O Direito, porque acompanha a vida diariamente, recepciona postulações da sociedade, cada vez menor, abrangendo todos os países. Uma delas, sem dúvida, é a igualdade de direitos reclamada pela mulher. Não faz mais sentido tê-la relativamente incapaz como dispunha a redação inicial do Código Civil. O acesso aos postos de trabalho é conquistado dia a dia. Apesar disso, não obstante a enfática proclamação do princípio da isonomia no plano fático, a igualdade não se operou inteiramente. A distinção biológica faz as empresas, tantas vezes, preferir empregar homens; com isso, previnem-se contra os inconvenientes resultantes da gravidez, que permite à mulher ausentar-se do serviço, sem perda do salário.
A qualificação da conduta, particularmente no Direito Penal, por sua importância, tantas vezes, gera acirrada divergência. Classificar o homicídio como ilícito ganha unanimidade. O juízo de valor, entretanto, é polêmico quando se refere à maioria das condutas. Explica-se o fenômeno: a causa reside na pluralidade axiológica. A norma jurídica concretiza concepção de vida.
A cultura mundial, como regra, estabelece nítida e rígida distinção entre homem e mulher; repercute no arco de direitos e obrigações, particularmente, quanto a elas inúmeras proibições. Em conseqüência, trato normativo diferente. Entre nós predominou, durante muito tempo, a idéia da mulher ser preparada para a vida doméstica, formando a boa mãe e exemplar esposa. Atividades profissionais eram reservadas ao homem. Repercutia até na arquitetura. Muitas casas construídas de modo que o acesso ao quarto das filhas, tantas vezes sem janela, passar pelos aposentos dos pais.
A situação sofreu profunda transformação. A revolução sexual, indiscutivelmente, exerceu significativa importância.
Hoje, está tudo mudado. Homens e mulheres disputam o mesmo espaço. Algumas áreas profissionais têm atraído acentuadamente o sexo feminino. Ilustre-se com as atividades que reclamam o título de bacharel em Direito. As mulheres transitam sem nenhuma restrição nos concursos para a magistratura e o Ministério Público, A história dessas instituições, entretanto, registra fatos de obstáculo à admissão. Na Faculdade de Direito de São Paulo, criada em 1827, o ingresso da primeira mulher ocorreu nos anos quarenta, a eminente professora de Direito Penal, referência para todos nós, Esther Figueiredo Ferraz.
O quadro geral sempre foi mais liberal com o homem do que com a mulher no tocante à vida sexual. Essa rigidez não acarretava (ainda hoje) a mesma censura ao homem. Em decorrência, sempre teve maior liberdade de ação. Nem tudo permitido ao sexo masculino era (persiste até certo ponto) consentido à mulher. Com isso, o homem, como regra, teve a iniciativa da aproximação e das insinuações.
Essa diferença acarreta conseqüências. A realidade evidencia, muitas vezes, que o acesso da mulher ao trabalho fica condicionado a que se submeta à prática de atos de libidinagem. E mais. Realizá-los para a manutenção do contrato de trabalho ou melhorar a remuneração. Nesse particular, reside o conceito de assédio sexual. Não se confunde com a insinuação, o galanteio, a cantada, como vulgarmente se diz, de maneira elegante, ou grosseira. Configuram duas situações jurídicas distintas, bem identificadas.
O assédio situa-se na extensão do crime de constrangimento ilegal (praticar violência ou irrogar ameaça a alguém a fim de fazer ou deixar de fazer alguma coisa a que não está obrigado por força da lei).
O assédio encerra condição imposta a quem procura o trabalho, deseja conservá-lo, ou postula melhorar as suas condições. O mesmo pode acontecer na administração pública.
No galanteio, o homem se insinua, busca o consentimento da mulher; pode haver insistência, mas não há condição. A mulher é livre para aceitar, ou recusar. Nos limites da razoabilidade, nenhuma censura.
Outra, porém, a situação da pessoa aproveitar-se de sua condição jurídica, com o poder decidir, para aceitar a postulação como melhor lhe parecer. Configura-se, sem dúvida, comportamento ilícito. Compreende, como regra, relação de emprego e é aí onde se manifesta com mais freqüência. Nada impede, porém, ocorrer em outras situações, ou seja, em qualquer relação jurídica em que alguém seja a palavra decisiva e estabeleça exigência de prática, de atos da vida sexual. Acosso sexual como empregam os escritores de língua espanhola. E ainda o nomen juris na lei da Espanha e do México.
O anteprojeto de reforma da Parte Especial do Código Penal, sensível à distinção define o delito assédio sexual nestes termos: Assediar alguém, com violação do dever do cargo, ministério ou profissão exigindo, direta ou indiretamente, prestação de favores sexuais como condição para criar ou conservar direto ou para atender a pretensão da vítima.
O sujeito ativo, embora (explicações históricas) como regra seja o homem, pode ser também a mulher. Indiferente o sexo, além disso, para configurar o sujeito passivo.
Luiz Vicente Cernicchiaro
Ministro do Superior Tribunal de Justiça, professor titular da
Universidade de Brasília e autor do livro Questões Penais”