Max Guerra Kopper
Nos artigos vetados da Lei nº 9.278/96 admitia-se que os companheiros regulassem, por contrato escrito, seus direitos e deveres, respeitadas as normas de ordem pública, devendo, para valer contra terceiros, ser o respectivo instrumento averbado em cartório do Registro Civil (arts. 3º e 4º). Previam-se, ainda, no art. 6º, também vetado, as diversas formas de dissolução da união estável, quer em virtude de acordo bilateral, de quebra dos deveres dos conviventes (rescisão), de vontade de uma das partes (denúncia), de separação de fato ou de morte.
O veto do Presidente da República, no que interessa, teve a seguinte redação: … a amplitude que se dá ao contrato de criação da união estável importa em admitir um verdadeiro casamento de segundo grau, quando não era esta a intenção do legislador, que pretendia garantir determinados efeitos a posteriori a determinadas situações nas quais tinha havido formação de uma entidade familiar (…) Assim sendo, não se justifica a introdução da união estável contratual nos termos do art. 3º, justificando-se pois o veto em relação ao mesmo e, em decorrência, também no tocante aos arts. 4º e 6º.
O veto, portanto, baseou-se com muita propriedade, diga-se na circunstância de que a união estável é uma situação de fato que só se concretiza com o decorrer do tempo. Para ser estável, a união livre (união de fato) precisa ser duradoura. E não é possível, de antemão, saber se a união será duradoura, estável. Por isso, também não se mostra possível estabelecer uma prévia disciplina contratual para regular essa união livre, cuja qualidade de estável se revela futura e/ou incerta.
A união de fato, na verdade, vai se formando e se consolidando pouco a pouco, dia a dia, até que, em determinado momento, passa a ser estável. Inadmissível estabelecer-se a priori, por meio de um ato formal (um contrato escrito), que a união será estável e se regerá por regras previamente estabelecidas. Se assim fosse, teríamos realmente uma outra modalidade de casamento, mais vantajoso do que o casamento tradicional, porque não se submeteria a procedimento de habilitação, sua dissolução não se sujeitaria ao crivo do Judiciário (a processo judicial) e, além disso, poderiam as partes, com boa margem de amplitude e liberdade, estipular contratualmente o que lhes conviesse acerca de direitos e deveres. Isso contrariaria frontalmente o disposto no art. 226, § 3º, da Constituição, que propugna e encerra o nítido propósito de estimular a conversão da união estável em casamento, o que jamais ocorreria se as partes pudessem estabelecer uma união estável contratual ou uma modalidade de casamento com maiores facilidades e vantagens.
Sintetizando a questão, tem-se que: se se deseja constituir uma entidade familiar instantânea, mediante prova preconstituída, com clara e prévia disciplina dos direitos e deveres dos integrantes da família, bem assim das relações interpessoais entre eles, casa-se. Do contrário, simplesmente passa-se a viver uma relação de fato, uma vida em comum, com aparência de casamento, que, pelo decorrer do tempo, pode se transformar em uma união estável e, em isso acontecendo, gerar alguns efeitos estabelecidos em lei (direitos sucessórios, partilha de bens e alimentos). A prova de que houve essa união estável, será, portanto, sempre posterior à sua ocorrência. Inadmissível é a constituição antecipada de uma união estável. Intolerável, outrossim, que a união estável seja mais atraente, goze de situação privilegiada, quando posta em cotejo com o casamento. A Constituição nitidamente preferiu este àquela. Não se concebe, pois, que sejam conferidos aos conviventes direitos e prerrogativas de que não desfrutam os nubentes e os cônjuges.
Ocorre que, apesar desse veto, que inadmitiu a possibilidade de união estável contratual, o fato é que, não se sabe se intencionalmente ou não, remanesceu no texto legal, na parte em que se disciplinou a partilha dos bens adquiridos durante a convivência (art. 5º, caput) e na parte em que se tratou da administração do patrimônio comum (art. 5, §2º), a ressalva salvo estipulação contrária em contrato escrito.
É certo que, por força das ressalvas, a possibilidade de os conviventes (companheiros) estabelecerem disciplina contratual relativamente à união estável ficou adstrita tão-somente a dois aspectos (relações patrimoniais e administração dos bens comuns). Ocorre que, no casamento, em sede de pacto antenupcial, os nubentes também não têm ampla liberdade de convenção, dado o caráter cogente (de ordem pública) próprio das normas que regem a relação matrimonial. Tal liberdade restringe-se basicamente aos referidos dois aspectos (regime de bens e administração destes).
