Alex Sandro Ribeiro
Advogado em São Paulo
Pós Graduando em Direito Civil pelo uniFMU
Campos férteis em dissidência doutrinária e desinteligência jurisprudencial são os da união estável. Especificamente sobre o objeto do presente estudo, amplíssima ainda é a celeuma, tudo graças à técnica legislativa que impera no Estado Democrático e de Direito brasileiro. Duas são as leis federais versando especificamente sobre união estável, sua dissolução e o direito sucessório. Não bastassem, temos ainda o novel Código Civil, lei geral, a vigorar em 11 de janeiro de 2003.
Estudar união estável, sobre sua dissolução e os efeitos daí decorrentes entre os companheiros, exige perspicácia e argúcia singulares. A finura da observação inicia-se ao demandar do hermenêuta sapiência para vislumbrar qual lei rege a matéria, se a 8.971/94 ou a 9.278/96. Em verdade, a primeira veio especificamente para disciplinar os alimentos e facultar aos conviventes lançar mão do disposto na Lei n. 5.478/68, bem assim garantir direito sucessório; e, a segunda, regulamentar a norma constitucional (§ 3º do artigo 226).
Complexa, entrementes, é a situação jurídica acerca dos direitos emergentes da morte de um dos companheiros. Diversos fenômenos jurídicos ocorrem quando há ou não herdeiros necessários sucessíveis, indo desde simples direito real de habitação à adjudicação da totalidade da herança, passando ainda pelo usufruto vitalício.
Mas, nos estreitos limites do presente, buscaremos decifrar apenas se o novo Código Civil revogou o direito sucessório versado nas Leis 8.971/94 e 9.278/96.
A Lei n. 8.971/94 foi promulgada especificamente visando dispor a situação dos companheiros em relação ao direito sucessório (a par do direito a alimentos). Fê-lo, claramente, como se vê de singela leitura do artigo 2º, tratando, nos três incisos, sob que condições participarão da sucessão, in verbis: o companheiro sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste ou comuns; ao usufruto da metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes; e, na falta de descendentes e de ascendentes, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança.
Os dois primeiros casos sucessórios tratam do usufruto vidual, independente da situação econômica do companheiro ou de que tenha concorrido para a formação do patrimônio, salvo os bens havidos anteriormente à união, que são incomunicáveis neste caso. Enquanto viver o supérstite ou enquanto não constituir nova união, ser-lhe-á deferido o usufruto, de modo que pode ser vitalício.
O terceiro inciso terminou por arrolar o convivente ao lado do cônjuge supérstite na ordem da vocação hereditária. Quando houver bens sucessíveis e não houver ascendente nem descendente, herdará o convivente, mesmo porque é irrelevante no caso em tela o regime de bens adotado e a efetiva participação na formação do patrimônio comum.
E, no artigo 3º, observou que se os bens deixados pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do companheiro, terá o sobrevivente direito à metade dos bens. Não há, como observa Silvio Venosa, “superposição de direito, porque o usufruto incide sobre a herança, e a meação não é herança. Esse usufruto, da quarta parte ou da metade dos bens, incide sobre a totalidade da herança, ainda que venha a atingir a legítima dos herdeiros necessários.”
Por força da Lei n. 9.278/96, dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família (p. único do artigo 7º). Não falou nada sobre a sucessão, de modo que fica evidente que não tratou de tal matéria. Mas, trouxe o instituto do direito real de habitação, que caberá aplicação apenas quanto ao imóvel em que residiam os companheiros ao tempo da dissolução, sendo ainda o único bem desta natureza.
A lei de 1994 trouxe a meação, adjudicação e o direito real de usufruto; enquanto que, a Lei de 1996 trouxe o direito real de habitação. No pensar de Luiz Augusto Gomes Varjão, “o direito sucessório entre os conviventes continua regulado pela Lei n. 8.971/94, já que a Lei n. 9.278/96 não tratou dessa matéria. Dessa forma, ainda que o óbito do autor da herança tenha ocorrido na vigência da Lei n. 9.278/96, os requisitos do direito sucessório entre os conviventes são os mencionados pela Lei n. 8.971/94.”
Não divergíamos desta posição, daí porque se mostra despiciendo tecer maiores comentários. Quando a celeuma tratada acerca da união estável for agitada em face do direito sucessório, portanto, deve-se ter em mira os parâmetros preconizados pela Lei 8.971/94. Isso, cingindo a discussão às leis de 1994 e de 1996.
