por Maurício Cardoso
O novo papa a ser escolhido pelos 115 cardeais da Igreja Católica reunidos em Conclave no ambiente celestial da Capela Sistina a partir do próximo dia 18 será gordo, risonho e velhinho. Isto é o que deve acontecer se for confirmado um ditado romano, baseado mais na observação histórica do que naquelas profecias conspiratórias auto-realizáveis de autoria remota, tipo Nostradamus ou São Malaquias. Mais do que uma tese sobre a anatomia papal, o ditado se refere às tendências ideológicas dos homens que se sucedem na cátedra de Pedro.
Os gordos são tipos reformistas, que fazem a Igreja avançar no tempo ainda que à custa de sua própria estabilidade. Para eles, o homem está no centro das preocupações da Igreja. Assumem o poder, provocam revoluções que desarruma e areja a casa e depois morrem rapidinho. Gordo era João XXIII, que no início dos anos 60 convocou o Concílio Vaticano 2º e fez a migração da Igreja da Idade Média para o século XX. Seu pontificado durou breves 5 anos.
Os magros são rígidos, autoritários, dogmáticos. Sua ação busca fortalecer o poder da Igreja e da fé à custa do imobilismo. Deus é o objeto de todas suas atenções. Seus reinados são perigosamente longos. Magro era Pio XII, o antecessor de João XXIII, sobre quem pairam dúvidas atrozes em torno de sua postura diante do nazismo e do fascismo.
João Paulo II, independentemente de quantos quilos pesava, era o típico papa magro. Seu sucessor, ainda que seja um peso pluma, terá de ser, para o bem da Igreja e do mundo, um papa gordo. O que se espera é que seja em tudo o oposto do papa polonês. E que tenha a santa irresponsabilidade de colocar em cheque o legado construído por João Paulo II em quase três décadas.
Há que se reconhecer o mérito do papa Woityla em dois pontos cruciais: ele soube manter a unidade da Igreja em meio a irrecuperáveis contradições. Conseguiu também garantir a presença da Igreja no mundo cada vez mais secularizado e prescidente de Deus. Para consumo interno, contudo, como diz o teólogo suíço Hans Kung, o pontificado de João Paulo II representou um grave retrocesso para a Igreja.
O próprio Hans Kung é um exemplo vivo da intolerância de Wojtyla com o pluralismo de idéias que ele fez abortar — com o perdão da palavra — no seio da Igreja. Teólogo de prestígio, Kung pode ser considerado o ideólogo do Concílio Vaticano II, convocado no início dos anos 60 pelo papa João XXIII numa iniciativa de promover a renovação da Igreja. Sob João Paulo II, o teólogo suíço foi condenado ao silêncio e proibido de ensinar. Teve o mesmo tratamento dispensado ao nosso conhecido Leonardo Boff, o ideólogo da Teologia da Libertação.
O Concílio de João XXIII e de Hans Kung modernizou a Igreja e tornando-a mais humana. Um exemplo disso é a liturgia católica. Até o Concílio, a missa era rezada em latim, com o celebrante de costas para os fiéis. Com o Concílio a Igreja aprendeu a língua do povo e se voltou de frente para ele. Este movimento de transformação da Igreja em uma entidade mais religiosamente humana e menos burocraticamente divina, o agiornamento como se dizia na época, prosseguiu durante os anos de Paulo VI mas foi subitamente estancado com a chegada de João Paulo II.
Wojtyla não permitiu qualquer possibilidade de diversidade e tratou a ferro e fogo os que dele divergiram. Kung e Boff que o digam. Tratou também com fundamentalismo medieval as propostas de modernização da estrutura da igreja. Ninguém padeceu mais sob o mando de Wojtyla do que as mulheres relegadas a um plano subalterno dentro da hierarquia católica.
Numa fase da história em que elas saíram às ruas, entraram no mercado de trabalho, assumiram posições na política, a Igreja de Woityla continuou ignorando-as. Fechou-lhes as portas do sacerdócio e confinou-as na alcova de procriadoras dos filhos de Adão, sem ao menos conceder-lhes o conforto da pílula anticoncepcional ou a alternativa do aborto responsável.
Wojtyla disse com todas as letras que a Igreja não é uma instituição democrática. O exercício da fé quase com certeza é incompatível com a democracia. Mas não era necessário que se reacendessem as fogueiras da inquisição para incinerar as idéias de quem divergia. Iniciativas de abertura e democratização, como o sínodo dos bispos — uma reunião do papa com os bispos do mundo celebrada periodicamente — foram esquecidas.
Filho de pai militar, criado dentro da igreja polonesa perseguida pelo regime comunista de então e por isso mesmo refratária a qualquer tentativa de mudança, João Paulo II agiu de acordo com suas convicções. Era um papa magro. O bem e o mal que fez estão feitos. A Igreja hoje anseia por um papa gordo, que lhe solte as amarras, que permita a diversidade, que encare os desafios do mundo moderno, que a traga para o terceiro milênio. O novo papa pode até seguir o exemplo de João Paulo II — adotar os nomes dos antecessores como homenagem, mas fazer tudo ao contrário do que eles fizeram.
Revista Consultor Jurídico, 11 de abril de 2005