Pergunta-se, então, será que, admitida essa possibilidade de os conviventes (companheiros) estipularem cláusulas contratuais à semelhança do que ocorre nos pactos antenupciais (embora com eficácia condicionada à futura constatação da efetiva ocorrência de uma união estável), tal não se constituiria em desestímulo ao casamento? Se as partes já constituíram ou desejam constituir uma união duradoura e querem fazer estipulações contratuais semelhantes àquelas que são admissíveis no casamento, não seria o caso de remetê-las necessariamente para a convolação de núpcias em vez de ensejar-lhes a viabilidade de obter os mesmos efeitos de um pacto antenupcial por meio de simples contrato, sem sujeição das partes do procedimento de habilitação, sem observância às solenidades que são exigíveis para o casamento e, ainda, com possibilidade à míngua de proibição específica de alteração do ajuste (o que implicaria em modificação do regime de bens, vedada no casamento)? Tal possibilidade, em resumo, não conduziria praticamente à equiparação da união estável ao casamento (inclusive, como assinalado, com certas vantagens para aquela), na medida em que ambos os institutos em essência se diferenciariam tão-somente no que se refere à prova preconstituída, presente no casamento e não na união estável? Será que, em conclusão, tal possibilidade, por facilitar a constituição ou manutenção da união estável, e não sua conversão em casamento, não seria inconstitucional?
Pensamos que sim. Na verdade, o que ressuma da dicção do §3º do art. 226 da Constituição é uma permissão para que o legislador ordinário discipline os efeitos da união estável, para fins de proteção do Estado, ou seja, para garantia de direitos mínimos, básicos e essenciais àqueles que integram uma entidade familiar assim constituída (de fato). Legítima e louvável, portanto, a previsão de partilha igualitária dos aqüestos (bens adquiridos a título oneroso e durante a convivência), pondo fim ao iníquo entendimento de que a uni!ao estável seria mera sociedade de fato e, dessa forma, a partilha deveria ser proporcional ao esforço de cada um na constituição do patrimônio (enunciado 380 da Súmula/STF), isso quando não fosse o caso de, numa nítida capitis diminutio daquele companheiro(a) que se desincumbe dos afazeres domésticos, simplesmente atribuir-se lhe mera indenização por serviços prestados. Digna de encômios, também, a equiparação do(a) companheiro(a) ao cônjuge para fins de direitos sucessórios e alimentos. Conferida essa proteção legal aos conviventes, estabelecido esse, digamos assim, sistema legal da união estável, composto de normas cogentes e imperativas, que não se admite sejam alteradas ou afastadas pela vontade das partes, como aliás sói contecer em sede de Direito de Família, reputamos que ao legislador ordinário não seria dado ir além, para possibilitar aos conviventes estipulações contratuais assemelhadas às que são objeto de pacto antenupcial. Aos conviventes que não quiserem se sujeitar ao citado sistema legal da união estável (que, repita-se, lhes assegura o essencial em termos de proteção legal) resta a via do matrimônio, inequivocamente eleito pela ordem constitucional vigente como forma preferencial de constituição de entidade familiar.
Tem-se conhecimento da existência de projeto de lei de iniciativa do Executivo (Projeto de Lei nº 2.686/96, intitulado de Estatuto da União Estável), no qual se mantém a possibilidade de os companheiros disciplinarem contratualmente suas relações patrimoniais. Não fosse a prevalência do casamento sobre a união estável, que decorre hialina do texto constitucional, nenhuma restrição haveria à convivência simultânea de duas modalidades de entidade familiar análogas, quanto às normas de regência e dos efeitos. Diante de tal prevalência, contudo, de uma análise comparativa entre casamento e união estável não pode resultar equiparação, muito menos prestígio desta em relação àquele. Todas as normas que, mais do que direcionadas à garantia de direitos elementares aos protagonistas de uma união estável, tendam a equipará-la ou mesmo prestigiá-la em face do matrimônio devem ser havidas por inconstitucionais.
Max Guerra Kopper
Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.
Pós-graduado pela Universidade de Brasília