Daniela Aparecida Rodrigueiro Peres Fonseca
Meio Ambiente, tema que atualmente tem povoado congressos internacionais, reuniões de organizações não governamentais, tem sido declarado e exigido por todas as nações, por todos os povos. Pensar em Meio Ambiente é pensar inicialmente em direito transindividual, ou metaindividual se preferirmos. E o que seria este direito? As doutrinas clássicas apresentavam aos acadêmicos, nas primeiras letras das cadeiras universitárias jurídicas a grande divisão entre dois baluastres do Direito, quais sejam aqueles afetos aos direitos ou interesses privados e aqueles afetos aos direitos ou interesses públicos. Ocorre que com o passar dos tempos, as consciências humanas passaram a perceber que o “eu” individualmente considerado de nada valeria se não estivéssemos voltados para o “nós”, para todos, para a coletividade; as atitudes pessoais sem qualquer dúvida comprometiam as coletividades e à medida que isto passou a ser sentido pudemos perceber o que chamamos do despojar-se das consciências individuais para a busca das consciências coletivas. Surgiram então os direitos coletivos “lato sensu”, aqueles, afastados da idéia de Estado e de Direito Público, portanto, mas também afastado, sobreposto, à idéia de direito individual. Seria, a princípio uma terceira categoria de direitos ou interesses que não se enquadraria naquelas preteritamente identificadas. Disse de outra feita Mauro Cappelletti “ entre o interesse público e o privado criou-se um abismo preenchido pelos direitos metaindividuais”
O que pudemos perceber foi a existência da necessidade de se tutelar, de forma a preservar, estes interesses superiores, tão importante, de tanto valor. Fez-se necessário criarmos um sistema jurisdicional de proteção destes bens coletivos por excelência considerados. E o nosso país, um passo à frente da humanidade, apresenta confeccionado este sistema protetivo, guiado pelas linhas fortes e mestras da Constituição Federal e consagrado na legislação infraconstitucional de forma primeira pela lei da Ação Civil Pública (do ano de l985), recepcionada pela carta maior e definitivamente sedimentada pelo Código de Defesa do Consumidor, que veio ao mundo jurídico em l990 para defesa não apenas de direitos afetos às relações de consumo, mas sim para defesa de todos direitos metaindividuais, posto que os diplomas mencionados, expressamente ao longo de seus textos, determinam esta integração e aplicação de uma e outra lei, protegendo com isto, consumidor, erário público, educação, saúde, infância e adolescência e é claro, o meio ambiente.
Falando nele, o nosso Meio Ambiente, é bom que destaquemos dois pontos; o primeiro a ser considerado é aquele que o eleva à categoria do primordial, do supremo direito coletivo; e isto em face do direito ambiental em primeira análise, ter como bem mediatamente tutelado, a própria vida humana. É que a idéia de meio ambiente, e ai se entenda aquele ecologicamente equilibrado, sadio, saudável (como determina a norma formal e materialmente constitucional – artigo 225 CF/88), torna-o realmente o maior dos direitos coletivos por estar intimamente relacionado à idéia de vida e vida saudável, como sendo a única expressão da digna sobrevivência humana. Realmente não importa o direito do consumidor se, não estivermos aptos a praticar relações de consumo, se o meio estiver de tal forma deficiente que nada mais tenha sentido. Daí o segundo ponto a ser destacado; o meio ambiente é vida e vida sadia, devemos preservar o ecossistema, o ambiente, de forma equilibrada por que o homem precisa dele para viver, é o que se denomina nas doutrinas mais autorizadas, uma visão antropocentrista do direito ambiental. Preservar-se, impõe-se a conservação porque esta nossa geração, de seres humanos, e as futuras gerações, também de seres humanos assim necessitam.
Todos estes enfoques têm única razão de ser, qual seja, preservarmos o meio ambiente, enquanto o maior dos direitos coletivos, em face da visão antropocêntrica ambiental, única e exclusivamente por que o homem necessita viver com dignidade! É a dignidade da pessoa humana a mola mestra do surgimento das tutelas ambientais, constatado que foi o fato social prévio relacionado à degradação do meio ambiente.
O princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento de validade da República Federativa do Brasil, está inserido na Constituição Federal “ab initio”, onde se lê no artigo 1º. que a República constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento entre outros, III – a dignidade da pessoa humana. Com isto o texto maior “concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser fitas limitações aos exercícios dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”.
Neste sentido podemos afirmar que a dignidade da pessoa humana é fundamento de validade dos direitos humanos fundamentais, notadamente aqueles inerentes à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem.
A consagração deste princípio/direito deixa claro que afastada está a concepção transpessoalista de Estado e Nação em detrimento das liberdades individuais.
Podemos concluir fundar-se a dignidade humana em dupla concepção: “Primeiramente prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria”.
Historicamente buscamos suporte de validade no direito romano que em três normas é capaz de traduzir a aplicabilidade deste princípio:
* honestere vivere (viver honestamente)
* alterum non laedere (não prejudiquem ninguém)
* suum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido)
Conta JJ Gomes Canotilho em sua obra Direito Constitucional e teoria da Constituição que, se analisarmos as experiências históricas relativas à aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, estalinismo, genocídios étnicos) “a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República”.
Desta forma, acrescenta o mestre, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos políticos – organizatórios. Portanto, esta compreensão do princípio da dignidade humana justifica posturas constitucionais lá (Portugal) e aqui preenchidas como a proibição da pena de morte e da prisão perpétua (Constituição Portuguesa respectivamente artigos 24 e 30 I).
Encerra o pensamento, concluindo Canotilho que a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana faz surgir a idéias de “comunidade constitucional inclusiva”, pautada pelo multiculturalismo mundividencial, religioso ou filosófico.
E assim o é. Reconhecer a dignidade da pessoa humana como núcleo essencial da República ou, cá para nós, como pressuposto da República e do Estado Democrático de Direito, é conclamar o contrário de “verdades” ou “fixismos” políticos, religiosos ou filosóficos. Não pode o republicanismo mundial contemporâneo baseado nos princípios da dignidade da pessoa humana, impor “teses”, “dogmas”, “religiões”, “verdades” ou “ordens” sob pena de morrerem em si diante da contradição essencial.
Há uma relação de causa e efeito, onde a dignidade humana é causa é fonte geradora de todos os direitos fundamentais do homem.
E quais direitos são estes? A resposta é simplista demais. Todos os direitos incluindo a vida e a liberdade, aliás, irrenunciáveis veja, por exemplo, o que preleciona Sartre – “O homem não pode renunciar à sua liberdade” , com esta afirmação fale ele no peso da responsabilidade de sermos livres. Frente a esta liberdade o homem deve se angustiar, por que esta liberdade implica em escolha, que só o próprio indivíduo pode ter.
Muitos de nós quedamo-nos inertes, paralisamos e, assim, achamos que não fomos obrigados a escolher. Mas a não ação, por si só, já é uma escolha. Arriscar-se, procurar a autenticidade, é uma tarefa árdua, uma jornada pessoal que o ser deve empreender em busca de si mesmo.
Se estivermos a falar em escolhas, a escolha correlata ao mandamento constitucional, mas além disto, a escolha consciente, preservadora, digna de si e de seus semelhantes é aquela que opta por uma sadia qualidade de vida, mas sem hipocrisia ou demagogia, o dever de optar por um viver não degradador, por um viver em consonância com os preceitos ecológicos, com o pensamento consciente e coletivo de preservação do bem comum.
Esta dignidade na opção é forma pura de coerência do real encontro em si mesmo do que dizíamos ser a chamada consciência coletiva. A opção individual encerra finalidades coletivas. O seu querer importa no querer dos demais, da coletividade. A par dos posicionamentos filosóficos e de divagações, a idéia realmente é impositiva se estivermos diante da opção da preservação ambiental.
