Da auto-aplicação da norma constitucional inerente a limitação dos juros

Eduardo Jose de Carvalho Soares

Resumo : Visão crítica dos contratos e a auto-aplicabilidade do limite constitucionais dos juros na seara financeira, em defesa do controle da constitucionalidade repressiva, difusa e incidental pelos magistrados de primeiro grau, face a ausência do efeito vinculante da decisão da Suprema Corte Nacional quando da ADIn 4.

A vivência em sociedade impõe, muitas vezes, ao homem firmar acordo de vontades com outros, em busca da satisfação de suas necessidades.
O contrato, de forma escrita, ou não, é o “encontro de duas ou mais declarações convergentes de vontades, emitidas no propósito de constituir, regular ou extinguir, entre os declarantes, uma relação jurídica patrimonial de convivência mútua” .
À formação de um contrato parte-se da premissa que há coincidência nas declarações, pois se não ocorre, há dissenso. A perfeição do contrato se caracteriza na harmonia e identidade das vontades nos pontos essenciais e decisivos. Se não houver o consenso, o contrato não nasce, ou será ineficaz.
Kelsen anota em sua Teoria Pura do Direito, que a definição tradicional que tem o contrato como um acordo de vontades de dois ou mais sujeitos tendente a criar ou extinguir uma obrigação e, o direito subjetivo correlato passa por alto uma de suas funções mais importantes, que á a função criadora de direito. Ao celebrar um contrato, as partes não se limitariam a aplicar o direito abstrato que o rege, mas estariam criando também normas individuais que geram obrigações e direitos concretos não existentes antes de sua celebração. Daí a máxima o contrato faz lei entre as partes.
A autonomia da vontade e liberdade de contratar, correspondem o poder dos agentes de suscitar, mediante declaração de vontades, efeitos reconhecidos e tutelados pelo ordenamento jurídico. Como se vê há freios ao exercício do princípio da autonomia e liberdade dos contratos, além do limite legal, a autonomia privada dos contratos, depara-se, também, com a ordem pública e os bons costumes.
Em nosso ordenamento jurídico, o contrato, exerce uma função social, ou seja, deve ser socialmente útil, e assim há – um real e vivo – interesse público em sua tutela.
Logo é correto afirmar : “Os contratos que têm causa contrária a leis de ordem pública e aos bons costumes são NULOS.”
Por outro lado, as partes são livres na determinação do conteúdo do contrato, mas respeitados os limites legais imperativos, pois como dito lapidarmente por Lacordaire : “entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta”.
O princípio da força obrigatória que defende a impossibilidade da revisão do contrato pelo juiz, não encontra mais espaço na hodierna interpretação jurisdicional, visto, não mais se conceber a aplicação do arcaico e ultrapassado entendimento da vinculação absoluta, veneração mesmo, ao pacta sunt servanda.
A Lei como fonte libertadora dos mais fracos e instrumento de igualização entre os desiguais instituiu o Código de Defesa do Consumidor – Lei n.º 8.078/90 – em socorro ao cidadão consumidor de produtos e serviços, definindo tal qualidade a toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final ( art.2.º ).
E como fornecedor toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvam atividades, entre outras, de prestação de serviços, sendo este qualquer atividade do mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária (parágrafo 2.º, art.3.º ).
Dispositivos de proteção a conduta desrespeitosa, abusiva e muitas vezes afrontosas a dignidade do cidadão e ameaçadora da paz e do equilíbrio social foram codificados com força de lei, incluindo nesta esfera de abrangência, também, a atividade bancária, financeira e de crédito.
Uma questão atual chama a atenção para o excesso na interpretação da liberdade e autonomia dos contratos realizadas pelas instituições bancárias, financeiras e de créditos no Brasil.
Como é sabido, na seara dos contratos bancários, creditícios, é vedada a prática de capitalização de juros ( juros sobre juros ), mesmo quando expressamente convencionada entre as partes. Ou seja, o direito brasileiro, legal, jurisprudencial e doutrinário, inadmite o anatocismo. A exemplo da Súmula n.º 121 do STF que veda a contagem de juros sobre juros em períodos inferiores a um ano – aplicável às instituições financeiras.
O Magistrado José Wilson Gonçalves ao tecer comentários aos Contratos Bancários assevera : “O anatocismo, realmente a lei veda a sua prática, ao impedir a contagem de juros dos juros, mesmo em se tratando de instituição financeira, pois a previsão do artigo 4.º, do Decreto n.º 22.626, de 7.4.33 – Lei de Usura, é extensiva aos bancos, visto que não foi revogada pela Lei n.º 4.595/64.”
A Constituição Federa de 88, ao tratar dos juros e da usura, normativou no Parágrafo 3.º do art.192 : “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano;”
O festejado Mestre José Afonso da Silva comentou que este dispositivo causou muita celeuma e muita controvérsia quanto à sua aplicabilidade. E, pronunciou-se a favor de sua aplicabilidade imediata, justificando se tratar de uma norma autônoma, não subordinada à lei prevista no caput do artigo, pois “se o texto, em causa, fosse um inciso do artigo, embora com normatividade formal autônoma, ficaria na dependência do que viesse a estabelecer a lei complementar. Mas, tendo sido organizado num parágrafo, com normatividade autônoma, sem referir-se a qualquer previsão legal ulterior, detém eficácia plena e aplicabilidade imediata”
Por sua vez, o Ministro Néri da Siveira do Supremo Tribunal Federal, fundamentando voto, afirmou :
“A análise do mencionado parágrafo 3.º do art.192 conduz à compreensão de, nele, coexistir dois comandos de natureza distintas : a) de índole civil, só a primeira parte, verbis:
‘As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referida à concessão de crédito, não poderão ser superior a doze por cento ao ano’.
Essa primeira parte define a norma de natureza civil. De índole penal é a Segunda parte do dispositivo, verbis: ‘a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.’
A primeira parte do parágrafo 3.º do art.192 da Lei Maior constitui norma de eficácia plena, de aplicabilidade imediata, integral, independendo de legislação posterior para sua inteira operatividade.
Não compreendo, in casu, eu obste a incidência do preceito constante da primeira parte do parágrafo 3.º do art.192 da constituição o fato de a locução ‘juros reais’ enfeixar conceito complexo.
Cuida-se de cláusula constitucional que há de ser, no instante e vias próprios, submetida à exegese do Poder Judiciário e, em particular, deste Tribunal, em decisão definitiva, como guarda da Constituição e seu intérprete maior.(…)”
Verifica-se, com efeito, que a norma limitativa dos juros reais enaltece a sua auto-aplicabilidade imediata, imprimindo-lhe a natureza self executing rule.
Ministro Paulo Brossard, também da Suprema Corte, ao votar na ADIn 4, que reconheceu como não auto-aplicável o dispositivo em comento, pronunciou-se : “Tenho para mim que o dispositivo na primeira cláusula do Parágrafo 3.º, do art.192 da Constituição é auto-aplicável, pois não necessita de nenhum suplemento legal para dizer tudo o que quer e a lei complementar que vier a ser editada há de ser-lhe fiel ou será inconstitucional. Mas quando não fosse, ela não poderia ser tomada como cláusula não escrita; embora fosse, supostamente, de eficácia limitada, nem por isso deixaria de produzir efeitos, que tanto seriam revogatórios da legislação que o contrariasse, como seriam condicionantes da atividade legislativa, administrativa e jurisdicional.”
A decisão do STF na ADIn 4, que negou auto-aplicabilidade ao dispositivo em destaque, não tem caráter vinculante (EC 03/93), certo que merece respeito, mas não veda ao magistrado o livre exercício do seu convencimento, no controle judiciário constitucional repressivo, difuso e incidental, quando provocado, e que tem efeito apenas inter partes.
Percebe-se, assim, claramente, que a norma constitucional do § 3.º do art. 192, gerou um direito exercitável no círculo do sistema financeiro, criador de uma limitação. Está ela plenamente delimitada no corpo da norma constitucional independentemente de qualquer lei ou norma jurídica posterior. Coerentemente com o preponderante entendimento de que as normas constitucionais são, de regra, auto-aplicáveis, vale dizer, são de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
As taxas de juros que estão sendo praticadas, hoje, no Brasil, são taxas insuportáveis tanto ao empresariado nacional, e mais ainda ao cidadão comum que muitas vezes precisa se valer de empréstimos, seja em agência bancária, seja por compra com cartões de crédito, a fim de socorrer uma necessidade premente sua ou de sua família. As taxas estratosféricas apenas engordam os lucros dos que emprestam dinheiro, empobrecendo a força de trabalho e o pequeno capital produtivo.
Os contratos creditícios, em tese, utilizados atualmente no mercado nacional estão envolto a determinante fumaça de abuso de direito dos credores, posto os acréscimos somados ao monte devido, assustam o bom senso, e destacam fortes e veementes indícios de elevada possibilidade de provocarem a ruína econômica aos devedores. Logo, são carecedores de boa – fé.
Na lição de José Carlos Barbosa Moreira, extrai-se que “todo conceito jurídico indeterminado é suscetível de concretização pelo juiz, como é o conceito de boa-fé, como é o conceito de bons costumes, como é o conceito de ordem pública e tantos outros com os quais estamos habituados a lidar em nossa tarefa cotidiana”.
Encontram-se – reiteradamente nos ditos contratos – a cristalina inserção de mecanismos ensejadores do famigerado, reprovável, e aviltante anatocismo, contrário a lei e aos bons costumes de um população sofrida como a nossa, assim os contratos que têm causa contrária a lei fere a ordem pública devendo ser declarados nulos – toda declaração de vontade só deve produzir o efeito desejado, se lícita por sua causa.
Ademais, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”, ora, as taxas de juros, no Brasil, ainda são determinadas por resoluções do Conselho Monetário Nacional, resolução do poder executivo, logo não pode obrigar o cidadão, pois resolução não é lei.
A constituição, no §3.º do Art.192, 1.ª parte, prevê que as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remuneração direta ou indiretamente referidas à concessão do crédito, não poderão ser superior a doze por cento ao ano;” Assim, pelo princípio da hierarquia das leis, nenhuma norma infra – constitucional pode a ela se contrapor.
Tais fundamentos e razões, reclamam a intervenção independente e alvissareira do Poder Judiciário; que ainda é a garantia do povo contra as agressões do poder econômico, sendo a instância de segurança da sociedade em defesa dos seus direitos, agredidos ou ameaçados.
A matéria aqui provocada é de ordem pública, e assim convoca a intervenção jurisdicional, não para uma simples revisão de cláusulas contratuais lhe postas, mas para a decretação da nulidade daquelas afrontosas à Magna Carta da República, e indignificante a cidadania popular, assegurando – ao menos – àqueles que entregaram, ou depositarem, sua crença no Judiciário, uma prestação jurisdicional legítima, fruto de um consensus da cosmovisão social dos dias atuais.

Eduardo José de Carvalho Soares é Juiz de Direito na Paraíba

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