Mas, e em face do novo Código Civil, como fica o direito sucessório? Cremos que a disposição do Código Civil absorverá o disposto na Lei n. 8.971/94, dada a maior amplitude e ulterioridade daquele. E, com supedâneo no art. 2º, § 1º, última parte, da Lei de Introdução ao Código Civil, haverá ab-rogação da Lei de 1994, pois o Código Civil regulou inteiramente toda a matéria.
Relativamente ao direito sucessório, não houve qualquer benefício ou previsão aos companheiros no Código Civil de 1916. Na Lei Civil de 2002, também não se falou muito, mas dispôs-se o suficiente para alterar a regulamentação e ab-rogar tacitamente a sistemática em vigor.
O direito sucessório na união estável vem estampado no artigo 1.790, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união. Guardou-se lógica com o regime da comunhão parcial de bens (art. 1.725), adotado para esta entidade familiar. Em casos que tais, o companheiro, ou a companheira, supérstite, terá direito: a uma quota equivalente (se filho comum) ou a metade (se filho exclusivo do “de cujus”); se concorrer com outros parentes sucessíveis (ascendentes ou colaterais até o quarto grau), terá direito a um terço da herança. Não havendo parentes sucessíveis, defere-se a sucessão por inteiro ao companheiro sobrevivente.
Não se fala mais em direito real sobre coisa alheia (usufruto ou direito real de habitação). O direito do companheiro supérstite é de propriedade plena (CC, art. 1.784), nos termos e condições arroladas no artigo 1.790.
Mas não pára aí a inovação. Quer-nos parecer que, não obstante tenha o legislador deixado de fazê-lo expressamente, óbice não há para que o companheiro concorra com descendentes comuns, na ordem da vocação hereditária, como herdeiro necessário. Para tanto, mostra-se até ocioso o estudo dos incisos I e II do artigo 1.829, pois o próprio artigo 1.790 cuidou de fazê-lo no seu inciso I, porquanto de todo modo receberá a mesma fração hereditária. Com isso, protege-se, de per si, a legítima do companheiro (art. 1.846), considerando ainda que o artigo 1.850 fala que, em testamento, pode o testador não contemplar apenas os herdeiros colaterais, excluindo-os da sucessão – não fala mais em cônjuge, como dispunha o artigo 1.725 do Código de 1916, nem falou em companheiro.
A mesma equiparação, entretanto, não se pode apresentar em relação aos descendentes exclusivos do “de cujus” e aos ascendentes deste, posto incompatível com o sistema de atribuição de quota hereditária adotada nos incisos II e III do artigo 1.790.
Outrossim, em face do inciso III do artigo 1.829, ao seu lado, não se deve acrescer o companheiro supérstite, pois este tem disposição específica a respeito, na qual se menciona que ele terá direito à totalidade da herança apenas quando não houver outros parentes sucessíveis (art. 1.790, inciso IV) e, havendo estes (como os ascendentes e os colaterais), terá direito apenas a um terço. A equiparação pretendida daria mais direitos a quem, lógica e evidentemente, não ostenta.
Ou seja, na ordem da vocação hereditária, o direito à adjudicação da herança pelo companheiro nasce apenas quando termina o direito dos ascendentes e dos colaterais do “de cujus” — mas com estes, antes, concorre com direito a um terço. A mesma linha de raciocínio se aplica ao inciso III do artigo 1.829, inviabilizando o companheiro de ladear o cônjuge na ordem da vocação, pois excluiria os colaterais (que só vêm no inciso seguinte, n. IV) e se chocaria com o inciso III do artigo 1.790.
Ressalte-se que, a Lei Civil reservou ao cônjuge supérstite, independente do regime de bens, o direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, se for o único desta natureza a inventariar. Não obstante, o companheiro tem igual direito, por força do P. único do artigo 7º da Lei n. 9.278/96 que, neste caso, continua em vigor, ao verberar que, dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, enquanto viver ou não constituir nova união (matrimonial ou não).
A par dessas inovações, vê-se ainda que foi lembrada a união estável pelo artigo 1.844, quando do deferimento da herança vacante, de modo que só há vacância, se não houver cônjuge, companheiro ou parente sucessível. Tratou ainda quanto à indignidade (art. 1.814) e à deserdação (art. 1.963, III).
Nessa senda, sem embargo dos doutos pensamentos contrários, entendemos que o novo Código Civil revogou inteiramente a Lei n. 8.971/94. A lei posterior revogou a anterior ao tratar inteiramente da mesma matéria. Logo, aplicar-se-á apenas o novo Código Civil, permanecendo em vigor tão-somente o P. único do artigo 7º da Lei n. 9.278/96, quanto ao direito real de habitação do supérstite sobre o único imóvel residencial dos conviventes ao tempo da morte, coisa que não fez o novo Código Civil.