lei 10.792/03.
Os que sustentam a possibilidade de ainda ser realizado o exame criminológico para efeito da concessão de “benefícios prisionais”, como forma de verificação da periculosidade do condenado e sua adaptabilidade ao convívio social, invocam, sob o fundamento maior, o princípio da individualização das penas, estabelecido no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, bem como a não revogação do § 2º, artigo 33, e, do parágrafo único, artigo 83, do Código Penal, os quais ainda estabelecem como requisito para a progressão de regime e a concessão do livramento condicional o mérito do condenado e a ausência de presunção de reincidência, o que — segundo esta corrente — continua autorizando o juiz da execução penal a requisitar, se entender necessário à formação de sua convicção, a realização do exame criminológico para a análise da personalidade do condenado e sua compatibilidade com o convívio social.
Há, portanto, os que buscam de todas as formas enrijecer a execução da pena privativa de liberdade como forma de impossibilitar que o condenado volte a conviver “extramuro”, como se estivessem pretendendo bradar o lobby da mídia sangrenta “quanto mais tempo preso, melhor”. Ocorre, entretanto, que tudo leva a crer que esta não foi a intenção do legislador da Lei 10792/03. A verdade é que a providência adotada veio ao encontro dos ideais garantistas da Constituição Federal de 1988.
O sistema de execução de penas implementado na Lei de Execução Penal é, sem dúvida, a herança mais antigarantista do período autoritário que se seguiu ao golpe militar de 1964.
Inspirada pelas doutrinas correicionalistas da defesa social, a Lei de Execução Penal (que é de 1984, portanto, anterior a atual Constituição), concebeu a pena como instrumento flexível de transformação do condenado, para a sua “ressocialização”. Com o discurso da humanização da execução das penas, instituiu um modelo ressocializador fulcrado na individualização das penas e orientado, em todas as suas fases, pelo mérito do condenado, a ser verificado a partir da avaliação do comportamento e da personalidade.
Entretanto, esta ideologia correicionalista que, inquestionavelmente, permeia a Lei de Execução Penal, além de vulnerar o respeito à dignidade humana — principal valor da civilização e fundamento desta nossa República –, viola, igualmente, o direito de liberdade e de autonomia da consciência.
Passados mais de 16 anos da promulgação da Constituição vigente, a Lei de Execução Penal, não obstante, continua sendo aplicada com toda a sua ideologia ressocializadora, transformadora e antigarantista, sob o manto do discurso falacioso de humanização e individualização das penas.
O princípio da individualização das penas, desenvolvido, inicialmente, dentro de uma doutrina orgânica teleológica e correicionalista, por Franz Von Liszt (Ferrajoli, 2002, p. 216), foi incorporado à Constituição de 1988, dentre as garantias fundamentais (artigo 5º, inciso XLVI). Por isso, este princípio deve ser interpretado na atualidade de acordo com o contexto garantista em que foi inserido.
Isto porque, caso o princípio da individualização autorizasse tratamento diferenciado na execução da pena segundo a personalidade do condenado, este mesmíssimo princípio entraria em confronto com princípios outros inserido no mesmo rol que ele, como, por ex., o da igualdade, da legalidade e da certeza das penas.
A Constituição é uma só e, portanto, estes princípios, todos eles, devem ser interpretados “como preceitos integrados do sistema inteiro” (Canotilho, 2003, p. 1.224).
A classificação dos condenados, como prevê o artigo 5º da Lei de Execução Penal, concretizada, dentre outras formas, pela realização dos exames criminológico e de personalidade, os quais são determinantes à elaboração de um plano individualizado de tratamento penal a que será submetido o condenado para a sua “ressocialização”, conforme expresso na Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, reflete os objetivos autoritários da referida lei.
O condenado deixa de ser sujeito de direitos para se tornar objeto a ser transformado e moldado, segundo os parâmetros estabelecidos pela sociedade, em determinado momento histórico.