Vemos que a liberdade ditada por Jean Paul Sartre, inegavelmente possui valores que vão de encontro com os princípios da dignidade da pessoa humana, atribuindo ao homem sua plena posse, entrega-lhe também os rumos da dignidade humana, sua e da coletividade, escolhe o homem a si mesmo, mas escolhendo a si, ele escolhe todos os homens, o ato individual engaja toda a humanidade, o homem é responsável por si em sua totalidade, desenha e escolhe seus caminhos e assim o é por que ele é dono do seu “eu”. Querendo para si o bom buscará para a humanidade o melhor, por que ao final a soma das consciências individuais resultará no encontro da consciência coletiva.
Não se nega a solidariedade e a coletividade dos direitos na medida em que o coletivo, como já informado é puro reflexo lógico e direito do querer individual. Diria Sartre: “Quando declaro que a liberdade, através de cada circunstância concreta, não pode Ter outro objetivo se não o de querer-se a si próprio, quero dizer que, se alguma vez o homem reconhecer que está estabelecendo valores, em seu desamparo, ele não poderá mais desejar outra coisa a não ser a liberdade como fundamento de todos os outros valores. Isto não significa que ele a deseja abstratamente. Mas, simplesmente, que os atos dos homens de boa-fé possuem como derradeiro significado a procura da liberdade enquanto tal. Um homem que adere a um sindicato comunista ou revolucionário quer alcançar objetivos concretos; tais objetivos implicam uma vontade abstrata da liberdade; porém, esta liberdade é desejada em função de uma situação concreta. Queremos a liberdade através de cada circunstância particular. E, querendo a liberdade descobrimos que ela depende integralmente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade, enquanto definição do homem, não depende de outrem, mas logo que existe engajamento, sou forçado a querer, simultaneamente, a minha liberdade e a dos outros; não posso Ter como objetivo a minha liberdade a não ser que meu objetivo seja também liberdade dos outros. De tal modo que, quando, ao nível de uma total autenticidade, reconheço que o homem é um ser em que a essência é precedida pela existência, que ele é um ser livre que só pode querer a sua liberdade, quaisquer que sejam as circunstâncias, estou concomitantemente admitindo que só posso querer a liberdade dos outros.
Somos pessoas individualizadas sim, mas vivemos em comunidade e buscamos vida sadia e saudável, nossas atitudes pessoais devem ter este comprometimento. Estas ditas atitudes humanas devem ser norteadas por posicionamentos éticos, matérias hoje que se posicionam frente ao Biodireito, a Bioética, a Biossegurança. E ali tal qual aqui, o compromisso dos cientistas em busca de soluções melhores de condições melhores de vida não pode esbarrar em posturas que não sejam ecologicamente adequadas. Eles não podem buscar a cura de Síndromes, por exemplo, sacrificando para isto vidas intra-uterinas, manipulando geneticamente células germinais humanas, descartando material genético humano in vivo, esquecendo-se de um comprometimento ético, assim como nós não podemos apreender espécies, criá-las em cativeiros, desviar cursos de rios, desmatar, proceder a queimadas ilegais, sem que para tanto, eles e nós não sejamos seriamente punidos, ainda que esta punição seja forma de reeducação ambiental.
Somos usufrutuários do meio ambiente em que vivemos e devemos protegê-lo e conservá-lo para as presentes e futuras gerações. Estas possuem não apenas uma expectativa de direito de adquirirem, de receberem o meio ambiente intacto, não devastado, ecologicamente equilibrado, mas possuem na verdade um direito concreto e declarado constitucionalmente na norma estampada no artigo 225 da carta maior, fundado no direito/dever da perpetuação das espécies. Este contrato só estará aperfeiçoado se, ao momento que receberem o que lhes é de direito passarem do “status quo”, para a função de proprietárias e usufrutuárias devendo agora preservar para o fim de, ao futuro subseqüente, transmiti-lo (o planeta) de forma intacta.
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