Ocorre que o princípio da dignidade da pessoa, fundamento do Estado Democrático de Direito conforme prevê a Constituição Federal de 1988, bem como outros princípios decorrentes do princípio democrático, como a liberdade de consciência e de autodeterminação, não se coadunam com um sistema assim estruturado.
A ressocialização do condenado no sistema constitucional vigente, não pode constituir-se em objetivo a ser alcançado a qualquer preço, porém essa prática continua viva e extremamente arraigada na consciência social, em total incompatibilidade com o princípio dignidade da pessoa humana, fundamento Constitucional.
O exame de personalidade, obrigatório para todos os condenados à pena privativa de liberdade, é um exame genérico da personalidade, no qual se investiga o caráter, as tendências e a inteligência do condenado. O exame criminológico, obrigatório para os condenados em regime fechado e facultativo para os condenados em regime semi-aberto, segundo a Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, é uma espécie do gênero exame da personalidade e parte do binômio delito-delinqüente, numa interação de causa e efeito, tendo como objetivo a investigação médica, psicológica e social, como reclamavam os Criminólogos de outrora (Mirabete, 1994, p. 60- 61).
Entretanto, a obrigatoriedade desses exames na atualidade, viola, flagrantemente, o princípio da liberdade de autodeterminação e a dignidade da pessoa, pois invadem a intimidade do condenado, não alienada pela sentença condenatória.
Se a individualização da pena constitui garantia fundamental do condenado, com certeza, não há que ser realizada dessa forma. A finalidade da individualização da pena, diante uma Constituição garantista como a nossa, deve restar circunscrita à adequação da execução da pena às aptidões do condenado, de forma a torná-la o menos aflitiva possível e oportunizar a ele o desenvolvimento dessas aptidões e de sua personalidade, com dignidade e respeitado o princípio da autonomia da vontade.
Condicionar a concessão dos “benefícios prisionais” — expressão adequada ao modelo paternalista e autoritário que a Lei de Execução Penal engendra — à adequação da personalidade do condenado aos parâmetros sociais, como exemplo de garantir a progressão de regime e o livramento condicional, é um claro aspecto antigarantista do sistema.
Isto porque, os resultados obtidos a partir dos exames criminológicos, pela impossibilidade de sua verificação empírica, são irrefutáveis. E esta irrefutabilidade das conclusões dos exames criminológico e de personalidade, pela impossibilidade de sua verificação empírica, fulmina as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa do condenado no processo de execução penal.
Ademais, o condicionamento da concessão da progressão de regime e do livramento condicional ao mérito do condenado, verificado pelo exame de sua personalidade, bem como pela constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não mais voltará a delinqüir (conforme expresso no artigo 83, parágrafo único, do Código Penal), afronta, além do princípio democrático, o princípio da presunção de inocência, este explicito no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.
O princípio democrático informa a liberdade que tem o indivíduo de ser como bem quiser, e o respeito, pelos demais integrantes do corpo social, da sua subjetividade. Logo, condicionar o direito subjetivo de liberdade corporal à adequação de sua personalidade aos padrões determinados pela sociedade significa violar princípios basilares do Estado Democrático de Direito (aí incluída, claro, a dignidade humana, fundamento desta República).
De outro lado, argumenta-se, desavisadamente, que o condenado, após a sentença penal condenatória, não mais pode ser presumido inocente, porque com a condenação a culpabilidade ficou demonstrada. Como se este princípio da inocência fosse aplicado somente no processo de conhecimento (onde se busca a condenação), sem se estender ao processo de execução (onde se busca cumprir a sentença e ressocializar o condenado).
Condicionar a concessão da progressão de regime ou do livramento condicional também à constatação de condições pessoais que façam presumir que o condenado não mais voltará a delinqüir (como continua pretendendo o artigo 83, parágrafo único, do Código Penal), representa, indiscutivelmente, violação à garantia processual da presunção de inocência: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Constituição Federal, artigo 5º, LVII).
Portanto, violado fica artigo 5º, LVII da Constituição com o condicionamento da presunção de não-reincidência (ou de não-periculosidade) para a concessão da progressão de regime ou do livramento condicional, pois esta presunção diz respeito a fatos futuros não alcançados pela condenação.
Como pode o Estado, de um lado, admitir que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” e, de outro lado, este mesmíssimo Estado determinar a realização de exame através do qual será “presumido” que o condenado reincidirá na delinqüência? Só se existisse em nosso direito uma presunção de culpa, só se existisse em nosso direito a possibilidade de condenação sem ato, só se existisse em nosso direito a possibilidade de condenação sem processo.
Outro aspecto que combate a obrigatoriedade da submissão do condenado aos exames criminológico e de personalidade, é o direito de ninguém ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. Direito este consagrado na Convenção Americana de Direitos Humanos e incorporado ao sistema brasileiro, com status de norma constitucional, por força do disposto no artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004.
Essa garantia, indiscutivelmente aplicável em um processo de execução penal acusatório-garantista, em que o condenado é considerado sujeito de direitos e não objeto da execução, impede que ele seja compelido a participar de tais exames, não podendo sua recusa ser valorada de forma prejudicial.
O discurso psiquiátrico, entretanto, é no sentido de que “o (direito de) silêncio é extremamente prejudicial para o apenado, refletindo-se em parecer contrário ao direito pleiteado” pois, “o apenado que não ‘colabora’ é visto como indisciplinado, perigoso, ‘reticente em aceitar ajuda’” (Lopes Junior, 2003).
Veja, portanto, que os objetivos propostos pela Lei de Execução Penal e os instrumentos eleitos para a consecução desses objetivos, refletem, por estes discursos, os ideais autoritários de um regime de exceção vigente à época de sua edição, não mais se compatibilizando com o atual Estado, por sinal Democrático de Direito.
Compete, pois, aos profissionais do direito, até que a mudança legislativa se consolide para adequar a legislação infraconstitucional aos princípios garantistas vigentes, conferir à Lei de Execução Penal uma interpretação consentânea com os fins a serem alcançados pela nova ordem constitucional, afastando, quando necessário, a aplicação de determinados institutos que não puderem ser interpretados conforme a Constituição.
A ressocialização do condenado não mais pode ser colocada como um fim a ser alcançado a qualquer preço. Deve ser entendida, tão-somente, como o meio, colocado à disposição do condenado para, respeitada a sua intimidade e vontade, desenvolver suas aptidões e personalidade e, assim, alcançar-se o fim maior, qual seja, o respeito a sua dignidade durante o processo de execução penal.
O mesmo se diga quanto à classificação dos condenados. Essa providência inicial, considerada pela Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal como indispensável à individualização da pena, não pode consistir em uma investigação invasiva da intimidade do condenado, mas tão-somente a coleta de informações necessárias, respeitada a autonomia da sua vontade, para que seja possível ao Estado oportunizar a ele o desenvolvimento de suas aptidões e personalidade durante a execução da pena.
A extinção do exame criminológico através da Lei 10792/03, como condição para a obtenção da progressão do regime e do livramento condicional, representou, assim, um grande passo rumo à implementação de um processo de execução penal efetivamente garantista, em consonância com as opções do constituinte de 1988.
Referências bibliográficas
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 7ª ed., 2003.
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito Penal — Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, v. II, 6ª ed., 1998.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, tradução de Ana Paula Zomer.
HÄRBELE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, tradução de Gilmar Ferreira Mendes.
KUEHNE, Mauricio. Lei de Execução Penal Anotada. Paraná: Juruá. 5ª ed. 2005.
LOPES JUNIOR, Aury. “A (im)prestabilidade jurídica dos laudos técnicos na execução penal”. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Boletim nº 123, fev. 2003.
“A instrumentalidade garantista do processo de execução penal”. In: CARVALHO, Salo de (org.), Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. São Paulo: Atlas. 5ª ed., 1994.
PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa do. Execução penal e garantismo: as alterações introduzidas na lei de execuções penais sobre o exame criminológico. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Boletim nº 146 — Jan. 2005.
Revista Consultor Jurídico